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PARTE II ESTUDOS EMPÍRICOS

CAPÍTULO 4. ESTUDO 1: ESTUDO DAS PROPRIEDADES

4.5. Discussão

A avaliação da vulnerabilidade para o suicídio em adolescentes é uma tarefa complexa que, ao nível da investigação, tem sido desenvolvida sobretudo através da avaliação dos fatores de risco. Contudo, Osman et al. (1998) criaram o Inventário de Razões para Viver para Adolescentes (RFL-A), que avalia fatores protetores dos atos suicidas. O RFL-A tem sido bastante utilizado a nível mundial e nós pretendemos empregá-lo no âmbito do Estudo 2, na medida em que é imprescindível para avaliar o papel das razões para viver enquanto potencial fator protetor. Todavia, este instrumento não se encontra adaptado para a população portuguesa adolescente. Assim sendo, o objetivo geral do presente estudo consistiu em estudar as propriedades psicométricas da versão portuguesa do RFL-A numa amostra de adolescentes.

O estudo das características descritivas do RFL-A mostra que os indivíduos apresentaram valores médios elevados, o que sugere a valorização das razões para viver e o baixo risco de suicídio global da amostra, na medida em que o RFL-A representa fatores protetores dos atos suicidas. A obtenção de valores elevados tem sido comum em estudos que incluem amostras não-clínicas (e.g., Osman et al., 1998), embora as médias em amostras clínicas com história de atos suicidas tendam a ser mais baixas (Gutierrez & Osman, 2008; Osman et al., 1998).

Há ainda a referir a existência de alguns desvios-padrão acima da unidade, registados sobretudo nos itens da subescala Medo do suicídio, o que consideramos que se pode justificar pelo conteúdo dos próprios itens e pela faixa etária dos respondentes. Isto é, a subescala Medo do suicídio é a única que se relaciona com questões de morte-vida e é

expectável que os adolescentes apresentem atitudes mais extremadas em relação a este assunto.

Quanto às medidas de distribuição dos dados – assimetria e curtose – apesar de se notarem alguns desvios ligeiros ao padrão ideal de normalidade, poder-se-á considerar que se trata de uma distribuição muito próxima da normal (Almeida & Freire, 2008; Kline, 2011; Marôco, 2011).

Para estudar a estrutura interna do RFL-A procedeu-se, primeiramente, à AFE e, de seguida, à AFC. A AFE foi realizada seguindo os mesmos procedimentos da investigação original do RFL-A tendo-se obtido uma estrutura fatorial idêntica à investigação original (Osman et al., 1998) de cinco fatores distintos, nomeadamente (1) Aliança familiar, (2) Medo do suicídio, (3) Otimismo sobre o futuro, (4) Aceitação e suporte pelos pares e (5) Autoaceitação.

A percentagem de variância total explicada pela matriz fatorial em estudo (69.73%) foi próxima da variância total explicada pelo estudo original (64.8%), embora a ordem dos valores próprios dos fatores não tenha sido a mesma. Foram, então, registados os seguintes valores: Aliança familiar (11.68 vs. 1.48); Medo do suicídio (3.83 vs. 2.37); Otimismo sobre o futuro (2.65 vs. 14.39); Aceitação e suporte pelos pares (2.26 vs. 1.34) e Autoaceitação (1.90 vs. 1.66). Como todos os itens se associaram ao fator primário original, com “pesos fatoriais” de saturação superiores a .4 não foi necessário, nesta fase, estudar outras soluções.

Para avaliar o ajustamento desta solução de cinco fatores aos dados, foi realizada a AFC, à semelhança do estudo original. Alguns índices de ajustamento obtidos, apesar de se encontrarem marginalmente próximos dos parâmetros de qualidade estabelecidos (Kline, 2011; Marôco, 2010), revelam um ajustamento inferior ao do estudo original (Osman et al., 1998), bem como ao de outros estudos realizados com adolescentes (Gutierrez & Osman, 2008; Gutierrez et al., 2000). No sentido de procurar índices mais satisfatórios, decidiu-se eliminar o item 15, pelo facto de se associar a mais do que um fator. Foi realizada novamente a AFC com 31 itens.

O modelo de cinco fatores com trinta e um itens obteve uma melhoria de todos os índices, correspondendo aos níveis de qualidade estipulados (Kline, 2011; Marôco, 2010), sendo que apenas o aumento do GFI não foi suficiente para atingir o valor .9. No entanto, o melhoramento de todos os outros índices reforça a opção por este modelo de 31 itens. Na adaptação da versão coreana, um dos índices de ajustamento (TLI = .87) também foi inferior (Lee, 2011) ao do estudo original (Osman et al., 1998).

Assim sendo, poder-se-á concluir que o modelo apresenta um ajustamento bom aos dados. Importa ainda referir que o software (EQS for Windows program) utilizado no estudo original para a AFC foi diferente do software (AMOS, Analysis of Moment Structures) do presente estudo, embora ambos partilhem a mesma finalidade, o que explica ligeiras diferenças na terminologia dos índices de ajustamento.

Os resultados das correlações entre os fatores (variam entre r = .21 e r = .57) mostram que os cinco fatores estão melhor diferenciados na amostra do presente estudo do que na investigação original (entre r = .42 e r = .63) de Osman et al. (1998). Também noutros estudos de adaptação se evidenciou uma diferenciação dos fatores superior à do estudo original, como é o caso da amostra coreana em que as intercorrelações variam entre r = .13 e r = .60 (Lee, 2011).

Os coeficientes padronizados de saturação fatorial e os indicadores de fiabilidade individual dos itens mostram resultados satisfatórios, sendo de destacar que, na maioria dos itens, a sua variabilidade é explicada pelo fator que lhe está associado.

