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3 UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

3.3 A NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DAS DESIGNAÇÕES QUE COMUMENTE ENVOLVEM O PROCESSO DE TERMINAÇÃO DA VIDA:

3.3.3 Distanásia

Como já visto, a eutanásia corresponde à morte que teve o seu curso natural antecipado por meio de uma ação ou omissão que, impelida por compaixão, põe fim ao sofrimento irresistível do homem; ao passo que a distanásia, ora analisada, caminha na direção oposta, impondo uma morte depois do tempo orgânico, sendo, decerto, uma forma mais penosa e desumana.

Num cenário em que a formação das equipes de saúde é ainda tão focada na medicina curativa, a morte assume um significado de fracasso profissional. Natural portanto que estes a entendam como inimiga a ser combatida. Assim, estes profissionais, quando sentem que o paciente é terminal e que não há como curá-lo tendem a (I) continuar realizando tratamentos curativos, em sua maioria, invasivos e dolorosos, apesar de já se saber que não trarão nenhum benefício ao paciente; (II) se desligar deste paciente, que é a personificação do seu insucesso, por acreditarem que nada mais há para fazer, ou (III) implementar técnicas de

70 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial: Aspectos polêmicos da disciplina jurídico-penal do final da vida. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 75.

71 SANTOS, Hannah Abram. Reflexões sobre o direito de morrer: uma análise crítica acerca da (in)compatibilidade das diretivas antecipadas de vontade com o sistema jurídico brasileiro. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade Baiana de Direito. 2016. p. 42

tratamento paliativo para que esse paciente consiga ter qualidade de vida no tempo que lhe resta.

A primeira abordagem indicada trata da prática de distanásia, também identificada como obstinação, encarniçamento ou futilidade terapêutica, que corresponde ao agressivo processo de adição ou de manutenção de tratamentos que promovem a distensão do processo de morrer, em alguns dias ou horas, comumente acompanhada por muita dor e sofrimento, sem nenhum benefício ao paciente terminal.

Assim, o quadro que aqui se delineia é a utilização desproporcional, desnecessária e abusiva dos conhecimentos e recursos disponíveis na Medicina mesmo quando já se sabe que trata-se de “um prolongamento artificial da vida do paciente, sem chance de cura ou de recuperação de saúde, segundo o estado da arte da ciência da saúde”72. A situação fica ainda mais grave, como muitas vezes

acontece, quando esse prolongamento da vida clínica do paciente, que, em verdade, é apenas o prolongamento do processo de morrer, se dá contra a sua vontade, com o qual só se consegue causar ainda mais prejuízos físicos e psicológicos ao indivíduo, vez que lhe é retirada a autonomia e a própria dignidade.

Lucília Nunes, faz importante observação a respeito dessa temática:

Não me parece que sejamos formados para lidar com a inevitabilidade da morte, de tal modo que me interrogo se, em algumas reanimações, em vez de se lutar pela vida, o combate não é simplesmente contra a morte. [...] Ademais, a medicalização da morte é fácil, caracterizando-se pela relação impessoal com o doente, estudos diagnósticos excessivos e agressivos, terapêuticas de alta tecnologia ineficazes, hospitalização desnecessária e morte institucional. Essas estratégias afastam a reflexão sobre a morte e sua inevitável proximidade.73

Minahim, alerta ainda que incontáveis são “os casos de pessoas coisificadas, manipuladas por terceiros nos herméticos centros de tratamento intensivo, que

72 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos V. A morte como ela é. In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena (coord). Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 175-212

73 NUNES, Lucília. Ética em cuidados paliativos: limites ao investimento curativo. Revista Bioética. Brasília, Volume 16, nº 1, 2008. p. 48.

