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4 LIMITES ENFRENTADOS NA EFETIVAÇÃO DAS DIRETIVAS

4.1 OS ENTRAVES CULTURAIS: A RELIGIÃO E A ATUAÇÃO DOS MÉDICOS

Impossível não realçar a capacidade que a sociedade brasileira teve de ser mais retrógrada do que a mais conservadora das instituições no que toca a preservação da vida. As resoluções tratam de questões tão amplamente aceitas que, em 1995, a Igreja Católica fez uma encíclica103, considerando legítima a ortotanásia

e a necessidade de autonomia do paciente, em contraste ao Brasil, que mais de 10 anos depois, continuava a questioná-las, e até o momento continua sendo alvo de muitos debates e polêmicas.104

Não se pode negar que, em que pese ser a liberdade religiosa um direito fundamental a todos assegurado pelo ordenamento jurídico brasileiro, o tratamento jurídico dado à vida é vinculado à ideia de sacralidade. Furtado alerta que não se pode dissociar essa forma de pensar a vida dos dogmas religiosos vinculados à

101 GOIÁS. Justiça Federal de Goiás. Sentença nº 0001039-86.2013.4.01.3500. Disponível em: <http://testamentovital.com.br/wp-content/uploads/2014/07/senten%C3%A7a-ACP-testamento- vital.pdf> Acesso em 15 novembro de 2017

102 AGUIAR, Mônica. Modelos de Autonomia e sua (in)compatibilidade com o sistema de capacidade civil no ordenamento positivo brasileiro: reflexões sobre a resolução 1995/2012 do conselho federal de medicina. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?

cod=69c7e73fea7ad35e>. Acesso em 14 de janeiro de 2018.

103 ENCÍCLICA: Carta circular do Papa aos bispos sobre dogma ou disciplina da Igreja. Dicionário Aurélio de Português Online. Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/enciclica> Acesso em 03 de janeiro de 2018

104 BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalista diz que lei ampara ortotanásia no país. Folha de São Paulo, Dezembro 2006. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0412200613.htm> Acesso em 01 de fevereiro de 2018.

religião cristã, majoritária no Brasil, “que pregam o sacrifício como expiação, num caminho de purificação em busca de uma vida eternamente agradável no além”. Isso dá força à ideia de “que a vida é sempre digna de ser vivida, ou seja, que estar vivo é sempre um bem, independente das condições em que a existência se apresente”. Nesse contexto, a vida não poderia ser interrompida nem mesmo por expressa vontade de seu detentor, vez que a ele não pertence. Assim, se a vida é sempre digna de ser vivida, contrario sensu, qualquer intervenção que venha a antecipar ou evitar o prolongamento do seu fim será indigna e contrária aos propósitos humanos.105

Contudo, Gabriel Furtado aponta ainda que essa abordagem não é compatível com a vigente ordem constitucional, pois, se fosse respeitada a liberdade de consciência e credo, os contornos do que se entende por vida digna de ser vivida seriam estabelecidas pelo projeto existencial do indivíduo, e seria legítimo a cada um o estabelecimento do seu “próprio limite para o enfrentamento da dor, da tristeza, e do sofrimento em geral”.106

Assim como qualquer outro direito, não é cabível a interpretação do direito à vida como um bem sob quaisquer circunstâncias, nem da morte como o mal supremo. Por meio dessa premissa, “torna-se possível sustentar que a vida não é um bem jurídico absoluto, recebendo diferentes graus de tutela de acordo com as circunstâncias e com as próprias escolhas existenciais do indivíduo.”107

Dessa forma, o quadro que se evidencia é o de consentimento para realização de avançadas pesquisas científicas, que oportunizam manobras para o prolongamento da vida e/ou promoção de conforto por meio dos cuidados paliativos, contraposto pelo paradoxal vácuo normativo sobre a ortotanásia ou a utilização de DAV, intrínsecos aos avanços médicos consentidos.108

Mônica Aguiar ressalta que o fato do Brasil ser um país com proporções continentais, extremamente plural na sua cultura, e “composto por camadas sociais

105FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. In: Revista eletrônica de direito civil. A.2. n.4. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-

content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf> Acesso em 16 de novembro de 2017

106 Idem.

107 FURTADO, Gabriel Rocha. Op., cit.

108 AGUIAR, Mônica. Modelos de Autonomia e sua (in)compatibilidade com o sistema de capacidade civil no ordenamento positivo brasileiro: reflexões sobre a resolução 1995/2012 do conselho federal de medicina. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?

tão dispares gera, inexoravelmente, um pensar conflitante a dificultar o estabelecimento de um consenso moral em diversos temas, especialmente no que toca ao direito à vida e à saúde”.109 Pelas mesmas razões, Dadalto reforça que,

exatamente por termos uma sociedade tão plural e dita democrática, não mais se concebe “a imposição de vontades individuais, vez que o papel do Estado é possibilitar a coexistência dos diferentes projetos individuais de vida.”110

Barroso, no mesmo sentido, assinala que sempre que houver dissenso na sociedade sobre questões polêmicas e houver argumentos racionais antagônicos, fenômeno denominado de desacordo moral razoável, caberia ao Estado e ao direito apenas respeitar a autonomia dos cidadãos.111

O que está sendo tratado indiretamente por todos esses autores é o multiculturalismo. Muitos autores quando tratam da temática entendem que a política identitária de um país não deve ultrapassar a liberdade individual, vez que cada indivíduo é único em suas características, valores e princípios. Assim, para concretização da democracia, a única alternativa seria reconhecimento do outro, ou seja, da diversidade, e esse reconhecimento integral depende do respeito à autonomia.

Para o efetivo exercício dessa autonomia pelo indivíduo, é essencial que os médicos ofertem apenas as informações importantes, para, ao revés, não alcançarem o efeito da desinformação causada pela confusão do excesso. Contudo, mesmo que estes atuem da maneira ideal, através do uso de uma linguagem simplificada, num contínuo esforço para se fazer compreender, por inúmeras razões, ainda assim podem não alcançar objetivo informativo. As principais razões que levam a isso são (I) a precariedade dos conhecimentos básicos pelo paciente, decorrentes das discrepâncias sociais supramencionadas; e (II) a distorção da

109 AGUIAR, Mônica. Modelos de Autonomia e sua (in)compatibilidade com o sistema de capacidade civil no ordenamento positivo brasileiro: reflexões sobre a resolução 1995/2012 do conselho federal de medicina. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?

cod=69c7e73fea7ad35e>. Acesso em 14 de janeiro de 2018.

110 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev. Bioética y Derecho, Barcelona, n. 28, Maio 2013. Disponível em <http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872013000200006&lng=en&nrm=iso> Acesso em 24 de novembro de 2017. p. 65-66

111 BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalista diz que lei ampara ortotanásia no país. Folha de São Paulo, Dezembro 2006. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0412200613.htm> Acesso em 01 de fevereiro de 2018.

informação pelo paciente, comumente baseadas na negação da patologia ou em falsas informações presentes no senso comum. Destaca-se ainda que os fatores emocionais e crenças pessoais têm, muitas vezes, ascendência sobre os racionais, levando os pacientes a tomarem decisões antes mesmo de obter informações.112

Ressalta-se ainda que, mesmo nos casos em que há a compreensão das informações e liberdade para decidir, estas nunca se dão de forma completa. Essa limitação é consequência natural, tanto do regramento constitucional que visa o convívio harmonioso entre os cidadãos; quanto intrínseca às influências de fatores externos próprios às relações humanas, tais quais os indicados acima, vez somos seres sociais, e não ilhas.113

Com isso, não se quer dizer que toda a influência exercida sobre o paciente seja negativa por interferir no exercício da sua autonomia. Em verdade, estas podem ser positivas, quando os médicos, por exemplo, apontam as vantagens e os riscos de um determinado tratamento, e “transmitem a informação demonstrando que trata- se de um ganho ou de uma perda de oportunidade.” Esse tipo de influência pode ser, inclusive, desejada pelos pacientes, pois, muitas vezes, estes não se sentem habilitados a tomar tais decisões, e preferem seguir a indicação médica da abordagem que consideram a melhor a seguir. Deixa-se claro, portanto, que essa necessária mudança de mentalidade, notadamente da Medicina, não autoriza colocar sobre o indivíduo toda carga da decisão, sendo sempre necessário o apoio da família e do médico em relação à escolha feita.114

