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Neste estudo empírico, verificámos que uma situação experimental que confrontava crianças de 6/7 anos à resolução de dilemas relativos a duas modalidades de raciocínio pró-social e procurava induzir o conflito cognitivo entre o ponto de vista próprio e os pontos de vista contraditórios de vários mo- delos sociais promoveu o desenvolvimento da competência de tomada de perspectiva cognitiva. De facto, 12 (60%) crianças do grupo experimental me- lhoraram o nível de desempenho na Prova da Macieira (adaptada de Flavell, 1968) do pré- ao pós-teste, o que só aconteceu com 1 (5%) sujeito do grupo de controlo e contrasta com a observação de Flavell (1968) que, neste nível etário, a maioria das crianças permanecem centradas no seu próprio ponto de vista.

Embora o procedimento de indução do pensamento pró-social se tenha revelado eficaz, procurámos ir mais além na compreensão desse efeito e ana- lisámos as respostas dos sujeitos do grupo experimental nas duas sessões de treino do pensamento pró-social.

A análise dos resultados mostra, fundamentalmente, que domina a opção altruísta de raciocínio pró-social (exceptuando o modelo do ladrão que induz 100% de opções egoístas), domina a construção de ganhos sobre a percep-

ção de custos (exceptuando as respostas espontâneas à avaliação directa do dilema ajudar onde a diferença não é significativa) e, na justificação das res- postas, dominam os argumentos de natureza psicológica orientados para a descentração. Relativamente a estudos anteriores (Lourenço, 1990, 1994), ve- rifica-se ainda um aumento das justificações morais orientadas para o este- reótipo.

Embora a faixa etária de 6/7 anos não corresponda aos níveis etários que foram objecto da investigação sobre a percepção de custos/construção de ganhos, os resultados de Lourenço (1990, 1991, 1993, 2002) levavam contudo a prever a predominância da opção egoísta e da percepção de cus- tos nas situações de repartir e ajudar. Segundo este autor, aos 4/5 anos, as crianças privilegiam a opção egoísta e percebem os actos pró-sociais mais em termos de custos, aos 8/9 anos apresentam respostas oscilantes e só aos 10/11 anos antecipam ganhos pró-sociais de forma relativamente persistente. Mas as justificações fornecidas pelos nossos sujeitos também divergem dos es- tudos anteriores, pois para o nível etário de 6/7 anos, os resultados de Lou- renço (1990, 1994) sugerem o predomínio de argumentos de tipo material e Eisenberg (1986) nota uma tendência de resposta orientada para as necessi- dades do outro, embora só a partir dos 7/8 anos comece a emergir o raciocí- nio pró-social de orientação interpessoal e estereotipado.

Em nosso entender, esta discrepância de resultados pode ser efeito de di- ferenças contextuais e metodológicas entre os estudos, que merecem ser mais investigadas. Pensamos, por um lado, na distância temporal, pois numa déca- da registam-se actualmente importantes mudanças tecnológicas e sociais que proporcionam novas oportunidades educativas e podem ter favorecido o de- senvolvimento mais precoce de competências sociais nas crianças que obser- vámos. Pensamos, por outro lado, no eventual efeito do meio socio-económico dos sujeitos sobre o desenvolvimento do raciocínio pró-social, uma vez que, neste estudo, indagámos crianças do ensino público que pertenciam a famílias de nível socio-económico baixo, enquanto os sujeitos de Lourenço (1990, 1991, 1993, 2002) provinham maioritariamente da classe média-alta e fre- quentavam o ensino privado. Pensamos também no efeito da própria metodo- logia de treino que utilizámos, uma vez que as crianças do grupo experimen- tal eram confrontadas ao dilema repartir (1ª sessão de treino) uma semana depois de resolverem a Prova da Macieira (Pré-teste), o que pode ter induzido uma orientação global para a descentração do pensamento que não se reflec- tiu nos resultados do pré-teste.

Embora as diferenças não sejam estatisticamente significativas, a compa- ração das respostas do grupo experimental sugere ainda que o dilema ajudar

induz mais respostas egoístas para os modelos da professora, médico e poli- cia, que as respostas espontâneas às questões de avaliação directa oscilam entre a construção de ganhos e a percepção de custos e que, particularmente nas respostas modeladas, induz mais argumentos morais orientados para o estereótipo e justificações egocêntricas de natureza material, enquanto a situa- ção de repartir apela geralmente para opções altruístas e justificações psicoló- gicas orientadas para a descentração.

