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O Livro de Atos dos Apóstolos

Muitas das dificuldades para decidir o que fazer com os eventos do livro de Atos derivam da sua natureza transitória. Com a crucificação, a ressurreição e ascensão de Jesus e tendo Deus enviado o Espírito no Pentecostes, nós encontramos a mudança da "era do Antigo Testamento" para a "era do Novo Testamento". O que era perfeitamente apropriado, talvez até ordenado para o povo de Deus, muda frequentemente du­ rante a transição da antiga para a nova aliança. A prim eira geração de cristãos vem a crer que não é mais necessário que ofereçam sacrifícios de animais, porque Cristo é o sacrifício definitivo para o perdão dos pecados. "E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justifi­ cados, por ele é justificado todo aquele que crê" (At 13.39). As leis ali­ mentares são rescindidas (capítulo 10) e não mais há uma terra santa ou um templo único (capítulo 7), como o lugar ideal onde o povo de Deus deva adorá-Lo. Mas os primeiros cristãos não despertaram na manhã seguinte ao Dia de Pentecostes e reconheceram instantaneamente cada uma destas mudanças. As transições vieram gradualmente, o que quer dizer que as aplicações do livro de Atos não podem simplesmente su­ por que cada ato apostólico deva ser imitado.

Assim, não podemos necessariamente deduzir que a purificação de Paulo e o pagamento por determ inados sacrifícios de animais dos cristãos judeus tenha sido uma boa ideia, e muito m enos a vontade de Deus, especialmente quando o plano desejado para reconstruir a con­ fiança entre os críticos de Paulo fracassa desastrosamente (22.20-36). Ainda mais impressionante, os apóstolos lançando sortes (um tipo de rolar do dado sagrado) para definir a substituição de Judas (At 1.26) segue o precedente estabelecido no Antigo Testamento, mas não volta

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a aparecer em o Novo Testamento. A vinda do Espírito Santo para ha­ bitar permanentemente nos crentes no Pentecostes propicia um tipo de orientação indisponível em muitos contextos do Antigo Testamento e torna obsoleto o lançar de sortes.41

Além de prestar cuidadosa atenção ao ponto em que uma prática aparece no desenvolvimento do entendimento do novo concerto pela Igreja, vários outros princípios nos auxiliam a aplicar o livro de Atos. Um segundo passo essencial é procurar as indicações narrativas de Lucas. Quando nenhuma instrução direta é dada aos crentes, é fácil se pergun­ tar se determinada história oferece modelos que devem ser imitados ou evitados. O compartilhar comunitário dos primeiros cristãos, de Atos 2.42-47 e 4.32; 5.11 é citado, por um lado, como um modelo exem plar e um motivo para apoiar o comunismo dos tem pos modernos, e, por outro lado, como uma experiência fracassada e um costume a evitar! Ambas as perspectivas vão além do que o texto declara explicitam en­ te, mas é impressionante que Lucas descreva os resultados de hábitos como o cuidado com os pobres, a alegria, o louvor a Deus, a alta con­ sideração pelos apóstolos, as curas milagrosas e novas pessoas sendo salvas (2.46-47; 5.12-16). O juízo que se abateu sobre Ananias e Safira (5.1-11), o único resultado negativo, não veio pelo fato de participarem ou não, compartilhando seus bens, mas porque mentiram sobre até que ponto estavam participando (vv. 2-4). É melhor, então, concluir que as imagens de compartilhamento comunitário são exemplos positivos a imitar.42

Mas isso suscita uma nova pergunta, que nos leva a um terceiro princípio para a aplicação do livro de Atos. Quão servilmente devemos imitar o seu modelo? Quando o livro de Atos nos oferece narrativas de exemplo, devemos perguntar com que constância o próprio livro de Atos

reproduz este modelo?43 No caso de satisfazer as necessidades dos pobres, há três paradigmas essenciais, todos apresentados como úteis, mas muito diferentes entre si. Em Atos 6.1-7, é estabelecido o precedente para o cargo futuro de "diácono" — determinados líderes são escolhi­ dos para supervisionar uma distribuição diária de comida ou dinheiro para os pobres. Os apóstolos não administrariam mais uma tesouraria comunitária. Então, em 11.27-30, uma oferta especial é recolhida para satisfazer as necessidades de cristãos que sofriam muito gravemente durante um período de fome. Três diferentes modelos provam ser efi­ cazes em diferentes circunstâncias, mas o elo comum é a provisão m a­ terial para os pobres. Isso sugere que a aplicação contemporânea deve

seguir qualquer um destes três modelos, ou inventar outros, de modo que os cristãos com posses materiais excedentes ainda compartilhem generosamente com seus irmãos e irmãs mais necessitados.44

Em outros casos, um modelo particular permanece imutável, por todo o livro. Quando o carcereiro filipense pergunta a Paulo e Silas o que deve fazer para estar bem com Deus, a resposta é "Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo" (At 16.31). Esse é o consistente meio de sal­ vação, por todo o livro de Atos. Na verdade, 4.12 generaliza, declaran­ do: "em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nom e há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos". Nós estam os certos em concluir que Lucas, como Paulo, acre­ ditava que a salvação vem unicamente pela fé em Jesus.

