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Retomando a questão da crioulização do português popular do Brasil: Naro e Scherre; Baxter e Lucches

CAPÍTULO 1: A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

1.3 O CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL: UMA ABORDAGEM DO CONTEXTO SOCIAL

1.3.3 As visões sobre a formação do português popular do Brasil

1.3.3.6 Retomando a questão da crioulização do português popular do Brasil: Naro e Scherre; Baxter e Lucches

Naro e Scherre (1993; 2005), com base na hipótese de que as variações presentes no português popular brasileiro estariam já prefiguradas, de forma específica, no sistema lingüístico do português europeu e, de forma geral, no das línguas românicas, refutam a hipótese da crioulização em solo brasileiro.

Assim, tentam demonstrar que a perda da concordância nominal e verbal pode ser encontrada tanto no latim como no próprio português europeu moderno e, dessa forma, a variação verificada no PPB encontra-se, segundo eles, enraizada na evolução histórica da língua portuguesa. Além disso, afirmam que o que houve no PPB, na verdade, foi uma difusão mais

acelerada de estruturas e variações, mas não a sua criação. Vamos à conclusão a que chegaram esses estudiosos:

Nossa conclusão, portanto, é que o português brasileiro é o resultado natural da deriva secular inerente na língua trazida de Portugal, ampliada no Brasil pela exuberância do contato de adultos, falantes de línguas das mais diversas origens, e da nativização desta língua pelas comunidades formadas por estes falantes, em um contexto em que a norma lingüística natural - que permeia as interações - apresentava mais graus de liberdade. Nosso modelo de mudança lingüística para o português brasileiro se sintetiza em CONFLUÊNCIA DE MOTIVAÇÕES (NARO e SCHERRE, 2005, p. 10).

Naro e Scherre afirmam que a variação na concordância nominal e verbal é registrada tanto no Brasil quanto em Portugal, diferenciando-se apenas por uma questão de freqüência. No entanto, acreditamos que essa freqüência de variação na concordância em ambos os países não deva ser explicada por uma deriva, mas pelas diversas situações sociolingüísticas que marcaram a história do Brasil, especialmente, pelo processo de TLI, pois, ‘‘em todo e qualquer processo de transmissão lingüística irregular desencadeado pelo contato entre línguas, ocorre, em maior ou menor grau, perda de morfologia flexional e de regras de concordância nominal e verbal’’ (LUCCHESI, 2003, p. 282). Assim, a intensidade e a freqüência da variação no PPB podem ser explicadas pelo processo de TLI que no Brasil se deu de forma menos intensa, resultando não na eliminação total dos elementos gramaticais, mas num processo de variação desses elementos. Temos de levar em conta ainda que os fenômenos ocorridos nas línguas crioulas não lhes são privativos e, segundo Lucchesi (2003), há um consenso entre os crioulistas de que a perda da morfologia flexional é comum a todas as línguas crioulas.

Em relação ao contato, Naro e Scherre defendem que a massa africana e a população indígena apenas aceleraram o processo natural da deriva inerente à língua trazida de Portugal. Negam, dessa forma, a contribuição africana no sentido de dar uma origem crioula para o português popular do Brasil, pois ‘‘(...) por aqui se existiu um ‘português negro’ suas diferenças em relação ao português geral eram tão sutis que fugiam aos ouvidos dos observadores’’ (NARO E SCHERRE, 1993, p. 439). Na verdade, a ausência de documentos que comprovem ter existido um ‘‘português negro’’ levam esses estudiosos a negarem tal posição.

Com relação a estes documentos, temos de registrar que, até o final do século XIX, os estudiosos pareciam menosprezar questões relativas aos africanos no Brasil em favor de uma superioridade européia. Nina Rodrigues (2004 [1935]), já no século XIX, observa que é comum desenvolver estudos sobre os indígenas e o branco europeu, mas sobre o negro africano e sua

influência no português falado no Brasil parece ainda pairar certo desprezo por parte dos estudiosos.

Mendonça (1948 [1933]) afirma que, no período imperial, há diversos indianólogos; no entanto, com relação aos estudos sobre os africanismos temos de reconhecer apenas a partir de 1888 um precursor notável: Macedo Soares. Alkmim (2001a, p. 317), também reconhece essa lacuna histórica no que se refere às informações sobre a linguagem de negros e escravos no Brasil, chegando a dizer que “parece ter havido uma conspiração de silêncio por parte daqueles que conviveram com a numerosa população de origem africana trazida para o Brasil, a partir do século XVI, para trabalhar como mão-de-obra escrava.” Diante disso, podemos citar a seguinte afirmação de Silva (2003, p. 31-32):

O silêncio em relação à linguagem dos africanos pode ser explicado pelo silêncio geral que se fazia ao redor de tudo aquilo que se referia aos negros. (...)

[Portanto, temos de considerar] o silêncio acadêmico que até o século XX pairou sobre a figura do escravo africano e seus descendentes.

No que diz respeito à diversidade de falares no período colonial, citamos Antônio da Costa Peixoto que, em 1741, divulga a Obra nova de língua geral de Mina, visando a ajudar os senhores na compreensão da fala dos negros:

Pois hé certo e afirmo que se todos os senhores de escravos e hinda os que não os tem, souvecem esta lingoage não sucedarião tantos insultos, rehinas, estragos (...) e finalmente cazos atrozes de algúa sorte se poderião evitar alguns destes desconsertos, se ouvece (...) menos preguisa, nos moradores, e abitantes destes payses (PEIXOTO, 1741 apud SILVA, 2003, p. 31).

