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Disciplinas, biopolítica e governamentalidade: o poder sobre a vida em produção do cuidado e da gestão em saúde

3 OS JOGOS DE PODER NA MAQUÍNICA DO SUS: A TRÍPLICE PRODUÇÃO DE INSTITUCIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E SABER

3.2 Arqueogenealogia: o saber-poder em potência para ver-dizer-mapear a produção maquínica do SUS

3.2.4 Disciplinas, biopolítica e governamentalidade: o poder sobre a vida em produção do cuidado e da gestão em saúde

“O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política;

o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. Michel Foucault, 198869.

“O poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado”.

Michel Foucault, 199970.

O regime de cidadania constitucional põe em visibilidade e dizibilidade a produção de jogos de poder sobre a vida, em esboço de “sociedade normalizadora”71, mas também de uma “sociedade de controle”72 em tempos contemporâneos. Tanto em uma perspectiva como

69FOUCAULT, 1988, p. 134. 70FOUCAULT, 1999, p. 296.

71“Sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma

da disciplina e a norma da regulamentação”. (FOUCAULT, 1999, p. 302).

em outra, o que está em questão é como acontece a mecânica do poder, quais as tecnologias e os procedimentos que são realizados para e no seu exercício; e como se dão e quais são seus efeitos na produção de verdades e de subjetividades.

No capítulo “Direito de Morte e Poder sobre a Vida”, na “História da Sexualidade 1: A vontade de saber73, Foucault (1988, p. 126) aponta que o poder de soberania, a vontade do soberano, constitui-se pelo poder sobre a morte. É o poder sobre a morte quem impõe a vida do súdito. Um

[...] direito de espada. Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver . O que, é claro, introduz urna dissimetria flagrante. (FOUCAULT, 1999, p. 287).

Deixar viver, no caso, não requer e não implica em uma intervenção do Estado sobre o modo de vida do súdito, não denotando o exercício de um poder com ingerência sobre o seu jeito de viver. Mas, no limite, de fazer morrer, ou seja, de tomar a vida para suprimi-la, pela vontade de poder do soberano condicionada à sua defesa e sobrevivência.

“O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.” (FOUCAULT, 1988, p. 128).

Já no poder sobre a vida, no ato de fazer viver e deixar morrer, que percorre do homem-corpo ao homem-espécie, do corpo-organismo ao corpo-população, a morte, que simbolizava o poder soberano, é

[...] recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida . Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas — escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. (FOUCAULT, 1988, p. 131, grifo meu.).

73“Em defesa da sociedade, Foucault apresenta, na abertura do curso, e em forma de balanço e de levantamento, os delineamentos gerais do poder "disciplinar" [...] e esboça no final do curso o perfil daquilo a que chama o "biopoder" [...] Foi na tentativa de estabelecer uma "genealogia" desse poder que Foucault se interrogou depois sobre a "governabilidade" [...] A questão das disciplinas Foucault havia consagrado o curso de 1972-1973 (La sociere punitive [A sociedade punitiva]), de 1973-1974 (Le pouvoirpsychiatrique [O poder psiquiátrico]), de 1974-1975 (Les anarmaux [Os anormais]) e, enfim, a obra Surveiller et punir; à governabilidade e ao biopoder ele consagrará o primeiro volume de Histaire de la sexualite [História da sexualidade] (La volante de savoir, dezembro de 1976) e, em seguida, o curso de 1977-1978 (Securite, territoire etpopulation [Segurança, território, população]), de 1978-1979 (Naissance de la biopolitique [Nascimento da biopolitica]) e o início do curso de 1979-1980 (Du gouvernement des vivants [Do governo dos vivos])”. (FONTANA; BERTANI, 1999, p. 329- 330).

Nessa perspectiva, o poder sobre a vida, o fazer viver, se desenvolveu em dois polos interligados. O primeiro, em operação no século XVII, início do século XVIII, e o segundo a partir de meados do século XVIII. (FOUCAULT, 1988).

Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em tomo dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação — durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces — anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida — caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. (FOUCAULT, 1988, p. 131, grifos meus).