Em nosso entender, estas diferenças podem estar associadas a caracterís- ticas inerentes aos próprios dilemas e tendem a confirmar que os modelos com elevada similitude com o observador são geralmente mais imitados (Bandura, 1977). Com efeito, na situação de repartir, o personagem em necessidade é sempre uma criança, o que constitui um modelo mais próximo dos sujeitos de 6/7 anos que observámos e facilita o processo de identificação. Pelo contrá- rio, na modalidade ajudar, o personagem em necessidade é uma velhinha com pouca autonomia motora, o que constitui um modelo distante da criança que dificulta o movimento de identificação e, consequentemente, de tomada de perspectiva cognitiva. Seria portanto interessante comparar as respostas das crianças a dilemas relativos a diversas modalidades de conduta pró-social em que os personagens em necessidade fossem representados por modelos in- fantis e adultos.

O presente estudo também não permite conhecer o efeito, na tomada de perspectiva cognitiva, da apresentação inicial da situação ajudar que, como vimos, apela mais opções egoístas, percepção de custos e argumentos ego- cêntricos ou estereotipados. A comparação das respostas aos dois dilemas su- gere contudo que seria importante variar a ordem de apresentação dos dois dilemas ou mesmo avaliar o efeito de uma única sessão de treino com o dile- ma repartir na promoção da tomada de perspectiva cognitiva. Dito de outro modo, colocamos a hipótese que a exposição sucessiva das crianças de 6/7 anos que observámos à Prova da Macieira e ao dilema repartir consolidaram uma orientação para a descentração do pensamento e, consequentemente, para a tomada de perspectiva, que seria menos sensível se, na primeira ses- são de treino, os sujeitos se confrontassem ao dilema ajudar.

Para compreender a relação entre o procedimento de indução do raciocí- nio pró-social e a promoção da tomada de perspectiva cognitiva, importava contudo identificar os componentes da situação experimental determinantes dessa mudança, comparando as respostas dos sujeitos que subiram e não su- biram de nível na Prova da Macieira entre o pré- e o pós-teste.

Contra o que seria de esperar, os resultados mostram, por um lado, que a opção altruísta e a construção de ganhos pelo sujeito não estão associados à

subida de nível de tomada de perspectiva cognitiva. Por outro lado, são as crianças que subiram de nível no pós-teste que invocam mais argumentos ma- teriais, mais argumentos de orientação egocêntrica e mais argumentos morais orientados para o estereótipo, o que contrasta com a prevalência de justifica- ções psicológicas e orientadas para a descentração entre os sujeitos que não subiram de nível no pós-teste. Por outro lado ainda, a análise descritiva das respostas obtidas sugere apenas uma ligeira tendência para os sujeitos que subiram de nível no pós-teste invocarem: (a) menos argumentos materiais e mais argumentos psicológicos na avaliação da percepção de cus- tos/construção de ganhos (Q2 e Q3) do que na avaliação do conteúdo de ra- ciocínio pró-social (Q1); e (b) mais argumentos egocêntricos no dilema ajudar do que na situação de repartir.

Embora o procedimento de treino do pensamento pró-social que utilizá- mos se tenha revelado eficaz na promoção da tomada de perspectiva cogniti- va, consideramos este estudo ainda exploratório, pois os resultados obtidos não permitem identificar componentes da situação experimental que expli- quem essa mudança. Verifica-se, pelo contrário, que o nível de tomada de perspectiva cognitiva, medido pela Prova da Macieira, é independente tanto da opção pró-social, como da natureza material ou psicológica, egocêntrica ou descentrada, dos argumentos que o sujeito invoca para justificar as suas respostas.

Para além das hipóteses anteriormente evocadas, colocamos então duas novas possibilidades de explicação que, em nosso entender, merecem também ser investigadas. Eventualmente, tanto a proximidade temporal entre as quatro sessões experimentais (distanciadas apenas uma semana), como a multiplica- ção de repetidos pedidos de justificação do pensamento pró-social ao longo das duas sessões de treino potenciaram uma experiência de descentração que induziu a maioria dos sujeitos do grupo experimental à tomada de perspecti- va cognitiva observada no pós-teste.

Seja como seja, do ponto de vista conceptual, o estudo empírico que rea- lizámos sugere o efeito do pensamento pró-social no desenvolvimento da to- mada de perspectiva cognitiva e, do ponto de vista pragmático, propõe uma metodologia de indução do raciocínio pró-social que pode, desde já, inspirar a planificação de programas educativos.

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