esperam perplexas que tal situação tenha fim”74, por já não mais aguentarem sofrer

com o prologamento do processo de morrer. Nesse contexto, resta apenas a difícil compreensão para os profissionais de saúde, notadamente para os médicos, com formação ainda tão cartesiana na atualidade, a respeito da incurabilidade da morte, pois esta não é patologia, e ainda que, numa visão deveras distorcida, fosse assim identificada, não deveria ser combatida a qualquer custo, vez que se trata apenas de uma etapa inafastável da existência humana. Hannah Abram, no mesmo sentido, adverte que os “profissionais de saúde devem estar conscientes de que o dever de curar, quando já não é possível a cura, dá lugar ao dever de cuidar, sobretudo aliviando os sintomas que acomete o enfermo.”75

Maria Elisa Villas-Bôas ressaltava que, mesmo antes da edição da Resolução n° 1.805/2006, a “distanásia intencionalmente impingida” já era punível pelo direito, vez que a Constituição Federal, em seu art. 1º, inciso III, protegeu a dignidade da pessoa humana, indicando-a como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e, como consequência desse princípio, ainda estabeleceu, no art. 5º, inciso III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Além dos dispositivos de ordem constitucional, destacou ainda a autorização da persecução penal por constrangimento ilegal, nos termos do artigo 146 do Código Penal, quando a prática da distanásia não se afigurasse tipo mais gravoso.76

Contudo, com o claro posicionamento do CFM, por meio da edição das Resoluções n° 1.805/2006 e nº 1.995/2012, e da atualização do Código de Ética Médica em 2009, começou-se a mudar a forma de lidar com a morte medicalizada, dando um passo para abandonar as práticas distanásticas, pois ficou claro que manter a vida a qualquer custo, ainda que em condições degradantes, desumanas e não dignas, não se trata de um dever dos profissionais de saúde, notadamente do médico.

74 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito penal e biotecnologia. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp009064.pdf>. Acesso em 12 de novembro de 2017

75 SANTOS, Hannah Abram. Reflexões sobre o direito de morrer: uma análise crítica acerca da (in)compatibilidade das diretivas antecipadas de vontade com o sistema jurídico brasileiro. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade Baiana de Direito. 2016. p. 39

76 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o direito penal brasileiro. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina. p. 62. 2008. Disponível em:

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/56/59> Acesso em: 22 de novembro de 2017.

Assim, passa-se à segunda abordagem médica sinalizada, que infelizmente é ainda muito frequente, vez que, com a mudança regimento profissional da Medicina, esses profissionais passaram a responder pela prática de distanásia, contudo, com a grande deficiência do ensino em saúde no que toca à comunicação, ao controle da dor e de outros sintomas, estes médicos, por não saberem como lidar com a situação, se desligam do caso após informar ao paciente que morrerá, por acreditarem que nada mais há ser feito, quando, em verdade, é o momento que o paciente, em regra, mais necessita da atuação da equipe de saúde.

Laura Scalldaferri aponta que o paciente terminal, quando não há mais resposta aos tratamentos curativos, deve obrigatoriamente receber os cuidados indispensáveis à vida de qualquer paciente, chamados de tratamentos ordinários, seguindo, portanto, para a última abordagem listada. Trata-se do modelo atualmente defendido, onde, idealmente, os profissionais de saúde já teriam internalizado o espírito da ortotanásia, para entender que quando não há mais possibilidade de cura, ainda é necessário um trabalho contínuo de suporte interdisciplinar com este paciente, por meio de apoio psicológico e espiritual, de discussão clara e aberta acerca das alternativas terapêuticas, além do tratamento dos sintomas para que este fique confortável.

Consolidou-se, portanto, que não bastava que a Medicina promovesse manobras curativas destinadas exclusivamente a prolongar a vida, tendo havido, então, uma mudança de perspectiva, onde passou-se a buscar (I) a internalização do objetivo de proporcionar qualidade de vida e conforto aos pacientes – que em boa parte das vezes são os únicos objetivos concretizáveis –, e (II) a dissociação da morte com o fracasso da Medicina.

Assim, essa terceira abordagem é o equilíbrio que se chegou após os dois extremos da obstinação terapêutica e do abandono por não haver mais nada a fazer, sendo designada de ortotanásia, que trabalha lado a lado com os cuidados paliativos.