Em alguns casos, é difícil determinar se o livro de Atos apresenta um padrão inviolável ou modelos diversos. E o que dizer sobre a vinda do Espírito Santo à vida de uma pessoa? Atos 2.38,39 parece apresentar claramente uma norma universal: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nom e de Jesus Cristo para perdão dos pecados, e re­ cebereis o dom do Espírito Santo. Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos e a todos os que estão longe: a tantos quantos Deus, nosso Senhor, cham ar". E o padrão normal no resto do livro é que, sempre que alguém verdadeiramente crê, o Espírito Santo passa a habitar nesta pessoa e a capacita para a obediência cristã. O que, então, fazemos com a única e aparentemente gritante exceção a este padrão — os samaritanos que reagem à pregação de Filipe com aparente fé, mas não recebem o Espírito até que Pedro e João desçam de Jerusalém para impor as mãos sobre eles (8.12-17) ?45

Alguns tentaram fazer desta exceção a norma, e insistem em uma "segunda bênção" do poder do Espírito subsequente à conversão, mas as exceções são más justificativas à regra! Outros argumentaram que não existe padrão normativo, mas isso ignora a tendência geral do próprio livro de Atos, assim como a convicta afirmação de Paulo, em Romanos 8.9, de que "se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele". Provavelmente a abordagem mais comum, adotada por comentaristas evangélicos, é a de que esta é uma abordagem excepcional para uma si­ tuação excepcional. Como ela representava a primeira conversão geral de samaritanos ao cristianismo, de maneira nenhuma assegurava que a comunidade exclusivamente de cristãos judeus receberia bem estes antigos inimigos, em igualdade de condições dentro da igreja recém- nascida. Talvez os líderes apostólicos precisassem confirmar, por si

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mesmos, a legitimidade destas novas conversões. Que melhor m aneira haveria, do que o Espírito Santo manifestando-se de uma maneira tan­ gível, precisamente pelo ministério de Pedro e João?

Por outro lado, pode ser que esta passagem não seja a exceção que parece ser. Simão, o Mágico, também é descrito com o tendo crido (v.13), mas rapidamente demonstra que o seu "coração não é reto diante de Deus" (v.21), a tal ponto que Pedro profere uma maldição sobre ele (v.20). Talvez a "crença" dos outros samaritanos seja, de igual m anei­ ra, apenas aparente, e é somente depois que Pedro e João chegam e os instruem que eles verdadeiramente compreendem e são salvos.46 Se esta passagem é ou não verdadeiramente uma exceção dentro do livro de Atos, o importante, para a aplicação desta lei, é que ela não pode ser convertida em um requisito de que todos os crentes devem ter al­ guma capacitação extra, subsequente, dramática do Espírito Santo de­ pois da sua salvação inicial, para que a sua vida cristã amadureça. Por outro lado, nenhum texto das Escrituras exclui a possibilidade de que o Espírito possa, em determinadas ocasiões, na sua soberania, decidir abençoar alguns dos seguidores de Cristo, de maneira especial, como aconteceu com os samaritanos.

Um quarto princípio essencial na aplicação do livro de Atos envolve a contextualização — formular o evangelho em linguagem que melhor transmita a sua essência em um contexto específico.47 Talvez a razão principal que se tem para examinar o livro todo a fim de determinar quais modelos são consistentes e quais variam, seja que os primeiros cristãos trabalharam arduamente para apresentar o evangelho às di­ versas culturas em que pregavam. Os sermões no livro de Atos forne­ cem um exemplo clássico. Por um lado, há elementos comuns em quase todos eles, independentemente de quem é o pregador — um apelo à revelação geral ou especial para estabelecer bases comuns com a audi­ ência, referências a Jesus como o cumprimento de todas as aspirações religiosas anteriores, um foco na sua morte e ressurreição como o cen­ tro da m ensagem cristã, e um apelo ao arrependimento ou para que se tornem seguidores de Cristo.48 Por outro lado, não há duas m ensagens idênticas. Paulo, cujos sermões ocupam a maior porcentagem de dis­ cursos no livro de Atos, cuidadosamente adapta cada mensagem ao seu contexto. Aos judeus, na sinagoga, ele apela para a história do Antigo Testamento e a inúmeras passagens das Escrituras que ele acredita que apontem para Cristo (13.16-41). Aos pagãos em Listra, Paulo enfatiza o testemunho de Deus na natureza (14.15-18). Aos atenienses interes­

sados em filosofia, ele apela a um Deus desconhecido a quem erigiram um altar, cita poesia grega e toca filosofias estóicas e epicurianas alter­ nadamente (17.22-31). E aos anciãos das igrejas de Éfeso e arredores, ele se parece com o Paulo das epístolas — falando sobre a importância da graça de Deus, a fé em Jesus, o seu sangue expiador, e o perigo dos falsos mestres (20.17-35). Isso não é de surpreender, uma vez que todas as cartas de Paulo são igualmente dirigidas a públicos cristãos.49