Dito isso, temos que o fator decisivo ao efetivo exercício da autonomia é apenas a compreensão dos elementos essenciais das informações, ainda que estejam repletas das influências listadas, pois, tanto nas situações médicas como em diversas outras, fazemos escolhas sem termos uma compreensão completa do assunto e, mesmo assim, nos entendemos como emissores finais da decisão.115

Não se nega também que alguns indivíduos preferem não saber os detalhes do seu quadro médico e que optam por não participar das decisões, deixando a

112 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 51.

113 FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. In: Revista eletrônica de direito civil. A.2. n.4. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-

content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf> Acesso em 16 de novembro de 2017

114 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. Op., cit, p. 52. 115FURTADO, Gabriel Rocha. Op., cit.

família e os médicos tomarem as providências que entenderem cabíveis. Contudo isso não pode ser usado como justificativa para “desvalorizar a relevância da autonomia como elemento fundamental das decisões” acerca dos tratamentos e cuidados médicos, vez que inclusive esta decisão de afastamento e transferência do poder decisório tratam-se de expressões evidentes da autonomia.116

Não se nega que o processo do consentimento livre e esclarecido pode sofrer inúmeros desvios na sua efetivação por conta (I) da dificuldade de compreensão provocada pela precariedade educacional da população; (II) do desinteresse médico em informar e buscar consentimento, principalmente, dessas pessoas com pouca instrução; (III) da herança paternalista transmitida por meio do ensino da Medicina, dificultando a consolidação do respeito integral ao paciente; (IV) além das influências dos fatores religiosos, culturais, emocionais, e familiares, que estão fora da zona direta de atuação médica, mas que não devem escapar do atendimento interdisciplinar promovido pelos assistentes sociais e psicólogos.

Contudo, mesmo havendo o risco da sua não concretização em algumas circunstâncias, o processo do consentimento livre e esclarecido é, em muito, preferível à manutenção da abordagem paternalista, na qual o médico é responsável por determinar o que deve ou não ser feito. Neste processo de tomada de decisão, sob a argumentação de decidir segundo os melhores interesses do paciente, em verdade, os médicos adotam valores próprios, do contexto sociocultural onde se encontra, ou ainda segundo a abstração do homem médio.117

Assim, resta demonstrado que não há espaço para a passividade do médico, vez que é “o detentor da informação, capaz de legitimar a autonomia do paciente”. Em verdade, no mundo ideal, seria recomendável que constassem, nas DAV, os dados do médico que informou o paciente no processo de tomada de decisões prévias expressas no documento, como uma forma de assegurar, aos médicos que as executarão, a possibilidade de fazer contato com este em caso de dúvida. Necessário ressaltar que “essa menção só pode ser realizada com expressa autorização do médico.”118 Dadalto indica ainda que

116 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 51.

117 Idem.

118 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista bioética do Conselho Federal de Medicina. V. 21, n. 3, 2013, p.463-476. Disponível em

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855> Acesso em 05 de janeiro de 2018. p. 469

é imperioso que se faça uma campanha de conscientização dos cidadãos brasileiros acerca da importância do respeito à vontade de seus familiares, objetivando evitar conflito entre a vontade manifesta na DAV e a vontade da família. Como esta campanha é um esforço paulatino, entende-se que para tentar amenizar o conflito de vontades de forma imediata será necessário que os médicos conversem com as famílias quando forem informá-las da existência da DAV e que os hospitais mantenham psicólogos e assistentes sociais com esta habilidade.”119

Em síntese, de nada adiantará a formulação das diretivas antecipadas de vontade pelo indivíduo, se não houver um esforço, de todos que participam desse processo, para garantir que a vontade expressa seja efetivamente cumprida.

4.2 OS ENTRAVES JURÍDICOS: A ABSTENÇÃO DO LEGISLATIVO E A