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Razões para o Silêncio que Persiste

Mas mesmo que todo o meu argumento prove ser convincente até aqui, é natural perguntar por que não há referências ainda mais ex­ plícitas às palavras e obras de Jesus. (A questão se parece, em parte, à questão do capítulo 1, sobre o motivo por que não há mais abordagem não-cristã sobre Jesus). Sob certo ponto de vista, posso afirmar que é surpreendente que tenhamos de fa to encontrado tanto, em vista do pou­ co ou nenhum conhecimento que Paulo tinha de Jesus durante o início da sua vida, a sua personalidade e o seu ministério independentes, o contexto modificado da sua missão no mundo greco-romano, e outros motivos. No entanto, há muitas outras coisas que podem ser ditas em resposta à pergunta "por que não há m ais?"45

Em primeiro lugar, devemos nos lembrar de que nenhuma das cartas de Paulo reflete a sua evangelização inicial das comunidades às quais ele escrevia. Sem dúvida, quando Paulo e outros pregadores cristãos da prim eira geração apresentavam o Evangelho às pessoas que não o tinham ouvido anteriormente, tinham que contar a história de Jesus com algum nível de detalhes. Mas nenhuma das epístolas reflete este estágio do ministério; na verdade, elas o pressupõem e o aproveitam e ampliam. Em resumo, os ouvintes de Paulo sempre conheciam a histó­ ria básica da vida, morte e ressurreição de Jesus. Se não a conhecessem, não teriam se tornado cristãos! Os sermões no livro de Atos que re­

presentam a pregação evangelizadora inicial são resumos drasticamente abreviados do que seriam m ensagens claramente muito mais extensas. Ainda assim, podemos detectar um esquema do que deve ter incluído

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consideráveis informações sobre os ensinamentos e as obras de Cristo. Atos 10.36-38 reflete este esquema com mais clareza:

A palavra que ele [Deus] enviou aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo (este é o Senhor de todos), esta palavra, vós bem sabeis, veio por toda a Judeia, começando pela Galileia, depois do batismo que João pregou; como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo o bem e curando a todos os oprimi­ dos do diabo, porque Deus era com ele.

C ,H . Dodd exagerou apenas ligeiramente, quando sugeriu que este esquema poderia ter servido de estrutura para a narrativa escrita pelo primeiro autor dos Evangelhos, Marcos.4'1 F. D. Moule mostra que um padrão similar pode ser detectado, de maneira genérica, em vários ou­ tros sermões no livro de Atos.47

Em segundo lugar, nenhuma das outras epístolas do Novo Testamento tem um número maior ou referências mais claras à vida e aos ensinamentos de Jesus, mesmo as cartas escritas em épocas sufi­ cientemente tardias para que tivessem conhecimento e fizessem uso dos Evangelhos escritos. Nós vimos, no capítulo 1, que a epístola de Tiago e a primeira epístola de Pedro têm, cada uma delas, algumas alusões, mas não citam Cristo diretamente. As suas datas, no entanto, são alvo de discussão. As cartas que os acadêmicos conservadores e liberais, de igual maneira, normalmente datam de um período suficientemente tardio para que tenham conhecimento dos quatro Evangelhos, são as epístolas de João. Sejam o produto do próprio apóstolo, ou de uma "es­ cola joanina" dos seus seguidores, certamente era de se esperar que fi­ zessem referência às palavras e ao ministério de Jesus, apresentados no Quarto Evangelho, similarmente escrito por João ou seus seguidores. Mas as três epístolas de João não contêm nenhuma alusão incontestável; a única alusão claramente possível envolveria o mandamento de amor de Jesus (compare 1 Jo 2.7-11 com Jo 15.9-17). Assim, parece que as epís­ tolas simplesmente não são o lugar onde podemos esperar encontrar muitas referências aos detalhes da vida de Cristo.

Em terceiro lugar, estes dois primeiros itens sugerem que as epístolas representam um gênero literário que, na opinião dos primeiros cristãos, não era adequado à disseminação de informações históricas básicas so­ bre o Jesus terreno. Eles não estavam acostumados ao que nós costuma­ mos chamar de "instruções de discipulado" para os fundamentos da fé.

