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A possível formação de falares crioulos em pontos isolados e a não estabilização da crioulização no Brasil

CAPÍTULO 1: A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

1.3 O CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL: UMA ABORDAGEM DO CONTEXTO SOCIAL

1.3.4 A possível formação de falares crioulos em pontos isolados e a não estabilização da crioulização no Brasil

O Brasil nos períodos colonial e imperial se caracteriza por uma diversidade de povos e culturas e pelo estado de multilinguismo/multidialetalismo descrito por Mattos e Silva (2001; 2004). Índios e negros africanos, muitas vezes, em decorrência da miscigenação racial, aprendiam a língua portuguesa, de maneira irregular e defectiva. A partir de 1757, mediante

medidas tomadas pelo Marquês de Pombal, o português vai sendo imposto como língua oficial do Brasil e, principalmente, a língua geral foi progressivamente deixada de lado. Além disso, alguns fatos contribuíram para a imposição do português na sociedade colonial e imperial, como a corrida pelo ouro na segunda metade do século XVIII e a vinda da família real no século XIX.

O contato entre índios, brancos e negros e, sobretudo, uma maior integração da massa africana e de seus descendentes na sociedade colonial facilitou o contato entre línguas, deixando no português marcas desse contato. Os escravos africanos, bem como o negro brasileiro e o mulato desempenhavam diferentes funções na economia colonial e, além de conviverem com os diversos grupos que constituíam a sociedade da época, transitavam pelas senzalas, casas grandes e pelos espaços públicos.28 A integração entre brancos e negros deve ter contribuído para a transmissão do português aos falantes de línguas distintas. Mattoso (1990 [1979]) cita um anúncio de um jornal em que o dono descreve seu escravo ‘‘(...) que fala de um jeito um pouco confuso mas que se compreende bem’’ (MATTOSO, 1990 [1979], p. 113).

Fausto (1994) descreve a situação social entre os diversos estratos que formavam a sociedade colonial e imperial, afirmando não haver apenas senhores e escravos, pois:

Roceiros, pequenos lavradores, trabalhadores povoaram os campos; as poucas cidades reuniram vendedores de rua, pequenos comerciantes, artesãos. Esse quadro não foi estático. A expansão do comércio internacional de escravos deu origem a um importante setor de elite, representado pelos traficantes do Rio de Janeiro e também de Salvador. A descoberta do ouro e dos diamantes de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, a partir de princípios do século XVIII, e a vinda da família real para o Rio de Janeiro no início do século XIX foram, cada um à sua maneira, fatores de diversificação social e de alteração das relações entre o campo e a cidade (FAUSTO, 1994, p. 33).

Desse modo, a integração entre os diferentes estratos sociais parece ter contribuído para que o português prevalecesse sobre a situação de multilinguismo/multidialetalismo vigorante no período colonial.

Lobo (1996) demonstra, a partir da reorganização dos dados de Mussa (1991), que no período colonial as populações não-brancas (indígenas e africanas) correspondiam a um total de 70%. Na verdade, a maioria dos povos que habitou o Brasil falava uma língua não portuguesa, visto que apenas cerca de 30% da população era constituída pela etnia-branca.

28 Eram diversos os papéis desempenhados pelos negros na sociedade colonial rural e urbana. Quanto aos índios,

temos de levar em conta o fato de que, desde o inicio da colonização, a língua geral foi difundida e muitos indígenas viviam em aldeamentos com os jesuítas. Além disso, eles foram constantemente dizimados e expulsos de suas terras, especialmente, a partir da política pombalina.

Esses percentuais são também traçados por Fausto (1994), quando este afirma que ‘‘(...) do ponto de vista racial, os dados relativos às principais províncias sugerem que os brancos representavam menos de 30% da população total [ao fim do período colonial]’’ (FAUSTO, 1994, p. 135).

Mesmo diante do percentual de 70% de etnias não-brancas e da representatividade dos negros africanos na sociedade colonial, não acreditamos que na história sociolingüística do Brasil tenha ocorrido processos típicos de crioulização, uma vez que não pode ser comprovada a existência de um crioulo generalizado de base portuguesa em nosso país, mas defendemos que o contato entre povos de línguas e de culturas distintas e o processo de transmissão irregular do português marcam a formação das nossas variedades populares atuais. Dessa forma, podemos citar a seguinte afirmação de Lucchesi (1999, p. 81):

A aquisição precária do português pelos escravos trazidos de África e pelos índios integrados na sociedade brasileira (que podem ser, então, arrolados como uma espécie de força auxiliar, de menor importância) e a nativização desse modelo defectivo de português como língua segunda nas gerações seguintes de seus descendentes endógamos e mestiços desencadearam um processo de transmissão linguística irregular que teve importantes consequências para a formação da atual realidade linguística brasileira, nomeadamente para as suas variedades populares.