Gadelha (2009, p. 77), ao escrever sobre “Biopolítica: Dimensões e Interfaces74, em diálogo com Foucault, indica que esses dois diferentes tipos de tecnologias políticas perfazem

[...] como que duas séries (“dois conjuntos de mecanismos”), atuando em níveis distintos, uma no micro, outra no macro, mas sem que por isso se excluam mutuamente. A primeira série tem a seguinte composição: corpo - organismo - disciplina - instituições; na segunda, por seu turno, encontramos: população - processos biológicos - mecanismos regulamentadores (e/ou “previdenciários”) - Estado.

Partindo desse duplo, que forma o poder sobre a vida, são exercidas as mecânicas do poder disciplinar, em operação pelas disciplinas, e do biopoder, em operação por biopolíticas.

74Este título refere-se ao Capítulo III do livro de sua autoria, “Biopolítica, governamentalidade e educação:

3.2.4.1Saber-poder disciplinar: a subjetividade de corpos dóceis e úteis em tecitura das (e pelas) ciências humanas e da medicina

“As Ciências Humanas, que surgem a partir dessa época, decorrem do interesse em se conhecer o que se passa na cabeça das pessoas para melhor dominá -las.” Guilherme Castelo Branco75.

Para Foucault (1999), a mecânica do poder disciplinar começa a se ensaiar nos séculos XVII e XVIII, configurando uma aparelhagem diferenciada em relação às técnicas do poder soberano, aportando procedimentos e tecnologias bastante peculiares.

Essa nova mecânica de poder incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem, mais do que sobre a terra e sobre o seu produto. É um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma descontinua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e a eficácia da quilo que as sujeita. (FOUCAULT, 1999, p. 42, grifos meus).

Trata-se de uma nova economia de poder que se esboça entre os limites do direito de soberania e da mecânica da disciplina, que atua sobre corpos. Nesse sentido, não há uma ‘substituição’ do exercício do poder de soberania pelo disciplinar, mas uma certa coexistência dos modos de operar de um e de outro.

Temos, pois, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até os nossos dias, de um lado uma legislação, um discurso, uma organização do direito público articulados em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de sua soberania ao Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, uma trama cerrada de coerções disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo social. Ora, essa trama não pode de modo algum ser transcrita nesse direito, que é, porém, seu acompanhamento necessário. (FOUCAULT, 1999, p. 44-45).

O poder disciplinar é operado por múltiplas tecnologias que incidem sobre o corpo de forma sutil, vigilante, treinadora e normalizadora; e não mais em mecanismos de violência e opressão explícitos em práticas soberanas de suplícios, esquartejamentos, aplicação de multas, decretação de morte e banimentos. Vigiar mais e punir menos. Docilizar o corpo para torná-lo mais útil, pela articulação do tempo com o espaço. Esta é a lógica de operação das disciplinas.

“Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”.” (FOUCAULT, 2014b, p. 135, aspas do autor).

Conforma-se, assim, uma “anátomo-política do corpo humano dirigida ao seu adestramento, em perspectiva disciplinar individualizada e de encerramento institucionalizado, onde há um lugar especificado para todos: “[...] lugar de criança é na escola; lugar de louco é no hospício; lugar de doente é no hospital” (informação verbal76).

No disciplinamento, são produzidas subjetividades individualizadas, obedientes e produtivas; maximizadas em sua utilidade; normalizadas pela moral que estabelece, a partir do anormal, o normal.

Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinquente mais que o normal e o não-delinquente. É em direção aos primeiros, em todo caso, que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos individualizantes; e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer. (FOUCAULT, 2014b, p. 188).

O desenvolvimento da perspectiva disciplinar aponta para o delineamento de um novo processo de individualização, tomando como referência o produzido no regime feudal. Nesse novo delineamento, Foucault (2014b) chama atenção para o papel desempenhado pelas ciências, análise ou práticas com radical “psico”.

O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade à mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. (FOUCAULT, 2014b, p. 188-189, grifos meus).

