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Genealogia do poder: o abandono de postulados e o exercício da microfísica do poder

3 OS JOGOS DE PODER NA MAQUÍNICA DO SUS: A TRÍPLICE PRODUÇÃO DE INSTITUCIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E SABER

3.2 Arqueogenealogia: o saber-poder em potência para ver-dizer-mapear a produção maquínica do SUS

3.2.2 Genealogia do poder: o abandono de postulados e o exercício da microfísica do poder

“As genealogias são, muito exatamente, anticiências [...] Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos,

os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder , que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa.

É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar o combate”.

Michel Foucault61.

No curso em “Defesa da sociedade 62, aula de 07 de janeiro de 1976, entre outros aspectos, Foucault (1999) faz a discussão sobre o que está em jogo na genealogia do poder. Estabelece, assim, um diálogo com a concepção marxista do poder, indagando:

[...] o que é esse poder, cuja irrupção, cuja força, cuja contundência, cujo absurdo apareceram concretamente no decorrer destes últimos quarenta anos, ao mesmo tempo na linha de desmoronamento do nazismo e na linha de recuo do stalinismo? O que é o poder? Ou melhor - porque a pergunta: "O que é o poder? (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Para ele, o que se põe em jogo na genealogia do poder é a perspectiva de mapear quais são os seus mecanismos, seus efeitos, as suas relações, os dispositivos que são operados no campo social. “Grosso modo, acho que o que está em jogo em tudo isso e o seguinte: a análise do poder, ou a análise dos poderes, pode, de uma maneira ou de outra, ser deduzida da economia? (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Este autor problematiza, assim, a questão da “funcionalidade econômica” do poder, cuja função primordial seria a de manter as relações de produção e fortalecer a dominação da classe burguesa sobre a proletária. O poder político estaria, dessa forma, concentrado na economia, sendo ela sua razão de ser histórica.

Como então proceder uma análise não econômica do poder?

Para responder a esta questão recorro as proposições feitas por Deleuze (2013), em “Foucault, no capítulo “Um novo cartógrafo”. Nele, o autor indica ter sido Michel Foucault

61FOUCAULT, 1999, p. 13.

62Curso ministrado no Collège de France, publicado posteriormente como “Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976)”, 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

o primeiro a inventar uma nova concepção de poder, nos idos de 1975, quando da publicação de “Vigiar e Punir”.

Segundo Deleuze (2013), ainda que em poucas páginas, em “Vigiar e Punir 63, e depois com um maior detalhamento, na “História da sexualidade 1: A vontade de saber 64, Foucault sugere o “[...] o abandono de um certo número de postulados que marcaram a posição tradicional da esquerda”. (DELEUZE, 2013, p. 34).

Tratam-se de seis postulados, os quais passo a descrever abaixo, em conformidade com Deleuze (2013).

i) Postulado da propriedade: o poder seria “propriedade” de uma classe que o teria conquistado. Entretanto, Foucault elabora a ideia de que o poder não se coloca como uma coisa a ser apropriada, mas como uma estratégia, um exercício relacional. Seus efeitos devem ser atribuídos a “[...] disposições, a manobras, táticas, técnicas, funcionamentos [...]”. (p. 35). O poder não se apresenta em homogeneidade, mas por singularidade, pelos pontos por onde passa, materializando uma perspectiva funcionalista e relacional;

ii) Postulado da localização: o poder seria de Estado, localizado no aparelho de

Estado, onde mesmo os poderes ditos “privados”, dos proprietários dos meios de produção, por exemplo, estariam centrados em aparelhos de Estado especiais. Foucault indica, porém, que “[...] o próprio Estado aparece como efeito de conjunto ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens e de focos que se situam num nível bem diferente e que constituem por sua conta uma “microfísica do poder”.” (p. 35, aspas do autor). Assim, o funcionalismo do poder em Foucault, não vislumbra um lugar privilegiado como fonte do poder, assegurando que “[...] o poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável porque é difuso.” (p. 36); iii) Postulado da subordinação: o poder estaria subordinado a um modo de produção e, assim, a uma infra-estrutura”. Sobre isto, Foucault indica que as relações de poder, pelo uso de técnicas disciplinares, perpassam todos os espaços e sujeitos, não se colocando em uma posição de exterioridade a outras relações.

