• Nenhum resultado encontrado

A única maneira completamente adequada de responder a esta per­ gunta seria considerar as supostas contradições, uma por vez, o que resultaria em um livro muito mais extenso. Em outros trabalhos, in­ vestiguei praticamente todas as famosas supostas contradições, tan­ to entre os três Sinóticos, como entre os Sinóticos e João, e recom en­ do que o leitor leia estas discussões completas.46 Uma considerável maioria das aparentes discrepâncias desaparece, quando recordamos os padrões mais livres de narração histórica do mundo antigo (veja o tópico "O s Gêneros dos Evangelhos e do Livro de A tos"). Mas mesmo o nosso mundo moderno e científico preserva convenções similares. Ninguém pensa em acusar o repórter de um erro quando ele declara: "O Presidente Fulano de Tal anunciou hoje que..." quando, na verdade, foi o seu secretário de imprensa que leu um documento, escrito por um roteirista e supostamente apresentado ao presidente, ainda que rapida­ mente. Assim , não deveríamos ficar surpresos quando Mateus converte a narrativa do centurião gentio que pedia um milagre de Jesus, por meio de judeus intermediários (segundo Lucas 7.6) em uma narrativa em que o próprio centurião vem com o pedido (Mt 8.5). Agir por meio de um intermediário pode ser descrito como agir por si mesmo.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser fornecidos. A Última Ceia foi celebrada na noite da refeição da Páscoa (aparentemente segundo Marcos 14.12-16), ou antes dela (aparentemente segundo João 18.28 e 19.14)? Provavelmente foi na Páscoa, uma vez que João 18.28 parece f azer referência à festa da Páscoa que dura uma semana, ao passo que 0 versículo 19.14 pode ser interpretado como o Dia da Preparação para

1> slibado durante a semana da Páscoa (como na NVI). Jesus enviou os

demônios aos porcos em Gerasa (Mc 5.1; Lc 8.26, ARA) ou em Gadara (Mt 8.28)? Provavelmente foi perto de Khersa — uma cidade na mar­ gem oriental do mar da Galileia, cuja grafia em grego poderia facil­ mente resultar em Gerasa — na província de Gadara.47 O que queremos dizer aqui é que nenhum destes problemas é novo. Os pais da Igreja 1 Yimitiva, escrevendo no período do século II a VI, estudaram o Novo

Iestam ento o suficiente para reconhecer todas as aparentes discrepân- i ias no texto que os críticos modernos enfatizam. O famoso comentário de Agostinho, do século V, intitulado Harmonia dos Evangelhos, trata de

um grande número destas discrepâncias. Hoje, praticamente qualquer comentário evangélico detalhado sobre um dos quatro Evangelhos ou o livro de Atos incluirá possíveis soluções para estes problemas na sua exposição, passagem a passagem. Nem todas as harmonizações são igualmente convincentes, e muitas "contradições" têm mais de uma solução plausível. Mas a questão é que homens e mulheres cuidadosos e atentos, ao longo da História da Igreja, e plenamente cientes destes problemas, também reconheceram que nenhum deles precisa minar a confiança do outro no que diz respeito à confiabilidade da Bíblia. É muito frequente que céticos modernos deem a entender que, se nós conhecemos hoje algo que nossos predecessores não conheciam, isso

agora torna indefensável a fé na confiabilidade histórica das Escrituras. Essa declaração é simplesmente falsa.

De fato, o que mudou são as atitudes de muitos acadêm icos com relação à harm onização. Com o observam os acima, os historiadores clássicos são m uito mais confiantes sobre a nossa capacidade de re­ cuperar fatos históricos de antigos documentos, m esm o quando eles parecem conter pequenas contradições, do que o são muitos acadêm i­ cos bíblicos. Um excelente exem plo disso vem da obra do historiador canadense, Paul Merkley. A travessia de Júlio C ésar do rio Rubicon quando retornava da Gália à Itália em 49 a.C. frequentem ente é apre­ sentada como um fato indiscutível da história rom ana, que também teve im portância histórica. Com este ato, César se com prom eteu com a guerra civil, e o curso da república romana foi alterado, para sempre; ela se tornaria um império. O que frequentemente não é mencionado é que não sabem os, ao certo, a data exata, nem o local desta traves­ sia. Além disso, como acontece com os Evangelhos, nós temos quatro relatos do evento, narrado por historiadores posteriores — Velleius Paterculus, Plutarco, Suetônio e Appian. Som ente o primeiro destes quatro hom ens nasceu antes da metade do século I depois de Cristo. Todos afirmam ter confiado em uma mesma testem unha ocular, ou seja, Asnius Pollio, cujas obras desapareceram com pletam ente. Os quatro relatos variam aproxim adam ente da mesma maneira que os Evangelhos, quando seus conteúdos se sobrepõem. Suetônio inclu­ sive chega a introduzir um m ilagre no seu relato, declarando que a decisão de César foi motivada porque ele viu "um a aparição de tam a­ nho e beleza sobre-hum anos" que "estava sentada à margem do rio, tocando uma flauta de pastor". M as a travessia de César do Rubicon continua a ser citada como um dos mais bem estabelecidos fatos histó­

