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Discussão sobre a origem crioula do português popular do Brasil: Guy e Tarallo

CAPÍTULO 1: A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

1.3 O CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL: UMA ABORDAGEM DO CONTEXTO SOCIAL

1.3.3 As visões sobre a formação do português popular do Brasil

1.3.3.5 Discussão sobre a origem crioula do português popular do Brasil: Guy e Tarallo

Guy (1981; 1989), ao observar que, no Brasil, é marcante a diferença lingüística em função da classe social e que há um significativo número de falantes usando um dialeto

considerado não padrão, destaca a questão da crioulização23 como explicação para origem das variações no PPB.

Para fundamentar sua hipótese, Guy (1981; 1989) toma como ponto de partida dados da história sócio-econômica do Brasil colonial e, com relação aos dados lingüísticos,24 analisa duas variáveis morfossintáticas do português do Brasil atual: a concordância de número no interior do Sintagma Nominal e a concordância verbal. Nesse sentido, admite que, em decorrência de um processo prévio de crioulização no português do Brasil, foram perdidas regras de concordância que estão sendo (re)adquiridas no quadro atual a partir dos contextos mais salientes.

Guy (1989) destaca ainda que, além de haver muitas palavras de origem africana no português do Brasil, pode ser observado um conjunto de traços, que caracterizam nossa língua, similares a fenômenos ocorridos em crioulos de base portuguesa. De certa forma, para esse estudioso, não há como negar o impacto da escravidão africana na constituição do PPB, o que não se limita a apenas termos lexicais, como também a alterações nos traços morfossintáticos.

Para Guy, não se pode afirmar que o PPB seja um crioulo no sentido de abranger todas as características de um crioulo típico, pois todos os países diferem em relação a sua história social, o que pode levar a resultados lingüísticos não similares. Por outro lado, não é prudente afirmar que todos os traços do português popular brasileiro se devam a uma origem européia. Sendo assim, sugere que se identifiquem os traços da história social que mais influenciaram o resultado lingüístico no Brasil, afirmando que:

(...) a língua popular do Brasil tem raízes não somente na língua românica de seus colonizadores europeus, mas também nas línguas africanas faladas pelos milhões de primeiros brasileiros e também nos contatos lingüísticos e processos de aprendizagem que prevaleceram na escravidão e que são comumente chamados de crioulização e descrioulização (GUY, 1989, p. 241-242). 25

Guy considera o substrato africano como muito importante na formação do português popular brasileiro, o que acarreta algumas críticas, como a de Cohen (2002), que questiona até que ponto podemos afirmar que as línguas africanas apresentam características que propiciaram a erosão da morfologia flexional do português. Desse modo, não devemos supervalorizar nem o

23 Holm (1987) também retoma a hipótese da crioulização e considera o português vernáculo brasileiro (PVB) como

semicrioulo, chegando a essa conclusão a partir de análises comparativas entre o PVB e diferentes crioulos de base ibérica. Tanto Holm (1987) quanto Guy (1989) baseiam-se em dados sócio-históricos, principalmente, demográficos.

24 Guy analisou as diferenças entre o português popular do Brasil e o português padrão brasileiro.

25 (...) the popular language of Brazil has roots not only in the Romance language of its European colonizers, but also

in the African languages spoken by millions of the first Brazilians, and also in the language contact and language learning processes that prevailed under slavery, and are commonly called creolization and decreolization. (Tradução nossa).

substrato africano muito menos o superstrato europeu. Cremos que a transmissão irregular do português pelos africanos e seus descendentes e, portanto, o contato entre povos atestado pelo contexto social pode explicar muitas das variações ocorridas no sistema flexional de nosso vernáculo.

Numa posição contrária à de Guy (1981; 1989), Tarallo, em seu artigo Sobre a alegada

origem crioula do português brasileiro: Mudanças sintáticas aleatórias, publicado em 1993,

defende a idéia de que o português do Brasil, ao invés de se aproximar, como deveria ocorrer num processo de descrioulização, estava se afastando de sua língua alvo: o português europeu (PE). Tarallo baseou-se em estudos sobre construções relativas e retenção pronominal em sentenças encaixadas e matrizes, afirmando que as tendências de mudanças no PB e no PE convergem para pontos inversos, pois, enquanto no PB a retenção do pronome é muito alta na posição de sujeito e muito baixa na posição de objeto, no PE a direção é inversa, há uma retenção muito alta do pronome na posição de objeto, ao passo que na de sujeito registra-se um decréscimo.

Segundo Tarallo (1993, p. 60), para que se fale em descrioulização do PB em direção ao PE:

O PB teria literalmente que se virar pelo avesso e de ponta-cabeça. Sujeitos teriam que começar a ser nulos outra vez (isto é, o PB teria que começar a readquirir suas características pro-dop perdidas), enquanto objetos teriam que começar a receber pronomes clíticos outra vez.

Em linhas gerais, Tarallo (1993) aponta a hipótese da crioulização no PB como pouco provável, pois se o PB fosse derivado de um crioulo deveria estar em fase de descrioulização em relação à língua alvo, o português europeu, e, assim, pretende demonstrar, a partir de suas análises, que o PB está se afastando do seu superstrato original: o PE, fato este que desfavorece e torna irrelevante a questão da crioulização prévia do português brasileiro.

Lucchesi (2001), ao analisar dados relativos às pesquisas desenvolvidas por Fernando Tarallo, chega à conclusão de que estes estudos não podem atestar tendências de mudança do português popular, “(...) para o qual se propõe um caráter descrioulizante. Ao contrário, ao retratar as mudanças em curso nas camadas cultas (...)” (LUCCHESI, 2001, p. 111), deve-se tomá-las como base para se verificar as influências de baixo para cima, referente a um dos pólos que caracteriza a realidade lingüística brasileira: a norma culta.26

Dessa forma, se tomarmos a realidade lingüística brasileira como bipolarizada, na qual o português culto e o português popular apresentam tendências específicas de mudança, podemos entender que os “(...) estudos de processos de mudanças que indicam um afastamento do português culto do padrão normativo de matiz europeu não constituem evidência contra a hipótese da ocorrência de mudanças de caráter crioulizante na formação do português popular (...)” (LUCCHESI, 2001, p. 122-123).

Na verdade, Tarallo observa apenas dados referentes ao português culto e termina atestando as mudanças de baixo para cima decorrentes da interação entre os dialetos populares e a norma culta. Temos de levar em conta que a nossa realidade lingüística, entendida como plural e polarizada, abarca, grosso modo, duas histórias: uma relacionada com o português culto e a outra com o português popular, cujos processos de formação são diferenciados. Daí, podemos afirmar que o português culto e o popular apresentam direções de mudança distintas.

1.3.3.6 Retomando a questão da crioulização do português popular do Brasil: Naro