Contrários à posição de Naro e Scherre (1991; 1993), podemos citar Baxter e Lucchesi (1997) que, a partir de estudos lingüísticos na comunidade afro-brasileira de Helvécia, no sul da Bahia, apresentam fenômenos que podem ter se originado de um processo de transmissão lingüística irregular, desencadeado pelo contato entre línguas, ocorrido no período colonial e do Império. Na verdade, tendo como base traços lingüísticos de Helvécia,27 como: variação de concordância de número e de gênero no SN; negação dupla; sentenças relativas sem pronome; variação no emprego das formas da 3a pessoa do singular do presente do indicativo em contextos nos quais se deveriam utilizar formas do infinitivo, dentre outros, os supracitados estudiosos acreditam que o dialeto dessa comunidade reflete o processo de transmissão irregular do português. Além disso, explicam que o sistema verbal do português rural pode ter passado por

27 Helvécia é uma comunidade afro-brasileira, situada no extremo sul da Bahia. O dialeto de Helvécia ‘‘é falado por

descendentes de iorubás e geges, escravos da antiga Colônia Leopoldina, estabelecida nas primeiras décadas do século XIX por suíços, alemães e franceses’’ (BAXTER E LUCCHESI, 1997, p. 77).

estágios como o de Helvécia ou próximos a ele no período colonial e do Império e, segundo Baxter e Lucchesi (1997, p. 81):

Em outras comunidades afro-brasileiras (em que se podem encontrar, ainda hoje, referências a uma fala ‘embolada’, ou mesmo incompreensível, que teria existido no passado), nos dialetos rurais e principalmente nos dialetos urbanos vernaculares, essas marcas já teriam desaparecido, devido ao contato e à influência dos padrões lingüísticos da norma culta, que se processaram de maneira crescente ao longo deste século. (...). Desse modo, o que se observa hoje em Helvécia pode refletir o quadro lingüístico que caracterizou, até pelo menos o inicio deste século, as variedades vernaculares do português do Brasil, principalmente na área rural.

Para Lucchesi (1994; 1998; 2001), a realidade lingüística brasileira não é apenas variável e heterogênea, mas também plural e polarizada: ficando num pólo a norma culta e noutro, a norma vernácula, ambas apresentando tendências específicas de mudança. Enquanto a primeira corresponde ‘‘(...) aos padrões lingüísticos caraterísticos dos segmentos escolarizados, dos falantes das classes médias e alta (...), [a norma vernácula se refere aos] padrões lingüísticos das classes baixas, dos falantes não-escolarizados’’ (LUCCHESI, 1994, p. 26).

Para se compreender a configuração atual do PPB, Lucchesi (2001; 2003) considera importante levar em conta os processos de transmissão lingüística irregular que marcaram a aquisição massiva do português pelas populações indígenas e de origem africana. Na verdade, segundo ele, ‘‘há um conjunto de estruturas do português brasileiro que podem ser relacionadas historicamente ao massivo contato entre línguas que marca os primeiros séculos da história sociolingüística do Brasil’’ (LUCCHESI, 2003, p. 278).

Assim, Lucchesi (2003) explica que, a partir do processo de TLI, ocorre perda da morfologia flexional e de regras de concordância nominal e verbal, em maior ou menor grau. No caso do Brasil, deve ter ocorrido um processo de TLI do tipo mais leve, apresentando um quadro de variação mais ou menos intenso tanto dos elementos flexionais quanto dos gramaticais, diferentemente do que ocorre nas situações típicas de crioulização, uma vez que nestas essa perda tende a ser total, apresentando uma eliminação da morfologia flexional em níveis, muitas vezes, categóricos.

Além disso, para esse estudioso, é possível que tenham se formado crioulos em pontos isolados em nosso território, mas que não se conservaram em virtude das diversas alterações processadas no cenário brasileiro no século passado. Desse modo,

o processo histórico de constituição da realidade brasileira aponta para a ocorrência de significativas mudanças nas variedades populares do português, em função do contato entre línguas, sobretudo nas áreas em que se deu a integração dos escravos africanos. Contudo, por diversos fatores essas mudanças não foram de monta a dar ensejo à

formação e estabilização de uma língua crioula de base portuguesa; o que pressupõe uma reestruturação original da gramática e transferência de estruturas das línguas de substrato. Tais processos, se ocorreram, ocuparam uma posição lateral, e suas marcas mais evidentes provavelmente desapareceram no bojo das enormes alterações que se processaram no cenário sócio-econômico do país no século XX (LUCCHESI, 2000, p. 73).

Não há consenso entre os estudiosos a respeito da origem das variações no vernáculo brasileiro. Vale ressaltar que, tanto Naro e Scherre (1993), quanto Baxter e Lucchesi (1997) reconhecem a participação dos aloglotas na formação sócio-histórica do PB, mas enquanto estes defendem a hipótese de que o contato entre línguas e o processo de TLI explicam muitas das variações ocorridas no PB, aqueles acreditam que a massa africana contribuiu apenas para uma aceleração dos processos lingüísticos, citando a questão da deriva como fundamental para se explicar as diferenças entre o PB e o PE.