Toda a economia, a oficina, por exemplo, ou a fábrica, pressupõe esses mecanismos de poder agindo, de dentro, sobre os corpos e as almas, agindo no interior do campo econômico sobre as forças produtivas e as relações de produção. (p. 36)

63FOUCAULT, 2014b. 64Id., 1999.

Ou seja, o processo de subjetivação é produzido não apenas pelos aparelhos ideológicos do Estado, situados no âmbito da “super-estrutura”. O poder pressupõe um regime de imanência, onde focos de poder e as técnicas disciplinares formam diferentes segmentos e micropoderes que não só coexistem, como atuam uns sobre os outros;

iv) Postulado da essência ou do atributo: pressupõe que o poder teria uma essência, qualificando os que o possuem, assim, há os dominantes, os que têm poder, e os dominados, os que não têm. Contudo, Foucault afirma que o poder não se coloca como uma coisa, uma substância que tem essência. Ele é operatório. Não tem atributo, pois é relação. Relação de forças que investe e passa, tanto pelos dominados como pelos dominantes. Uma força atua sobre a outra e sofre reação de outras forças. O poder se coloca como exercício e se insere em todos os lugares, em todas as singularidades, sendo operado por todos, supostamente dominantes e dominados;

v) Postulado da modalidade: o poder agiria por violência ou por ideologia , ou seja, pela força da repressão e pela polícia, por exemplo, ou pela propaganda, iludindo pessoas. Entretanto, o poder não se apresenta somente em sua face negativa pela repressão e pela violência junto aos corpos. Ao contrário, pelas disciplinas, o poder produz corpos dóceis sem, necessariamente, utilizar-se de mecanismos repressivos; pela norma, regula, adestra e controla, produzindo subjetividades assujeitadas. Da mesma forma, o poder não age por ideologia, pressupondo uma essência e uma verdade escondida e manipulada por mecanismos ideológicos, operando uma relação de exterioridade entre o saber e o poder. “Foucault não ignora de modo algum a repressão e a ideologia, mas, como Nietzsche já havia visto, elas não constituem o combate de forças, são apenas a poeira levantada pelo combate.” (p. 38 - 39);

vi) Postulado da legalidade: o poder de Estado exprimir-se-ia na lei, sendo esta concebida ora como um estado de paz, ora como resultado de guerra ou de uma luta ganha pelos mais fortes. Para Foucault, a lei é a própria guerra e sua estratégia em ato.

A lei é uma gestão dos ilegalismos, permitindo uns, tornando-os possíveis ou inventando-os como privilegio da classe dominante, tolerando outros como compensação às classes dominadas, ou, mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente, proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de dominação. (p. 39).

Tomar tais postulados em perspectiva foucaultiana, sem dúvida alguma, produz outros sentidos e modos de ver-dizer-pensar o mundo e suas relações. Implica em sair de um terreno teórico-metodológico polarizado pelo olhar binário: burguesia e proletariado; infra- estrutura e super-estrutura; poder no Estado e ideologia nos aparelhos do Estado; repressores e reprimidos; enfim, um conjunto de dualidades, cujas partes se prendem uma a outra, em causa e efeito, efeito e causa.

Pensar o SUS como uma produção maquínica, em conformidade com as argumentações em produção nesta Tese, requer um olhar que desnaturalize os regimes de luz e de linguagem postos em visibilidade e dizibilidade, dando passagem às relações de forças e de poder, pela constituição e captura dos seus mecanismos de operação e de exercício. Traçar o mapa do diagrama de forças em tecitura do real.

Assim, na sequência, avanço um pouco mais na genealogia do poder, estabelecendo, para isso, sua interface com o direito à saúde e o sujeito de direito, seguido do poder disciplinar e do biopoder, este último, destacando as noções de biopolítica e de governamentalidade.

3.2.3 Diálogos sobre o poder: uma interface possível para atualizar o direito à saúde e o

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