A consistência interna do RFL-A foi excelente, quer para a escala total, quer para as subescalas, uma vez que todos os coeficientes alfa de Cronbach foram acima de .88 (subescala MS). Os coeficientes correlações item-total também se enquadraram dentro dos parâmetros esperados, exceto no item 32, sendo que o valor do alfa de Cronbach se manteria nos .93, mesmo que qualquer um dos itens fosse retirado, o que não justificou qualquer eliminação.

Em estudos anteriores do RFL-A, os coeficientes alfa de Cronbach também foram bastante elevados, como foi o caso do estudo original (Osman et al., 1998), da adaptação iraniana (Koolaee et al., 2008), da coreana (Lee, 2011) e também de outros estudos com amostras clínicas (e.g., Gutierrez et al., 2000).

A análise da estabilidade temporal também revelou resultados bastante satisfatórios. Tanto as fortes correlações, como a ausência de diferenças significativas entre os dois momentos de aplicação, indicam uma boa estabilidade temporal do instrumento, à semelhança do que se verificou nos estudos que aplicaram o método teste-reteste (e.g., Koolaee et al., 2008).

Estes resultados, ao nível da consistência interna e da estabilidade temporal, suportam assim a fiabilidade do RFL-A. No contexto do estudo das características psicométricas do instrumento, além da fiabilidade, foi necessário analisar a validade do RFL-A.

A análise dos índices da validade convergente evidenciou que os itens refletem o fator ao qual estão associados, propiciando assim uma medida adequada do constructo que se pretende avaliar. O estudo da validade discriminante veio acrescentar que a variância média extraída de cada fator é superior à variância partilhada entre eles, o que significa que os fatores se diferenciam claramente uns dos outros.

No que respeita à validade concorrente, constataram-se correlações negativas significativas entre o RFL-A (total e subescalas) e as medidas de desesperança (BHS) e de ideação suicida (QIS), o que corrobora estudos anteriores que consideraram as mesmas variáveis (e.g., Koolaee et al., 2008; Lee, 2011; Osman et al., 1998). Estes resultados vão ao encontro das explicações teóricas inerentes ao papel dos fatores de risco e de proteção em relação ao comportamento suicida, bem como à inter-relação entre os mesmos (A. Berman et al., 2006). Isto é, o RFL-A, uma vez que mede os fatores protetores dos atos suicidas, relaciona-se inversamente com os fatores de risco para o mesmo, nomeadamente a desesperança e a ideação suicida.

Os resultados do RFL-A em função do sexo mostraram que não existem diferenças significativas nas subescalas e do RFL-A total. No entanto, o sexo masculino tende a registar valores médios mais elevados do que o sexo feminino na subescala Autoaceitação, embora essa diferença não tenha significado estatístico e a magnitude do efeito seja pequena.

No estudo original de Osman et al. (1998) encontrou-se uma tendência semelhante no que respeita às diferenças entre sexos, embora as diferenças na subescala Autoaceitação tenham sido a nível estatístico significativas. Noutros estudos do RFL-A também não se registaram diferenças significativas em função do sexo (e.g., Lee, 2011) ou encontraram-se noutras subescalas (e.g., Gutierrez & Osman, 2008). O facto de não se notarem diferenças significativas entre os sexos no RFL-A pode estar relacionado com a fase do desenvolvimento em que os respondentes se encontram, caracterizada pela construção de projetos futuros, motivação para a vida, abertura a experiências, entre outras. A adolescência é, igualmente, uma fase marcada por múltiplas mudanças a vários níveis (físico, psicológico, social, entre outros) que afetam ambos os sexos; no entanto, as raparigas tendem a manifestar uma maior dificuldade em lidar com as alterações corporais, mais problemas relacionais, baixa autoestima (A. Berman et al., 2006; Sprinthall & Collins, 2008), o que poderá explicar os valores tendencialmente mais baixos referentes à Autoaceitação.

Apesar do rigor implementado nos procedimentos metodológicos e dos resultados bastante satisfatórios, o estudo apresenta algumas limitações. Sobretudo, o facto de incluir somente adolescentes da população não-clínica. Seria interessante perceber a capacidade discriminativa do RFL-A no nível de risco suicida, quando comparado com populações clínicas com história de tentativas de suicídio.

O facto de o preenchimento ter decorrido em grupo e em contexto de sala-de-aula pode ter, de alguma forma, condicionado as respostas dos jovens, embora se tivesse tido o cuidado de solicitar, sempre que possível, que ocupassem lugares mais isolados na sala. Findo o questionário cada respondente colocou-o na urna, antes de abandonar a sala.

O RFL-A apresenta, no entanto, potencialidades que o poderão tornar um instrumento útil na avaliação da proteção em relação aos atos suicidas, em adolescentes portugueses. O RFL-A é um instrumento de fácil e rápida aplicação e a sua natureza multidimensional proporciona a identificação das áreas carenciadas a serem alvo de intervenção prioritária pelos clínicos, mostrando-se mais vantajoso em relação aos instrumentos unidimensionais (Gutierrez et al., 2000), uma vez que poderá permitir uma melhor compreensão dos fatores protetores do comportamento suicida (Lee, 2011). O RFL-A poderá assim ser útil em protocolos de rastreio, diagnóstico, monitorização e reabilitação que contemplem fatores de risco e de proteção, dos atos suicidas (Koolaee et al., 2008).

Além disso, as propriedades psicométricas do RFL-A obtidas no presente estudo apontam para a sua fiabilidade e validade, muito próximas das características da investigação original, o que assegura a sua adequada utilização com adolescentes.

CAPÍTULO 5. ESTUDO 2: VULNERABILIDADE EM RELAÇÃO AOS ATOS