Nessa perspectiva, Foucault (2014b) sinaliza que é pela disciplina que se constitui as ciências humanas. É pelos mecanismos de poder, em sua perspectiva genealógica, que se produzem os saberes “psico”. “Se a investigação judicial, tal como se delineou no medievo, foi a matriz jurídico-política das ciências empíricas, a disciplina foi a matriz política das ciências humanas”. (CASTRO, 2016, p. 113, grifos meus).

76Informação fornecida por Sylvio de Sousa Gadelha Costa, no Curso “Michel Foucault: Arqueologia, Genealogia e Ética”, realizado pelo INCERE, em Fortaleza, em 01 de julho de 2017.

Porém não somente delas, ciências humanas, mas também, apoiando e instruindo a constituição do saber e das práticas médicas, onde a produção do saber da medicina, perpassado pela instituição do hospital (Foucault, 1990c), pelas práticas médicas de controle dos corpos doentes, entre outros, aponta para o manuseio de muitas das técnicas e procedimentos disciplinares.

Há, assim, pelas disciplinas, pelo poder disciplinar, a normalização e a medicalização da sociedade. A constituição de saberes e práticas ‘médico-psi’, agenciados pelas ciências humanas e pela operando por relações de poder, efeitos de produção de verdades e de subjetividades

Mas, então, quais seriam os procedimentos disciplinares a subjetivar o adestramento e a modulação das condutas dos indivíduos? A formar subjetividades individualizadas?

Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. (FOUCAULT, 1999, p. 288).

Para adentrar um pouco mais nas tecnologias do poder disciplinar, estreito o diálogo com Foucault (2014b), pela terceira parte de “Vigiar e Punir”, “Disciplina”, onde ele aborda, em “Corpos Dóceis”, a arte da distribuição, o controle da atividade, a organização das gêneses e a composição das forças, utilizando-se, para isso, das práticas militares do Exército e dos processos educacionais da escola; em “Os recursos para o bom adestramento, a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame; e, por fim, “O panoptismo”.

A arte das distribuições” refere-se à distribuição dos indivíduos no espaço, sendo destacados, por Foucault (2014b), os procedimentos:

i) cerca, apontando para a necessidade, às vezes, da constituição de um local que se diferencie de todos os outros e que seja fechado em si mesmo, dando como exemplo os colégios em modelo de convento e internato; e os quartéis;

ii) quadriculamento ou localização imediata, indicando que cada indivíduo deve ter seu lugar e que cada lugar deve ter um indivíduo, onde o que importa é

[...] estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. (FOUCAULT, 2014b, p. 140).

iii) localização funcional, referindo à uma arquitetura que responda às necessidades funcionais, ultrapassando a perspectiva de vigiar e de romper comunicações que possam ser perigosas, à exemplo dos hospitais, cuja exigência de funcionalidade passa a requerer uma organização arquitetônica médico-espacial77;

iv) serialização, afirmando a possibilidade de intercâmbio entre os elementos, onde cada um se define pelo lugar que ocupa na série e pela distância que o separa dos outros, portanto, o que interessa é a posição na fila,

[...] o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações. (FOUCAULT, 2014b, p. 143).

Segundo Foucault (2014b), as disciplinas, pela “arte da distribuição”, criam espaços complexos, ao mesmo tempo: arquiteturais (permitem a fixação e a circulação); funcionais (recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias); e hierárquicos (marcam lugares e indicam valores). Referem-se a espaços que se constituem pelo duplo: real, na medida em que constituem a arquitetura de edificações e espaços em geral; e ideal, pela projeção de caracterizações, estimativas e hierarquias nessa organização.

Configuram, assim, a primeira operação da disciplina que é a constituição de

“quadros vivos”, indicando, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um processo de saber.

“Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma “ordem”.” (FOUCAULT, 2014b, p. 145, aspas do autor). Uma microfísica de um poder que Foucault (2014b) chamou de “celular”.