Essa conclusão é corroborada pela literatura epistolar da primeira m e­ tade do século II. Novamente, podemos encontrar um número razoável de alusões verbais às palavras de Jesus e algumas citações mais diretas, mas não em maior proporção às referências que há nas epístolas de Paulo. Isto se modifica quando passamos para a segunda metade do século II, época em que os Evangelhos já são claramente considerados como Escrituras e são citados mais diretamente e com mais frequência, como poderíam os ter esperado que as epístolas anteriores também fi­ zessem. Mas se o período de 100-150 d.C. não revela ainda este padrão, certamente não deveríamos esperar vê-lo em cartas que já tinham sido escritas por Paulo nos anos 40, 50 e 60 do século I.48

Em quarto lugar, a prim eira geração do cristianismo reconheceu rapidam ente que os aspectos mais importantes sobre a vida de Jesus eram a sua morte e ressurreição. Os seus ensinam entos éticos e os seus poderosos milagres, em última análise, teriam se provado irrelevantes, se Ele não fosse quem dizia ser, um Messias divino que veio para expiar os pecados do mundo e derrotar a morte. Assim, quando Paulo se refere ao Jesus terreno, é mais frequente que seja ao clímax da sua vida — quer dizer, à sua morte e ressurreição (por exemplo, G1 3.10-14; 1 Co 2.1-4; 15.1-58; 2 Co 5.11-21; Rm 3.21-31). Outra maneira de deixar isso claro é observar que Paulo, como os demais autores do Novo Testamento, considerava os eventos da cruz, do sepulcro vazio, da exaltação e de Cristo enviando o Espírito no Pentecostes, o início de uma nova era na história da redenção. Depois do Pentecostes, existiram coisas muito mais importantes a ensinar sobre Jesus do que apenas o seu ministério terreno em Israel, por mais significativo que fosse.49

Em quinto lugar, como mostrará a próxima seção, há uma abundan­ te continuidade entre Jesus e Paulo, em temas teológicos mais amplos, pressupondo um conhecimento abrangente da tradição de Jesus, até mesmo quando citações, alusões, ou repetições não estão explicitam en­ te presentes. Quanto mais estamos de acordo com a tendência acadê­ mica atual de reconhecer Paulo como apoiado em antecedentes cristãos judaicos m ais antigos e não em helenistas mais recentes, mais esta será a conclusão natural.5"

Em sexto lugar, o mesmo sentido de orientação ou inspiração divina que deu a Paulo a liberdade de declarar cada palavra como sendo um ministério apostólico tão autorizado como os que tinham os líderes da igreja em Jerusalém (veja especialmente G 1 1 - 2; 1 Co 9; 2 Co 10 - 13) também lhe dava a liberdade de escrever as coisas usando as suas pró­

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prias palavras. Se ele podia citar ou fazer alusão ao Antigo Testamento, sem estar limitado pelas suas palavras ou pelo seu sentido original, em muitos casos, em razão da sua percepção do que Deus estava dizendo, por intermédio do texto, ao seu povo, em uma nova era, certamente também podia promulgar uma doutrina autorizada e um comporta­ mento ético, sem citar, de modo enfadonho ou insípido, as palavras de Jesus a cada momento. E mesmo quando ele realmente se referia às palavras de Jesus, elas formavam uma tradição "viva, tradição que evidentemente era adaptável a diferentes necessidades e diversos con­ textos", sob uma forma que "ainda não estava definida".51 Na verdade, é possível que as tradições das próprias palavras de Jesus existissem em duas formas separadas, uma mais fixa, por causa do uso específico (como a tradição litúrgica da Ultima Ceia) e outra, provavelmente uma coletânea muito maior e mais fluida, por analogia às abordagens judai­ cas da Torá oral e escrita, respectivamente.52

Em sétimo lugar, qualquer que fosse o grau em que os apóstolos de Jerusalém ou emissários que afirmavam representá-los enfatizassem seus laços pessoais com o Jesus histórico (At 15; Gl 1 - 2 ) , laços aos quais Paulo sabia que não poderia se equiparar, ele poderia ter preferido conscientemente se distanciar da tradição das obras e palavras terrenas de Jesus. Ao contrário, somente se concentrando no seu encontro direto com o Senhor ressuscitado, e no seu subsequente chamado e na missão recebida dEle, Paulo podia esperar convencer as pessoas da exatidão da sua mensagem, e da autoridade que tinha para promovê-la.

Em resumo, qualquer que seja a maneira como avaliamos até que ponto Paulo conhecia e utilizava a tradição sobre Jesus, há inúmeras razões por que não a vemos com mais frequência e mais explicitamente nas suas epístolas. Mas talvez seja mais fácil subestimar do que superes­ timar o quanto realmente aparece em suas epístolas, e o quanto Paulo realmente conhecia.