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A POLÊMICA SOBRE A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL

CAPÍTULO 1: A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

1.2 A POLÊMICA SOBRE A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL

O português popular do Brasil vem constantemente apresentando traços que o distanciam do português europeu e a origem dessas variações tem causado controvérsias entre os estudiosos. Podemos distinguir entre três formulações teóricas que propõem explicar a origem da diferença entre o português do Brasil e o português europeu: a da crioulização prévia, a da deriva e a questão da crioulização fatorizada.

Adolfo Coelho, no século XIX, levantou a questão de que há certas semelhanças e aproximações entre aspectos de variantes do português brasileiro e crioulos de base portuguesa. Guy (1981) vai assumir a hipótese da crioulização prévia do português popular do Brasil, afirmando que este apresenta alguns traços de línguas crioulas. Em 1993, Tarallo, no artigo “Sobre a alegada origem crioula do português brasileiro: mudanças sintáticas aleatórias,” contesta as afirmações de Guy (1981) e defende o fato de que não há como afirmar que tenha ocorrido um processo de crioulização prévia no PB, uma vez que as variações neste tendem a afastá-lo de sua língua alvo, o português europeu e não a aproximá-lo, como deveria ocorrer no processo de descrioulização.

A teoria da deriva ou evolução natural é defendida por Naro e Scherre (1993; 2000b), que consideram que o fenômeno da variação tem origem na antiga deriva secular das línguas indo- européias em geral e das línguas românicas em particular, sendo que, para esses sociolingüistas, as condições sócio-históricas e lingüísticas do Brasil apenas aceleraram esses processos de mudança.

Na verdade, Naro e Scherre (1993), apesar de serem sociolingüistas, tentam explicar as variações no português do Brasil tendo como base uma orientação estruturalista, afirmando que as mudanças ocorridas em nossa língua foram motivadas pela deriva lingüística do português e, além disso, que tanto os indígenas quanto os africanos foram responsáveis apenas pela aceleração desse processo. De certa forma, o que houve, para esses estudiosos, foi uma evolução interna do sistema da língua portuguesa.

A questão da crioulização fatorizada é defendida por Baxter e Lucchesi (1997). De acordo com esses estudiosos, a variação é resultado do processo de transmissão lingüística irregular, decorrente de um forte e massivo contato lingüístico entre povos (europeus, indígenas e africanos), que, por sua vez, estiveram presentes não apenas na formação sócio-histórica de nosso povo, como também na nossa constituição lingüística. Além disso, para Baxter e Lucchesi (1997), este processo esteve mais fortemente marcado no interior do país, onde há ausência de escolarização, de meios de comunicação e de transporte.

Tomando como base Lucchesi (1999), podemos afirmar que no Brasil não houve a formação de crioulos típicos, uma vez que a nossa formação sociolingüística não deu ensejo à constituição de situações como estas. Para Baxter e Lucchesi (1997), é possível que tenham existido variedades lingüísticas crioulizantes em pontos isolados do nosso território, mas as diversas alterações que se processaram no cenário sócio-econômico do Brasil nos últimos séculos contribuíram para a não conservação dessas variedades.

Nesse sentido, apropriamo-nos da seguinte afirmação de Mattos e Silva (2000, p. 13): ‘‘(...) a crioulização prévia não pode ser descartada para certos locais nos interiores rurais brasileiros, como aliás defendem A. Baxter e D. Lucchesi, mas não se justifica para o geral do Brasil.’’ Foram várias as razões que contribuíram para a não formação de crioulos no Brasil, dentre as quais podemos citar o fator demográfico, apresentando um percentual de população branca não tão inferior à população negra e o fato de ter existido uma miscigenação entre as raças, favorecendo um contato mais estreito com a língua alvo.

Defendemos a posição de que o contato do português sobretudo com falantes de línguas africanas e o processo de TLI daí decorrente serem essenciais para entendermos a constituição do português popular do Brasil. No entanto, isso não significa que houve neste transferência de estruturas lingüísticas do substrato. Com efeito, o que houve foi uma aquisição precária do português por falantes de línguas indígenas e africanas, o que desencadeou um processo de

transmissão irregular do português do tipo menos intenso do que o que se dá nas situações de pidginização/crioulização típicas.

Lucchesi (2000) afirma que as condições sócio-históricas de constituição do português popular do Brasil apontam para um processo de variação, tanto dos elementos flexionais quanto dos gramaticais e, portanto, tal processo não resulta na eliminação total dos elementos gramaticais, como é comum nos crioulos típicos. Na verdade, o processo de variação ocorrido no PB foi decorrente de uma transmissão lingüística irregular menos intensa.9

As variações ocorridas no português popular do Brasil refletem o processo de constituição sócio-histórica de nosso povo. Assim, tanto o contato entre línguas, quanto a transmissão lingüística irregular desencadeada pelo contato, conjugados com dados da quase ausência de escolarização no decorrer do século XVI ao XIX podem contribuir para explicar a origem dessas variações. Sendo assim, acreditamos que os resultados de análise lingüística de comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, conjugados com um estudo da história sociolingüística do Brasil e principalmente das situações de contato massivo e abrupto entre línguas podem contribuir significativamente para o esclarecimento da origem das variações no português popular brasileiro.

Com relação ao nosso objeto de estudo, o subjuntivo, Alkmim (2001a), ao estudar a variedade lingüística de negros e escravos representada em charges de 1876, observou, como um dos fenômenos lingüísticos comuns à fala de negros, o uso das formas de presente do indicativo em lugar do presente do subjuntivo. Reproduziremos a seguir um dos trechos dos diálogos da charge O Mosquito, na qual podemos registrar presenta (presente do indicativo) por apresente (presente do subjuntivo):

- Pai Zuzé, iesse di água deviacaba: se eu fôsse ministôro, água não fartava. Dexava tudo sórro negóço, mas água não fartava, não...

- Presenta nas eleição, você qui é fôrro.

- Óia, nhonhô Texera em sendo ministôro não li digo nada.

(Charge de Rafael Bordado in O MOSQUITO, de 26/1/1876, apud ALKMIM, 2001a, p. 323).

Esse registro evidencia a relação histórica entre o uso das formas não marcadas do indicativo nos contextos de uso das formas morfologicamente marcadas do subjuntivo, de um lado, e a aquisição imperfeita do português pelos escravos africanos e a nativização desse modelo defectivo de português falado com segunda língua entre seus descendentes, de outro.

1.3 O CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS