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Subjetividade, modos de subjetivação e sujeito: atos de serialização e de produção de singularidades desejantes

3 OS JOGOS DE PODER NA MAQUÍNICA DO SUS: A TRÍPLICE PRODUÇÃO DE INSTITUCIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E SABER

3.1 Subjetividade, modos de subjetivação e sujeito: atos de serialização e de produção de singularidades desejantes

Em relação à subjetividade, Guattari e Rolnik (2007, p. 33) indicam a ideia de uma produção de subjetividade, portanto, “[...] de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida”. Não se trata de uma subjetividade instalada em um ‘espaço interior’, intrínseco à natureza humana. “Não existe uma subjetividade do tipo “recipiente” onde se colocariam coisas essencialmente exteriores, que seriam “interiorizadas”.” (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 43, aspas dos autores). Interiorizadas para, assim, gerar o agir, o sentir e o pensar.

Estes autores problematizam o ‘olhar marxista’, que não teria dimensionado a importância estratégica da subjetividade na produção da sociedade capitalística56. Processo, este, que não passou despercebido ou desvalorizado pelas forças sociais que administram a sociedade capitalística. Estas forças, dizem os autores referidos (2007, p. 34), reconhecem a produção de subjetividades como se pondo mais importante do que “o petróleo eas energias”.

Nesse sentido, Guattari e Rolnik (2007) indicam que os “modos de produção

capitalísticos” não operam apenas com valores de troca, da ordem do capital, das “[...] semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam, também, através de um modo de controle da subjetivação [...].” (p. 21). Nessa perspectiva, apontam que “É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais valia econômica ela está também na tomada de poder da subjetividade.” (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 21, grifo dos autores).

56“Guattari acrescenta o sufixo “istico” a “capitalista” por lhe parecer necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do assim chamado “Terceiro

Mundo” ou capitalismo “periférico”, assim como as economias ditas socialistas dos países do leste, que vivem

numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo. Tais sociedades, segundo Guattari, funcionariam com uma mesma política do desejo no campo social, em outras palavras, com um mesmo modo de

A vida, em modos capitalísticos, requer, então, ‘tomar de assalto’ a produção de subjetividade, exercendo um controle sobre os modos de subjetivação e, não somente, dos meios de produção do capital conforme indica o marxismo tradicional.

Discutindo a produção de Foucault sobre os modos de subjetivação, Castro (2016), em seu “Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores”, argumenta que:

Foucault é conduzido a uma história das práticas nas quais o sujeito aparece não como instância de fundação, mas como efeito de uma constituição. Os modos de subjetivação são, precisamente, as práticas de constituição do sujeito. Pode-se

distinguir dois sentidos da expressão “modos de subjetivação” [...] Um sentido amplo

[...] e um mais restrito em relação ao conceito foucaultiano de ética. (CASTRO, 2016, p. 408, grifos meus).

No primeiro sentido, o mais amplo, “[...] os modos de subjetivação são tratados como os modos de objetivação do sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação de conhecimento e de poder.” (CASTRO, 2016, p. 408, referindo-se a Foucault, 1994, em Ditos e Escritos IV, p. 223). Neste sentido, Castro (2016) aponta que a produção dos modos de subjetivação, as “práticas de constituição do sujeito”, para Foucault, refere-se às condições de possibilidade, que produzem as relações entre sujeito e objeto para formar um saber, uma história do pensamento.

Não se tratam de condições formais ou empíricas, mas, sim, de jogos de verdade que estabelecem “[...] as regras segundo as quais o que um sujeito pode dizer inscreve-se no campo do verdadeiro e do falso”. Regras a que deve se submeter para se colocar como “sujeito legítimo do conhecimento”, falando de como algo pode se cambiar para ser um “objeto do conhecimento”. (CASTRO, 2016, p. 408). Seria, assim, uma “história dos jogos de verdade”, onde o sujeito passa a ocupar, também, a condição de produto, objeto do conhecimento, portanto, de estudo, especialmente quando do fenômeno das ciências humanas.

No sentido mais restrito dos “modos de subjetivação”, Castro (2016) refere-se à relação com o conceito foucaultiano de ética, no plano onde o sujeito estabelece uma relação consigo mesmo, em “formas de atividades sobre si mesmo”, as práticas sobre e de si.

Ao problematizar os “os modos de subjetivação”, Foucault põe em discussão a constituição do “sujeito moral e do sujeito ético”. Para isso, discute a produção da moral grega da época clássica, aportando o ético pela ruptura com a moral cristã e articulando a noção do “Cuidado de si” em tempo Antigo e o “Conhece-te a ti mesmo” em tempo Moderno. (FOUCAULT, 2010).

Estendendo o diálogo às contribuições de Deleuze (1992), em “Conversações”, entrevista com Claire Parnet, “Um retrato de Foucault”, o autor acresce que para Foucault a subjetivação “[...] se distingue de toda moral, de todo código moral: ela é ética e estética, por oposição à moral que participa do saber e do poder. Por isso há uma moral cristã, mas também uma ética-estética cristã, e entre as duas57 todo o tipo de lutas e compromissos.” (DELEUZE, 1992, p. 142).

Ainda em “Conversações”, na entrevista à Robert Maggionri, “Rachar as coisas, rachar as palavras”, Deleuze (1992, p. 116) aponta que o termo subjetivação é encarnado em Foucault como os processos de constituição de si, em uma relação da força consigo mesmo e não entre forças como nas relações de poder. Ao falar sobre subjetivação, Foucault não está se referindo ao sujeito

[...] como pessoa ou forma de identidade, mas os termos “subjetivação”, no sentido de processo, e “Si” no sentido de relação (relação a si). E do que se trata? Trata-se de uma relação da força consigo (ao passo que o poder era uma relação da força com outras forças) trata-se de uma “dobra” da força. Segundo a maneira de dobrar a linha da força, trata-se da constituição de modos de existência ou da invenção de possibilidades de vida que também dizem respeito a morte, a nossas relações com a morte: não a existência como sujeito, mas como obra de arte. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar- se deles. Mas os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos. (DELEUZE, 1992, p. 116, grifos meus, aspas do autor). Em outra entrevista, com Dedier Eribon, “A vida como obra de arte”, também em

“Conversações”, Deleuze (1992, p. 120), ao falar do que seria pensar para Foucault, discorre a descoberta de um pensamento como “processo de subjetivação”, “[...] trata-se da constituição de modos de existência ou como dizia Nietzsche, a invenção de novas possibilidades de vida. A existência não como sujeito, mas como obra de arte, esta última fase é o pensamento-artista”. Continuando, aponta que

[...] esses processos de subjetivação são inteiramente variáveis, conforme, as épocas, e se fazem segundo regras muito diferentes. Eles são tanto mais variáveis já que a todo momento o poder não para de recuperá-los e de submetê-los às relações de força, a menos que renasçam inventando novos modos [...] uma produção de modo de existência [...] é um modo intensivo e não um sujeito pessoal. (DELEUZE, 1992, p. 123, grifos meus).

57Tomo a ideia de ética e moral, construída por Deleuze (1992, p. 125), segundo seu entendimento do pensamento

de Foucault, “[...] a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste

em julgar ações e intenções, referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso

A partir desses diálogos, adoto a ideia de que os modos de subjetivação se constituem em processualidade. Em mutação e em inscrição histórica, conformando condições de possibilidades para a efetuação de “jogos de verdade” e composição de “modos de existência”.

Deslocando-se do campo moral, que se produz com regras e condutas a serem adotadas, há “modos de existência”, embates de força em relação a si, que possibilitam resistência em “[...] individuação, pessoal ou coletiva, de um ou de vários. Ora, existem muitos tipos de individuações. Há individuações do tipo “sujeito” (é você..., sou eu...) mas há também individuações de tipo acontecimento, sem sujeito [...]”. (DELEUZE, 1992, p. 143).

Não há, assim, processos de subjetivação pelo continum linear, progressivo e evolucionista das subjetividades e das sociedades. Há produções maquínicas: lutas; confrontos, resistências; submissões. Há movimentos que tensionam as constituições de si, do outro e da sociedade, em modos ético-estético e moral, apoiados por tecnologias e estratégias que positivam sua produção e fortalecimento.

Nessa perspectiva, penso eu, é que Guattari e Rolnik (2007, p. 22) apontam a “cultura

de massa” como um elemento estratégico de uma “subjetividade capitalísitca”, por produzir “[...]

indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão [...]”. Uma produção serializada de indivíduos.

Todavia, não se trata, tão somente, de um processo a formar indivíduos, mas, também, de uma produção de “[...] subjetividade social que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo”,indicando que a subjetividade “[...] é fabricada e modelada no registro social.” (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 22; 40).

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística - tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam - não é apenas uma questão de ideia, ou de significação por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identificações com polos maternos, paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social, e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 36).

Continuando (p.25-26), estes autores afirmam que “[...] produção da subjetividade capitalística gera uma cultura com vocação universal”, que se faz em duas dobras: apoiando a confecção da força coletiva de trabalho e da força coletiva de controle social.

Quando uma potência como os Estados Unidos quer implantar suas possibilidades de expansão econômica num país do assim chamado Terceiro Mundo, ela começa, antes de mais nada, a trabalhar os processos de subjetivação. Sem um trabalho de todos os meios de semiotização econômica, comercial, industrial, as realidades sociais locais não podem ser controladas [...] Todos os fenômenos importantes da atualidade

envolvem dimensões de desejo e da subjetividade.” (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 36, grifos meus).

Nesse processo, os autores referidos fazem uma ressalva fundamental quanto ao engendramento de uma “cultura geral” de ordem capitalística. A produção da subjetividade capitalística, nas últimas décadas,

[...] se empenhou, ela própria, em produzir suas margens e de algum modo equipou novos territórios subjetivos: os indivíduos, as famílias, os grupos sociais, as minorias, e por aí vai [...] formas de cultura particularizadas, a fim de que as pessoas se sintam de algum modo numa espécie de território e não fiquem perdidas num mundo abstrato. (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 26, grifos meus).

