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Palavras Severas e Tópicos Ausentes

Na seção anterior deste capítulo, eu respondi a inúmeros argumen­ tos contrários à confiabilidade das porções aparentemente históricas do Novo Testamento. Agora é o momento de nos voltarmos para evidên­ cias positivas e adicionais a fav or da sua confiabilidade. Duas destas evidências formam um par natural. Por um lado, há inúmeras "pala­ vras duras" de Jesus nos Evangelhos que os seus primeiros seguidores provavelmente não teriam inventado. Um exemplo de palavra dura é aquele que faz uma exigência muito rigorosa aos discípulos, mesmo quando parece contradizer o ensinamento do próprio Jesus em outras passagens. Por exemplo, Lucas 14.26 declara que Jesus disse aos seus possíveis seguidores: "Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda tam bém a sua própria vida, não pode ser meu discípulo". Esta declaração teria escandalizado um público judeu que levava muito a sério o m andamento mosaico de honrar pai e mãe, um mandamento que Jesus confirma em outras passagens (por exemplo, Mc 7.10). Felizmente para nós, Mateus inclui um ensinamento paralelo de Jesus em um diferente contexto, explican­ do o que Ele provavelmente quis dizer no contexto de Lucas também: "Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de m im "

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(Ml 10.37). Os dois textos em grego estão, naturalmente, traduzindo o nramaico original de Jesus, e nas línguas semitas "am ar" e "od iar" frequentemente significavam "escolher" e "n ão escolher" ou "preferir" r "não preferir".57 O nosso amor por Deus deve superar tanto o nosso .imor pela família, que este se parecerá até m esm o com o ódio, quando se fizer uma comparação. Agora, as palavras são, pelo menos, compre­ ensíveis, embora ainda incrivelmente desafiadoras. Mas se Lucas ou Mateus se sentisse suficientemente livre para manipular as tradições que tinha herdado, como afirmam muitos acadêmicos, certamente teria sido muito mais fácil simplesmente omitir este tipo de frase.

Em outros casos, o que torna uma frase "d u ra " é o fato de que ela |>arece contradizer a divindade de Cristo, que a Igreja Prim itiva tão rapidam ente veio enfatizar. Por exem plo, em M arcos 6.5,6 o poder di* Jesus parece lim itado pela falta de fé em Nazaré: "E não podia lazer ali obras m aravilhosas; som ente curou alguns poucos enferm os, im pondo-lhes as mãos. E estava admirado da incredulidade deles". ( )u, em 13.32, o seu conhecim ento parece lim itado: "M as, daquele Dia c hora [do retorno de C risto], ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o P ai". A teologia cristã entendeu, afinal, esses textos, e falou que Jesus não se utilizava de seus atributos di­ vinos (tais como a onipotência e a onisciência), exceto quando era a vontade do seu Pai. Mas teria sido mais fácil que M arcos sim plesm en­ te om itisse estes dizeres, levando em consideração a confusão que poderiam criar. Alguma coisa, no entanto, o im pediu de excluí-los. Aparentem ente, estes eram "pontos fixos" na tradição que não pode­ riam ser elim inados se as narrativas nas quais eles apareciam fossem relatadas outra vez.58

Um fenômeno inverso também respalda a historicidade substancial dos Evangelhos. Várias controvérsias da Igreja Primitiva, descritas no livro de Atos e nas epístolas, jam ais aparecem nas páginas dos qua­ lm Evangelhos. Se os primeiros cristãos se sentiam livres para atribuir ao Jesus histórico os ensinam entos que eles acreditavam que o Senhor ressuscitado estava revelando a eles, por que nenhum ensinamento de |esus sequer trata destas controvérsias em particular? Nós sabemos, de Atos 15 e Gálatas 2, que a questão da circuncisão, como parte da po­ lítica dos judaizantes para fazer com que os gentios, que estavam se tornando cristãos, obedecessem a toda a lei judaica, ameaçou dividir a Igreja Primitiva. O cam inho mais simples para solucionar a contro­ vérsia teria sido que um dos participantes do Concílio Apostólico de

Atos 15 tivesse citado o próprio ensinamento de Jesus sobre o assunto. Nós, então, esperaríamos que um dos Evangelhos contivesse algum ensinamento de Cristo sobre o tema, se a circuncisão devesse ser exi­ gida dos seus seguidores. Mas nem o livro de Atos nem os Evangelhos contêm uma única palavra atribuída a Jesus para solucionar este deba­ te. Aparentemente, a Igreja Primitiva não se sentiu livre para inventar ensinamentos de Jesus, sabendo que Ele não os tinha proclamado du­ rante a sua vida terrena. Um exemplo similar vem de 1 Coríntios 12-14. Falar em línguas provou causar muita discórdia em Corinto. Qual seria a melhor maneira de solucionar o debate sobre falar em línguas, se­ não citar palavras de Cristo? E certamente nós esperaríamos encontrar algumas palavras de Cristo sobre o tema nos Evangelhos. Mas estas palavras jam ais aparecem! Na verdade, uma lista considerável de con­ trastes pode ser compilada entre questões que foram importantes para Jesus durante o seu ministério pré-crucificação em Israel e questões que eram importantes para a Igreja pós-ressurreição. E o Novo Testamento, coerentemente, as conserva separadas.59

Além disso, pelo m enos em uma ocasião, quando estes interesses se sobrepõem , Paulo claram ente em preende grandes esforços para distinguir o que Jesus disse, durante a sua vida terrena, daquilo que ele acreditava que Jesus lhe estava dizendo, quando escrevia suas epístolas sob inspiração divina. O exem plo em questão aparece em 1 Coríntios, no tema de casam ento e divórcio. Em 7.10,11, Paulo pro­ clama: "A os casados, mando, não eu, mas o Senhor, que a m ulher se não aparte do m arido... E que o m arido não deixe a m ulher". Aqui, Paulo resume o conteúdo do ensinam ento do Jesus histórico em pas­ sagens como M arcos 10.1-12 e paralelas. Mas sobre a questão de um cônjuge incrédulo desejar deixar seu esposo ou sua esposa depois que esta pessoa tivesse se tornado cristã, Jesus não tinha ensinado nada. Assim, Paulo continua, em 1 Coríntios 7.12: "M as, aos outros, digo eu, não o Senhor: se algum irm ão tem mulher descrente, e ela consen­ te em habitar com ele, não a deixe. E se alguma m ulher tem m arido descrente, e ele consente em habitar com ela, não o deixe". Paulo não está dizendo aqui que ele já não está mais escrevendo sob inspiração divina! O versículo 40 deixa claro que ele pensa que todas as suas instruções neste capítulo são orientadas pelo Espírito. Na verdade, Paulo aqui fala com um tom de ironia, uma vez que está com baten­ do oponentes em Corinto os quais declaram que somente eles têm o Espírito. Na verdade, o versículo 12 quer dizer sim plesm ente que

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tem que confiar naquilo que acredita que Deus está lhe dizendo, Ni*m ser capaz de provar isso, citando uma palavra da tradição dos ensinam entos terrenos de Jesus. A mesma explicação, sem dúvida, é v.ílida para o versículo 25. Longe de m esclar casualm ente os ensina­ mentos de Cristo anteriores e posteriores à ressurreição, Paulo cuida­ dosam ente os conserva separados. Tudo isso deve aumentar o nosso i'rédito na confiabilidade histórica dos Evangelhos.60