Outras técnicas disciplinares destinam-se ao “controle de atividades” em interface com a otimização do tempo, o qual deve ter um uso integralmente útil e de boa qualidade, onde o corpo deve estar totalmente aplicado a seu exercício. Para além do disciplinamento do horário,

“uma velha herança”, Foucault (2014b) descreve outros modos característicos das disciplinas

relacionados ao tempo:

i) a elaboração temporal do ato, estabelecendo um “programa” que prescreve e controla o desenvolvimento dos atos e dos gestos, desenhando uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento, decompondo seus elementos e encadeando a ordem de sua realização pela definição da posição do corpo, determinação da direção, amplitude e duração dos movimentos; “[...] o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder”. (FOUCAULT, 2014b, p. 149);

ii) a correlação do corpo e do gesto, requerendo a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, ou seja, é o corpo bem disciplinado, em sua totalidade, que possibilitará a realização de um gesto qualquer de forma eficiente e ágil;

iii) a articulação corpo-objeto, dispondo todas as relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula, descrevendo, para isso, todos os elementos do corpo e do objeto, bem como, prescrevendo explícita e coercitivamente os modos de contato entre um e outro em amarras de poder a definir o complexo corpo-objeto;

iv) a utilização exaustiva, preconizando uma economia positiva do tempo em uma organização detalhada de seu uso, que possibilite maior rapidez com o máximo de eficiência, evitando o desperdício de tempo entre uma atividade e outra e extraindo do tempo, a cada vez mais, instantes que produzam mais forças úteis.

O uso do tempo disciplinado produz outro efeito das técnicas disciplinares que é a substituição do “corpomecânico” pelo “corpo natural”:

[...] portador de forças e sede de algo durável; é o corpo suscetível de operações especificadas, que têm sua ordem, seu tempo, suas condições internas, seus elementos constituintes. O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do exercício mais que da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais; corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações funcionais [...] O corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e “celular”, mas também natural e “orgânica”. (FOUCAULT, 2014b, p. 152 – 153, grifos meus).

Na continuidade da discussão da “Disciplina”, em “Corpos Dóceis”, são incluídas as técnicas disciplinares pertinentes à “organização das gêneses e a composição das forças. Na primeira, o autor aponta a necessidade de as disciplinas serem, também, compreendidas como “[...] aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo” (Foucault, 2014b, p. 155), tomando como exemplo a organização militar. Nessa operação, destaca:

i) a divisão do tempo em segmentos menores, sucessivos ou paralelos, decompondo, assim, o tempo em sequências, separadas e ajustadas (o tempo de formação e o da prática);

ii) a organização das sequências de forma combinada segundo uma complexidade crescente, em perspectiva progressiva;

iii) a aplicação, ao final do processo, de uma prova para verificar se o indivíduo atingiu o nível exigido em correspondência à titulação requerida, se sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros e identificar as capacidades de cada um;

iv) o estabelecimento de séries das séries, indicando exercícios que sejam correspondentes ao nível, ao posto ocupado, enfim, à condição atual, mas em perspectiva de séries múltiplas e progressivas.

A serialização das atividades sucessivas permite um investimento na duração do poder em um controle detalhado e em intervenções pontuais para possíveis correção, punição, ajustamento e eliminação. Além disso, possibilita a ‘utilização’ do indivíduo, em conformidade com o nível que apresenta no percurso das séries programadas, extraindo de cada um sua potencialidade até chegar em sua capacidade máxima final.

Há, assim, “[...] a possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e utilizáveis num resultado último, que é capacidade final do indivíduo.” (FOUCAULT, 2014b, p. 157).

Nessa perspectiva, Foucault (2014b) atenta para a prática de exercícios como sendo

[...] a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso. Assim, realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma qualificação [...] O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar. (FOUCAULT, 2014b, p. 158-159)

Em relação a “composição das forças”, está posta a necessidade de a disciplina cumprir algumas exigências, não se limitando à arte de “[...] repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho eficiente”. (FOUCAULT, 2014, p. 161, grifos meus). Esta exigência se traduz de várias formas:

i) na constituição do corpo singular em um elemento, um “corpo-segmento” de uma

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