Marcos e Lucas correspondem grandemente a Mateus, com respeito às formas literárias em que instruem sobre os ensinamentos e aos atos de Jesus. João, por outro lado, inclui vários sermões mais longos e diá logos de Jesus com vários públicos. Essas formas, por sua vez, podem ser divididas em várias subcategorias.
Em primeiro lugar, Jesus realiza diálogos longos com indivíduos. João 3 e 4 são grandemente dedicados à apresentação das conversas que Jesus teve com Nicodemos e com a samaritana. Esses dois indivíduos contrastam entre praticamente todas as maneiras imagináveis, incluin do sexo, religião, etnia, acesso à educação, moralidade, honra e poder. Mas as contribuições de Nicodemos à sua conversa se tornam progres sivamente mais breves e demonstram a sua crescente perplexidade, ao passo que a samaritana mantém o nível de sua conversa com o Senhor Jesus, como uma parceira que responde a Jesus com fé, e se torna uma evangelista para o seu próprio povo. A justaposição dos dois persona gens em capítulos consecutivos torna ainda mais evidente o contraste entre eles, e sugere que o objetivo de João é surpreender os seus leito res com a revelação de quem crê ou não. Como acontece com o tema da "grande inversão" nos Evangelhos Sinóticos, somos convidados a considerar quem são as pessoas comparáveis a estas no nosso mundo, e como elas desafiam as nossas expectativas a respeito de quem mais provavelmente irá crer, e quem não o fará.34
Em segundo lugar, alguns dos discursos de Jesus, apresentados sem interrupção por João, demonstram quiasmo, isto é, uma estrutura para lela invertida. João 5.19-30 possibilita um claro exemplo, como demons tra o esquema abaixo:
Princípio da imitação + raciocínio (vv. 19,20a) (v. 30) Ensinamento sobre "m aravilhar-se" (v.20b) (vv. 28,29)
Exemplos de vida/juízo (vv.21-23) + propósito ou razão
Um duplo "A m ém "
sobre a salvação (v.24) (v. 25)35 (vv. 26,27)
Como o Cristão Deve A plicar o Novo Testamento à Vida? 123
O propósito de um quiasmo é colocar o clímax da construção no centro, e não no final, da passagem. Assim, a ideia principal deste "ser m ão" aparece nos versículos 24 e 25, com a ênfase repetida de Jesus de que quem ouvir a sua palavra, e crer, viverá eternamente. A interpreta ção e consequente aplicação deverá se concentrar nesta "grande ideia". Aqueles que confiam em Cristo podem vivenciar uma qualidade de vida diferente neste mundo (v.24) assim como no mundo futuro (v.25). É esta a nossa perspectiva para a vida cristã e para a vida das nossas igrejas?
Todo o Sermão de despedida de Jesus (Jo 14-16) parece, sim ilarm en te, arranjado sob a forma de quiasmos, embora nem cada cabeçalho de seção incorpore claramente todos os detalhes contidos nesta seção:
14.1 Introdução: Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.
16.33 Conclusão: Que em mim tenhais paz, apesar das aflições do mundo.
14.2-14 Jesus está indo para junto do Pai (preparar um lugar/ Ele é o caminho / o Pai está nEle)
16.17-32 Jesus está indo para ju nto do Pai (a tristeza se converterá em alegria / pedir ao Pai no nome de Jesus)
14.15-21 Jesus promete o
Consolador (o Espírito da verdade, para estar com os discípulos)
16.5-16 Jesus promete o
Consolador (o Espírito da verdade para convencer o mundo e guiar os discípulos em toda a verdade) 14.22-31 A revelação de Jesus
aos discípulos e não ao mundo (o ensinam ento do Espírito versus o príncipe das trevas)
15.18-16.4 O ódio do mundo e a rejeição ao testemunho dos discípulos (o Espírito capacita às testemunhas)
15.1-8 A videira e os ramos: estar em Jesus / produzir muitos frutos
15.9-17 Am ar como Jesus / dar a si mesmo com o sacrifício36
Se algo parecido com este esquema for o alvo, então certamente o ponto mais importante, novamente, aparece no material central de
15.1-17, que certamente é crucial teologicamente. Os crentes devem es tar tão conectados a Jesus que o seu modo de vida se torne como o dEle, ao ponto de morrer pela sua fé, se as coisas chegarem a este ponto. No nosso mundo ocidental, de incontáveis profissões de comprometimen to cristão, acompanhadas por tão pequenas modificações no compor tamento, vale a pena perguntar quantos crentes realmente pertencem a Cristo.