() N ovo Testam ento É h istoricam en te Confiável? 35

ricos da antiguidade. Uma confiança sim ilar deve ser transferida para os quatro Evangelhos, que perm anecem m uito próxim os, em tem po e acesso aos eventos que eles narram .48

Em outros trabalhos, mostrei como os historiadores da vida de Alexandre, o Grande, assim como estudantes de Josefo, que com pa­ ram os seus vários textos sobre uma dada pessoa ou evento, adotam regularmente uma forma cuidadosa de harm onização de detalhes aparentemente discrepantes. Somente porque algumas harmonizações se mostram não plausíveis, isto não significa que todo o método deva ser descartado. Por exemplo, é improvável que a solução ao proble­ ma das várias localidades onde Jesus cura o cego, perto de Jericó, dos Evangelhos Sinóticos (quando Jesus estava "sain d o" da cidade — Mc 10.46; M t 20.29 — ou quando Ele estava "chegando perto" de Jericó — 1 ,c 18.35) se dá com a suposição de duas Jericós diferentes, uma delas, o local do Antigo Testamento que está em ruínas, e a outra, a cidade do Novo Testamento, como já foi sugerido algumas vezes. Nenhum ouvinte do século I suporia que um narrador tivesse em mente uma cidade desabitada desde muitos séculos, quando falasse simplesmen- te de "Jericó ". A expressão grega, traduzida com o "chegando perto" pode simplesmente querer dizer "estando na proximidade de".4*' Por outro lado, somente Mateus fala de Jesus curando dois cegos nesta nar­ rativa (Mt 20.30-34). Mas nem Marcos nem Lucas declaram que havia

apenas uma pessoa presente, de modo que é natural imaginar que es- les dois autores do Evangelho, ou a tradição oral que eles herdaram, tinham simplesmente sim plificado o relato e falado somente daquele que interagiu mais diretamente com Jesus e cujo nome foi preservado

- Bartimeu. Esse tipo de harmonização "aditiva" é comum em estudos acadêmicos de outros personagens antigos.51’

Mas o que acontece com as diferenças muito maiores entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João? Novamente terei que re­ comendar ao leitor a minha discussão muito mais ampla deste tema, em um livro inteiro sobre o assunto.51 Mas podemos fazer algumas genera­ lizações aqui. Em primeiro lugar, com o risco de declarar o óbvio, uma das razões por que João parece tão diferente é porque ele não depen­ de diretamente de um ou mais Sinóticos, da mesma maneira como os Evangelhos de Lucas e M ateus dependem do de Marcos. Se os quatro evangelistas tivessem escrito, totalmente independente uns dos outros, haveria tanta diversidade de detalhes entre os Sinóticos como há entre os Sinóticos e João. Embora usando hipérboles, o comentário final de

João, de que "H á, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez", de modo que "se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem ", certamente se aplica a todos os personagens — principais, complexos e influentes — da história. Se não tivéssemos três Evangelhos tão semelhantes, as diferenças entre João e qualquer um dos outros não seria tão incisiva.

Em segundo lugar, e intimamente relacionado com isso, nós deve­ mos nos lembrar do quanto João e os Sinóticos têm em comum, e não nos concentrar meramente nas diferenças. Uma lista parcial incluiria:

1. O retrato de João Batista como cumprimento de Isaías 40.3 e como o precursor do Messias;

2. O contraste entre o batismo de João, com água, e o futuro batism o do Messias, com o Espírito Santo;

3. O Espírito ungindo Jesus, como testificado por João Batista; 4. A refeição dos cinco mil;

5. Jesus andando sobre a água;

6. A ordem a um paralítico: "Toma a tua cama e anda"; 7. A cura do filho de um centurião romano, à distância; 8. Curas milagrosas que infringem as leis do sábado, que

proibiam o trabalho neste dia;

9. A recusa de Jesus em realizar milagres meramente para satisfazer os seus oponentes;

10. O fracasso das tentativas de prender Jesus, prematuramente; 11. A amizade de Jesus com a reflexiva Maria e a atarefada

Marta;

12. A insistência de Jesus na necessidade de um novo nascimento espiritual;

13. A promessa de uma colheita abundante para os lavradores espirituais;

14. A rejeição de um profeta na sua terra natal; 15. O juízo pelas obras dos incrédulos;

16. O Pai revelando o Filho, e ninguém conhecendo plenamente o Pai, senão o Filho;

17. Jesus e os seus discípulos, como "a luz do m undo"; 18. O ensinamento de Jesus, funcionando, em parte, para

endurecer os corações daqueles que já o tinham rejeitado, cumprindo Isaías 6.9,10;

() N ovo Testam ento É historicam en te Confiável? 37

20. O verdadeiro discipulado como a atitude de servir;

2 1. Jesus resistindo à tentação para abandonar o caminho para a cruz;

22. Receber Jesus é como receber àquEle que o enviou; 23. Um discípulo não é m aior do que o seu Mestre;

24. A promessa de que o Espírito Santo dirá aos seguidores de Jesus o que deverão dizer no futuro;

25. A futura expulsão dos crentes das sinagogas judaicas; 26. A dispersão dos crentes expulsos, por todo o mundo

conhecido; e

27. Os discípulos recebem a autoridade para perdoar ou reter os pecados dos outros. 52

E a lista poderia ser ainda maior.