Infelizmente, em muitos pontos na história da igreja, os cristãos não equilibraram cuidadosamente estas características de uma mensagem essencial comum e contextualização cuidadosa. Ou eles criavam um programa "tam anho único" de evangelização que não trata de situa­ ções, entendimentos e necessidades distintas de cada indivíduo ou cada público, ou trabalhavam tão duro para se adequar a cada situação diferente que o material fundamental ficava de fora. As palavras de Kenneth Gangel permanecem tão verdadeiras hoje como quando foram escritas, há uma geração:

Os intelectuais da sociedade de hoje não receberam do cristianism o contem porâneo um testemunho tão distinto da verdade com o o que foi ouvido pelos filósofos gregos em Atenas, naquele dia. A "pregação da cruz" não precisa consistir de divagações verbais, calculadas para evocar apropriadas respostas em ocionais. O sermão no Areópago nos oferece um padrão de excelência, em profundidade e relevância. Que os atenienses da era moderna ouçam, outra vez, a palavra do Cristo res­ suscitado.50

Um quinto princípio para ap licar o livro de A tos é enfatizar

aquilo a que Lucas dedica o m aior espaço na sua narrativa. Q uando al­ guém não está basicam en te tran sm itin do ordens, m as n arran do a história, um m ecanism o com um para en fatizar o m aterial m ais im ­ portante envolve o uso de espaço n arrativo. As h istórias que são contadas com m ais detalhes ou de uma m aneira m ais lenta são norm alm ente m ais im portantes. O u o narrador pod e retornar ao m esm o evento m ais de uma vez. A ssim , em bora d ificilm en te seja o m ais conhecido discurso do livro de A tos, a "d e fe sa " de Estêvão, diante do Sin éd rio (7.2-53) é narrada com abundância de detalhes. C onsiderando a liberdade que os historiadores an tigos sentiam ter para abreviar seus relatos, Lucas deve ter visto algo de grande im portância aqui. Estêvão pode ter sido o prim eiro cristão a reco­

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nh ecer até que ponto a vinda de C risto tin h a trazido a liberdade da lei ju d aica, uma ên fase essen cial por todo o discurso. Esta lib e r­ dade era crucial para o desenvolvim en to do cristian ism o, a p artir de um a seita exclu sivam en te ju d aica, para um a religião u niversal para todos os pov os.51 O nde a liberdade em C risto não p erm an ece essen cial na experiên cia cristã con tem porân ea, o livro de A tos, de m odo geral, e as palavras de Estêvão, em particu lar, devem ser aplicados literalm ente!

O encontro de Pedro com C ornélio nos fornece um excelen te exem plo de ênfase por rep etição. N ão apenas Lucas relata o ep isó ­ dio m uito d etalh ad am en te (capítu lo 10), com o dedica outra grande porção de texto, para que Pedro conte n ov am en te a sua h istória aos líderes da igreja em Jeru salém (11.1-18). A seguir, ele d escre­ ve com o Pedro se referiu a este incidente novam ente no C on cílio A p ostólico (15.6-11).52 Está claro que o grande progresso con h ecid o com o "P en teco stes g en tílico " foi cru cial para o entendim ento de Lucas sobre o crescim en to do cristian ism o. A igreja não som ente se libertou da Lei de M oisés, m as o evan gelh o ficou dispon ível aos gentios, nas m esm as con d ições que para os ju d eu s.

Um ú ltim o princípio é o reverso deste últim o. Com freq u ên ­ cia acontece que grande quantidade de d etalh es em n arrativ as ex­ tensas está presente sim plesm en te porque eles nos ajudam a com ­ preen der os pontos im portantes, m over a h istória para a sua cena segu inte, ou acrescentar d eleite artístico ou estético ao relato. É p reciso ter cuidado, p ortan to, e não atribu ir um significado ex cessi­

vo aos detalhes m ais periféricos das narrativas. O m elhor exem plo no livro de A tos é a longa d escrição da viagem quase fatal de Paulo a Rom a, e o naufrágio que resultou dela. As m uitas escalas e os ricos detalhes náuticos do cap ítu lo 27 adicionam ao relato uma cred ib i­ lidade h istórica, além de um a sensação de su spense e av en tu ra.53 A severid ad e da tem pestade e a extensão dos p erigos am pliam a gra­ ça de D eus, ao poupar as vidas de todos os que estavam a bordo. Mas não devem os nos esforçar para en con trar aplicações pessoais para os cren tes de hoje, com base nos detalhes da direção do v ento, ou a passagem por uma ilha cham ada C auda, o am arrar dos botes salva-v id as, o m edo dos bancos de areia, o abaixar das ân coras, e etc. (vv. 13-20). A s ap licações devem v ir de partes teológicas da passagem , com o o en corajam en to para os m arin h eiros e as p ro m es­ sas de D eus a Paulo (vv. 21-26).