Um terceiro tipo de discurso é bem exemplificado pelo sermão de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, em João 6.25-59. Este material (vv. 31-58) forma uma unidade que segue a forma literária e retórica dos judeus, conhecida como um proem midrash?7 Um texto das Escrituras é introduzido para discussão (v. 31), e então é comentado e parafrasea do (vv. 32-40). Certos elementos desta discussão levam a uma segunda passagem das Escrituras (vv. 41-44), que é, então, explicada (vv. 45-47). Finalmente, a atenção retorna à primeira passagem, com explicações adicionais (vv. 48-58). O tema que une aqui este material é a alusão das Escrituras ao "pão do céu ".38 Audaciosamente, Jesus está declaran do ser o próprio Pão da Vida, propiciando nutrição espiritual para o povo de Deus, assim como Yahweh tinha fornecido pão literal no de serto (o maná) durante as peregrinações dos israelitas nos tempos de Moisés. As aplicações, portanto, devem se concentrar nesta passagem das Escrituras e na reivindicação de Jesus de tê-la cumprido. A nutrição espiritual tem precedência à nutrição física para os crentes, e somente em Cristo este sustento está verdadeiramente disponível.
Uma quarta categoria de sermão de João encontra Jesus dialogando
com as multidões. João 7.14-52 revela um efeito característico desta forma de sermão, ilustrado nos Evangelhos Sinóticos por Jesus falando em parábolas (Mc 4.10-12), especificamente, a polarização da audiência de Cristo (veja especialmente João 7.40-52). Embora o Novo Testamento apresente inúmeros e diversos modelos para evangelização, mais cedo ou mais tarde a nossa apresentação do Evangelho deverá ser clara e indicar suficientemente que exige uma decisão. Quando isso acontecer, se tivermos representado a mensagem adequadamente, alguns serão atraídos para se tornar crentes, e outros serão repelidos. Se nós jamais tivermos uma resposta que não seja a neutralidade ou a indiferença, provavelmente não teremos explicado de forma adequada o que está em jogo!
João 8.31-59 oferece um segundo exemplo de Jesus em diálogo com as multidões, ilustrando vividamente um lado desta resposta polarizada.
Como o Cristão Deve A plicar o Novo Testamento à Vida? 125
Aqueles que pareciam, realmente, crer em Jesus no início do diálogo (vv. 30,31) estão entre os que tentam apedrejá-lo no final do capítulo (v. 59). Eles percebem somente blasfêmia quando Jesus se refere a si mesm o com o nome divino de Êxodo 3.14 (v. 58 — "antes que Abraão existisse, eu sou" [o itálico é meu]). M etodologicamente, essa passagem ilustra vários princípios essenciais envolvidos na aplicação dos sermões e diálogos expostos no Evangelho de João. Em praticamente cada um deles, aparece uma declaração cristológica importante, frequentemente articulada na forma de uma declaração do tipo "Eu sou" — Jesus decla rando ser o Pão da Vida, a Água Viva, a Ressurreição e a Vida, e assim por diante. Quaisquer que sejam os outros ensinamentos contidos em cada passagem, a obediência não é completa, até que reconheçamos Jesus por quem Ele declara ser — a encarnação do próprio Deus.
Além disso, não é a profissão inicial de fé, mas é "estar" nEle o que importa (do grego, menõ — um verbo que a versão ARA traduz nor malmente como "perm anecer"). Paradoxalm ente, o Evangelho de João tem algumas das mais fortes declarações em o Novo Testamento sobre a segurança do crente (por exemplo, Jo 6.39,40; 10.29), ao passo que insiste que aqueles que não permanecerem em Cristo serão "tirados" (15.2). Aparentemente, João acredita que somente quando se examina a vida de um indivíduo e se observa se ele permaneceu na fé ou se afas tou dela, é possível determinar se foi um crente genuíno (1 Jo 2.19). A segurança vem quando a pessoa continua — verbo no presente — a crer (1 Jo 5.13).39 E os sermões que João nos traz, de Jesus dialogando com as multidões e as autoridades judaicas, fornecem alguns dos exemplos mais claros do Novo Testamento deste princípio.
Finalmente, à medida que Jesus se aproxima do fim da sua vida, João o retrata em extensas exortações aos seus discípulos. Praticamente to dos os princípios necessários para aplicar estas mensagens emergiram em outro ensinamento do Evangelho sobre o discipulado. Mas uma característica singular aparece em 17.20-23. Este é o único ponto dos Evangelhos, em que Jesus se refere diretamente a nós, que vivemos no século XXI! Aliás, Ele se refere a todos os crentes da era pós-apostólica, quando ora, não apenas pelos discípulos presentes com Ele, mas "tam bém por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em m im " (v. 20). Todos os que vieram à fé depois da morte dos doze, o fizeram por causa da Palavra oral ou escrita que preservou as verdades do século I. Assim, deve ser muito importante ver o que Jesus pediu em oração para esta comunidade de seus seguidores ao longo dos séculos. De maneira im
pressionante, Ele ora pela sua unidade, uma unidade que, de alguma maneira, se assem elha à unidade que Ele tem com seu Pai, e para que "o mundo conheça" que Cristo era realmente enviado dos céus (v.23). Enquanto alguns divisores na História da Igreja, sem dúvida, foram necessários para preservar a doutrina cristã fundamental, Deus não pode estar satisfeito com as milhares de divisões da Igreja que tiveram lugar ao longo da história e por todo o mundo, por questões muito mais triviais. Os crentes genuínos e nascidos de novo devem se perguntar, repetidas vezes, como podem ser mais parceiros, em unidade, de modo que os incrédulos desejarão com partilhar deste amor singular gerado por Deus.40