Como fatos históricos que apontam nessa direção, Alencastro cita que “num discurso do Parlamento, um deputado baiano declarou, em 1851, que, na Bahia, entre a população preta, não se fala a língua do país” (ALENCASTRO, 1997 apud ALKMIM, 2001a, p. 319). Além disso, o

Jornal do Comércio de 23/7/1851 nos informa que “de tradicional família pernambucana, o

bacharel e deputado Manoel Carneiro da Cunha exprimia-se num português carregado de africanismos e recebeu o apodo de ‘deputado caçanje’. Isto é, alguém que falava como os negros do reino de Caçanje, em Angola.” (Jornal do Comércio, de 23/7/1851, apud ALKMIM, 2001a, p. 319). Ainda encontramos no referido jornal de 7/5/1853 a seguinte informação:

O Constitucional, jornal paulistano, explica em 1853: O infante alimentado com o leite mercenário de uma africana vai, no desenvolvimento de sua primeira vida, aprendendo e imitando seus costumes e hábitos, e ei-lo já quase na puberdade qual outros habitantes da África Central, sua linguagem toda viciada, e uma terminologia a mais esquisita, servindo de linguagem (Jornal do Comércio, de 7/5/1853, apud ALKMIM, 2001a, p. 319).

Para Baxter e Lucchesi (1997), Lucchesi (2003) e Mattos e Silva (2000; 2001; 2004), podem ter se formado crioulos em pontos isolados no meio rural de nosso território, como nos quilombos, mas as diversas alterações processadas no cenário brasileiro nos séculos XIX e XX

teriam impedido sua conservação. Ainda em relação à crioulização do PB, Lucchesi (1999, p. 80) cita alguns fatores que podem explicar a não estabilização de um crioulo de base portuguesa no Brasil, dentre os quais, podemos apontar:

(i) a proporção entre a população de origem africana e branca, que permitia um nível de acesso maior à língua alvo do que o observado nas situações típicas de crioulização; (ii) a ausência de vida social e familiar entre as populações de escravos, provocada pelas condições sub-humanas de sua exploração, pela taxa de mortalidade e pelos sucessivos deslocamentos;

(iii) [a miscigenação racial e] o incentivo à proficiência em português, [o que possibilitou um maior acesso dos demais segmentos étnicos à língua alvo];

(iv) a maior integração social dos escravos urbanos, domésticos e das zonas mineradoras.

Este estudioso ainda admite que os fatores que inibiram a ocorrência de crioulos típicos no Brasil foram responsáveis pelas mudanças na difusão dos padrões lingüísticos Assim, a miscigenação, muitas vezes resultante da integração social dos escravos, favoreceu tanto a aquisição dos padrões lingüísticos do grupo dominante por parte do dominado, quanto as mudanças ocorridas na língua adquirida, ou seja, tais alterações/variações representam as conseqüências dessa aquisição, que, diga-se de passagem, era precária. Desse modo, não houve a formação de pidgin e de crioulos típicos no Brasil, mas apenas um processo de transmissão lingüística irregular do tipo menos intenso.

No que se refere à conceituação de pidgin, podemos afirmar que este é, na verdade, um ponto inicial, ou melhor, um ponto de interseção entre a língua do dominador e a língua do dominado, do qual poderá surgir um crioulo. Segundo Holm (2000), pidgin é uma língua simplificada que se origina em situações de contato entre grupos sociais de diferentes línguas, devido à necessidade destes se comunicarem emergencialmente. Quando grupos sociais, cujas línguas são distintas e ininteligíveis, necessitam manter contatos por interesses comerciais, tendem a se comunicar através de uma “mistura” dos elementos lingüísticos de ambas as línguas, o que resultaria no pidgin, que, por sua vez, se caracterizaria pela ausência de normativização. Quando o pidgin é usado em situações sociais, que não sejam apenas comerciais, resulta num crioulo. Este pode ser utilizado em várias situações, chegando, às vezes, até a ter uma forma escrita e uma gramática. Para Elia (1979), não se desenvolveu pidgin no Brasil, visto que os dominadores não visavam inicialmente à política exploratória, objetivavam apenas a colonização.

Baker (1982) e Bickerton (1984) propõem a noção de crioulização variável, que se refere ao fato de que quanto maior acesso os falantes da língua crioula tiverem da língua alvo, maior

será a proximidade daquela com esta. Neste sentido, de acordo com Lucchesi (2000), a língua crioula irá variar dependendo do maior ou menor acesso que ocorrer com a língua alvo, o que dará origem a crioulos gramaticalmente mais próximos desta.

Cabe ressaltar apenas que não houve um crioulo de base portuguesa generalizado no Brasil e atualmente podemos citar a polarização e a pluralidade que marcam o PB: de um lado, as normas vernáculas ou o português popular do Brasil e de outro, as normas cultas ou português culto brasileiro.

1.3.5 A importância de comunidades rurais afro-brasileiras para a