Em terceiro lugar, as circunstâncias singulares que conduzem à com posição do relato do Q uarto Evangelho, pela decisão de João de narrar episódios diferentes da vida de Cristo. Com binando evidências internas e externas, parece que o Evangelho de João foi escrito no final tio século I, para as várias congregações de Éfeso e das suas redon­ dezas, para combater desafios semelhantes aos que a igreja daquela com unidade estava enfrentando. Por um lado, o professor gnóstico Cerinto tinha conquistado seguidores entre os cristãos dali, prom o­ vendo, entre outras coisas, um "docetism o" que aceitava a divindade de Jesus, mas negava a sua hum anidade. As inúm eras referências, por lodo o Evangelho de João, a Jesus realm ente se tornando carne, tendo em oções, comendo e bebendo, sendo subordinado ao seu Pai, e não lazendo nada além de realizar a vontade do seu Pai, o que finalm ente incluiu m orrer uma m orte torturante e com pletam ente humana, tudo isso, sem dúvida, está incluído para com bater este erro teológico. Por outro lado, no final do século I, a separação entre igreja e sinagoga se foz com pleta principalm ente porque os líderes judeus tinham exco­ mungado o seu próprio povo, que professava a fé em Jesus, como o Messias. Assim , uma alta porcentagem das passagens exclusivas de |oão envolve Jesus pregando a líderes judeus, ou discutindo com eles, para justificar seus atos e suas declarações. A leitura destas histórias devia encorajar os cristãos judeus de que eles tinham realmente to­ mado a decisão correta, seguindo Jesus e tam bém dar-lhes "m u n ição" evangelística, para lidar com seus amigos judeus e seus fam iliares não salvos.53

Em quarto lugar, há inúmeros exem plos fascinantes de integração entre o Evangelho de João e os Sinóticos em que um episódio ou de­ claração nos Sinóticos faz sentido somente se tiverm os informações exclusivas de João, e vice-versa. Por exemplo, João 3.24 faz uma refe­ rência breve a um a época em que "ainda João não tinha sido lançado na prisão", mas em nenhum a outra passagem no Evangelho de João há qualquer referência a este aprisionam ento. Supostam ente João es­ tava presum indo que os seus ouvintes tivessem pelo m enos ouvido falar sobre este evento, narrado em Marcos 6.14-29 e passagens pa­ ralelas. Ou, novam ente, no seu relato sobre os julgam entos de Jesus, João quase om ite com pletamente a aparição culm inante de Cristo diante do Sinédrio, presidido por Caifás. Mas faz duas observações breves que mostram que ele tem conhecim ento deste evento, quando escreve: "A nás m andou-o, m anietado, ao sumo sacerdote C aifás" (Jo 18.24) e "levaram Jesus da casa de Caifás para a audiência..." (v. 28). Novamente, João deve tam bém supor que o seu público conhecesse a história (ela aparece em todos os Sinóticos — Mc 14.53-65 e passagens paralelas). Enquanto isso, João está interessado em descrever uma au­ diência prelim inar diante do sumo sacerdote anterior, Anás, o sogro de Caifás (Jo 18.13; 19-23).

Em outros casos, a integração trabalha na direção oposta. O s que leem som ente os Evangelhos Sinóticos poderão se perguntar por que os líderes ju deus tiveram que enviar Jesus ao governador rom ano, Pôncio Pilatos (Mc 15.1-3, e paralelas). Se tinham considerado Jesus culpado de blasfêm ia, por que sim plesm ente não o apedrejaram de acordo com a sua lei? Som ente João fornece a resposta: os líderes judeus, sob o governo de Rom a, não tinham perm issão de executar a pena de m orte nestes casos (Jo 18.31). De m aneira similar, os que leem som ente os Evangelhos de M ateus, Marcos e Lucas poderão se perguntar se os prim eiros discípulos de Jesus realm ente deixaram suas ocupações im ediatam ente para segui-Lo na prim eira vez em que Ele os viu. M arcos 1.16-20 e passagens paralelas certam ente po­ deriam ter esta interpretação, sem nenhum a inform ação adicional. M as João 1.35-42 deixa claro que vários dos apóstolos encontraram Jesus pela prim eira vez quando eram seguidores de João Batista. Cada um deles teria testem unhado o seu batism o, fam iliarizado-se com o seu m inistério, e m ais tarde respondeu a um cham ado m ais form al para se tornar um dos doze que literalm ente trabalharam lado a lado com Jesu s.54

O N ovo Testam ento É h istoricam en te Confiável? 39