As “margens” produzidas tecem uma certa ampliação da “lógica de controle social”, incorporando mecanismos e tecnologias, por exemplo, que se desenham em tolerância, em democracia, em liberdade. Há, assim, a formação de territórios confortáveis para ‘acolher’ e ‘fazer calar’, muitas vezes, movimentos de resistência aos modos capitalísticos de subjetividade, de produção da sociedade e às tentativas de controle social.

Maurício Lissovski, em Guattari e Rolnik (2007, p. 39), quando do debate promovido por um diretório do Partido dos Trabalhadores, do Rio de Janeiro, afirma a necessidade de uma prática política

[...] que persiga a subversão da subjetividade de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la. Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à de consciência), temos de retornar o espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam desmoronar. (Grifo meus)

Portanto, há que se ocupar “os espaços da farsa, ali mesmo onde os modos de subjetivação estão a inscrever novos referentes sociais, ético-estéticos, ou a fabricar indivíduos em série, domesticados por estratégias e tecnologias de controle social. Há que se entrar no jogo e inventar “subjetividades delirantes”.

Mansano (2009, p.111), ao discutir “Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação

na contemporaneidade”, sugere que a

[...] dinâmica mutante que os processos de subjetivação vão tomando forma, contando com a participação das instituições, da linguagem, da tecnologia, da ciência, da mídia, do trabalho, do capital, da informação, enfim, de uma lista vasta que tem como principal característica o fato de ser permanentemente reinventada e posta em circulação na vida social. Assim, esses componentes ganham importância coletiva e são atualizados de diferentes maneiras no cotidiano de cada vivente. Por isso mesmo,

eles podem ser abandonados, modificados e reinventados em um movimento de misturas e conexões que não cessa. (Grifos meus).

A possibilidade de mudança dos processos de subjetivação reverbera a ideia de um sujeito que se constitui em efeitos provisórios, sinalizando que brechas e fraturas podem ser instaladas em terrenos de subjetividades, supostamente, cristalizados.

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila em dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 42, grifos meus). Há, desse modo, a produção de uma “subjetividade assujeitada”, “[...] marcada pela conformidade, pela reprodução do idêntico, o achatamento da heterogeneidade, das diferenças, enfim a massificação do cotidiano [...]”, e de uma “subjetividade singularizada”. Sendo, esta, referida pela “[...] criação de novos processos múltiplos e heterogêneos, que engendram relações livres e criativas, onde indivíduos e grupos assumem suas existências de modo singular, criando outros valores, novas formas de pensar e de agir [...]”. (MIRANDA, 2005, p. 41).

Os processos de singularização podem, então, “[...] ser compreendidos como uma espécie de desvio, de escapatória frente às tentativas de traduzir a existência pelo crivo dominante do capital”. (MANSANO, 2009, p. 112). Guattari e Rolnik (2007, p. 56, grifos meus), indicam que os diferentes processos de singularização trazem como traço comum o

[...] devir diferencial que recusa a subjetivação capitalística. Isso se sente por um calor nas relações, por determinada maneira de desejar, por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. É preciso espaço para que isso aconteça. O desejo só pode ser vivido por vetores de singularidade.

Além disso, são processos que produzem e capturam o que se põe em diferenciação, heterogeneidade, variação e, assim, potencializam a constituição de sujeitos singulares que rompem com a serialização de subjetividades e assujeitamentos. Desse modo, o “[...] sujeito se constitui no dado”, conforme aponta Deleuze (2001, p. 118 apud Mansano, 2009, p. 115).

Pode-se notar que essa consideração de Deleuze também rompe com a noção de uma unidade evidente atribuída ao sujeito, ou seja, com a noção de um ser prévio que permanece. Para ele, o sujeito não está dado, mas se constitui nos dados da experiência, no contato com os acontecimentos. (MANSANO, 2010, p. 115, grifos meus).

A constituição de subjetividades atravessa o cotidiano em perspectiva social, institucional e subjetiva, pondo sua produção como estratégica, principalmente, considerando as possibilidades de ruptura de assujeitamentos fabricados em série.

O que queremos ressaltar é que a força emancipatória na base do SUS só se sustenta quando tomamos como inseparáveis o processo de produção de saúde e o processo de produção de subjetividades protagonistas e autônomas que se engajam na reprodução e/ou na invenção dos modos de cuidar e de gerir os processos de trabalho no campo da saúde. Neste sentido, é preciso avançar, como indica Gastão Wagner (Campos, 2000), a discussão no campo da saúde coletiva propondo esta relação entre produção de saúde e produção de sujeitos, entre atenção, gestão e subjetividade. (BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 566, grifos meus).

Dessa forma, a produção de modos de existência e de subjetividades singulares requerem a problematização da institucionalização do regime de cidadania constitucional, em diálogo com a produção da saúde e o exercício do saber-poder. Na sequência, passo a discutir a arqueogenealogia foucaultiana.

3.2 Arqueogenealogia: o saber-poder em potência para ver-dizer-mapear a produção

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