• Nenhum resultado encontrado

3 UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

3.2 O TRATAMENTO JURÍDICO DISPENSADO PELO BRASIL

No Brasil, as DAV foram regulamentadas pela primeira vez em 2012, por meio da Resolução nº 1995 do CFM. Esta reconheceu o direito à autonomia do paciente,

44 BOMTEMPO, Tiago Vieira. Diretivas antecipadas: instrumento que assegura a vontade de morrer dignamente. Revista de Bioética y Derecho. n. 26, 2012. Disponível em

<http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872012000300004&lng=en&nrm=iso> Acesso em 26 de dezembro de 2017.

45 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista bioética do Conselho Federal de Medicina. V. 21, n. 3, 2013, p.463-476. Disponível em

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855> Acesso em 05 de janeiro de 2018. p. 464

46 MÖLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia: o direito à morte de pacientes terminais e os princípios da dignidade e autonomia da vontade. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 102.

47 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev. Bioética y Derecho, Barcelona, n. 28, Maio 2013. Disponível em <http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872013000200006&lng=en&nrm=iso> Acesso em 24 de novembro de 2017. p. 65

confirmando que este poderia se manifestar previamente ou indicar representante para decidir acerca dos tratamentos médicos que lhe seriam dispensados em caso de incapacidade superveniente. A resolução afirmou ainda que respeitar essas diretivas tratava-se de obrigação do médico.

Luciana Dadalto, em crítica sobre o tema, indica que muitos autores, no Brasil e no mundo, acabam por incluir, equivocadamente, todos as declarações acerca de tratamentos médicos dentro das DAV. Salienta que o equívoco se dá por não se reconhecer a herança histórica da criação deste instituto nos EUA. Afirma ainda que o fundamento estava, e ainda está, plenamente vinculado às decisões médicas sobre o fim da vida de pacientes com doenças terminais, em EVP, ou com demências avançadas, alertando, contudo, que poucos são os locais que preveem o uso das diretivas nessas últimas.48 Explica, ainda, que:

Doença terminal é aquela em que a patologia do paciente está em estágio irreversível e incurável e que a morte é esperada nos próximos seis meses. O EVP é quando o paciente está em situação clínica de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral por mais de três meses após anóxia cerebral e doze meses na sequência de traumatismo craniano. Por fim, a demência avançada é o quadro clínico em que o paciente tem função motora alterada, perdeu a autoconsciência e a reação à dor e o prognóstico de recuperação neurológica é irreversível.49

Embora este trabalho se debruce notadamente sobre as DAV no que toca aos pacientes terminais, com demência avançada ou em EVP, exatamente por serem, as situações limítrofes entre a vida e a morte, mais sensíveis à aceitação da expressão de autonomia destes pacientes, ousa-se discordar do posicionamento de Dadalto, uma das principais autoras sobre o tema na atualidade. Primeiramente, a despeito de reconhecer a relevância do contexto histórico, o tratamento jurídico dispensado por outros países nesta temática não vincula a abordagem que o Brasil venha a dar. Vale ressaltar que distintas são as realidades de cada Estado, sendo portanto plenamente plausível o estabelecimento de modelo distinto que melhor se adeque,

48 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista bioética do Conselho Federal de Medicina. V. 21, n. 3, 2013, p.463-476. Disponível em

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855> Acesso em 05 de janeiro de 2018. p. 466

não se vislumbrado, portanto, nenhuma impropriedade na reunião, em um único instituto, de todas as declarações acerca de tratamentos médicos. Além disso, analisando a Resolução nº 1995 do CFM, que atualmente é a que regulamenta a temática no Brasil, verifica-se que o objeto não foi restringido às situações de terminalidade, de EVP ou de demência avançada, em que pese terem sido as principais razões que impulsionaram os debates e levaram à sua confecção, exatamente por sua maior complexidade.

Atualmente, no Brasil, o entendimento doutrinário com o qual se concorda, é que as diretivas devem elencar em sua elaboração, além das (I) decisões sobre a recusa ou a aceitação de cuidados e tratamentos médicos, indicando as patologias/situações em que pretende ver o seu direito respeitado; (II) os valores e desejos do indivíduo no que toca à sua vida, como forma de deixar clara a sua intenção ao elaborar o documento; (III) a declaração de “que foi esclarecido sobre a possibilidade de revogação do documento a qualquer momento, sem a necessidade de justificativa”. Além dessas, alguns autores indicam a possibilidade de previsão de outras disposições que sejam do interesse do indivíduo, podendo, por exemplo, indicar onde “deseja passar seus últimos dias, se deseja ser enterrado ou cremado”, mas ainda trata-se de ponto controverso, vez que outros entendem que há a desnaturalização do instituto com a inclusão dessas cláusulas.50

Concorda-se com Matheus Massaro e Patrícia Borba, quando pugnam pela inclusão do “aconselhamento médico e jurídico, como pressupostos fundamentais para a validade do documento”. Notável é a importância do médico para “esclarecer ao declarante no que consiste cada procedimento e tratamento disponível, os benefícios e malefícios de sua utilização, e as consequências da decisão”, sendo ainda possível, caso este concorde, anotar o nome e o CRM do médico, a fim de que este seja procurado caso hajam dúvidas das informações prestadas pelo paciente. Igualmente importante é o auxílio de um advogado para orientar o indivíduo na elaboração formal do documento, evitando que este incorra em vícios que o invalidaria, tais quais a disposição sobre assuntos que são ilícitos no direito

50 MABTUM, MM., and MARCHETTO, PB. Diretivas antecipadas de vontade como dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 89-131. ISBN 978-85-7983-660-2. Disponível em :

<http://books.scielo.org/id/qdy26/pdf/mabtum-9788579836602-05.pdf> Acesso em 19 de janeiro de 2017. p.113

brasileiro, além de esclarecer sobre as consequências jurídicas da decisão e informá-lo acerca da possibilidade de revogação do documento a qualquer tempo. Dúvida não há que apenas um paciente devidamente esclarecido seria capaz de exercer efetivamente a sua autonomia.51

Trata-se de ponto comum entre os autores brasileiros que as DAV devem possuir efeito erga omnes, “vinculando médicos, parentes do paciente, e eventual procurador de saúde vinculado às suas disposições”52, evitando assim a

judicialização do processo de morrer.

No que toca ao prazo de validade não existe consenso na doutrina se as DAV deveriam ser vitalícias ou se deveriam perder a sua validade após alguns anos. Os países que adotaram as DAV com prazo de validade assim o fizeram por entender que o declarante poderia esquecer de ter elaborado o documento, além de levarem em consideração que as diretivas se tornariam obsoletas, dada a evolução da ciência médica; ao passo que as que adotaram a modalidade vitalícia assim optaram por se tratar de documento que pode ser revogado a qualquer tempo, e que deverá ser interpretado pelo médico segundo o atual avanço da Medicina.

Além disso, em que pese ser possível em muitos países, no Brasil não é cabível a imposição da vontade do declarante, por meio das DAV, no que toca à doação de órgãos, uma vez que o art. 4°, da lei 9.434/97, alterada pela lei 10.211/0153, estabelece que esta decisão cabe aos familiares. Assim, alguns autores

entendem que não seria possível incluir como item do testamento vital, por ir de encontro ao fundamento das DAV, qual seja, a obrigatoriedade do respeito à vontade, à autonomia, do paciente; ao passo que outros reconhecem a possibilidade de inclusão do desejo do paciente, desde que esteja expresso que trata-se de sugestão, por ser a sua vontade, mas que entender que a decisão será exclusivamente dos familiares nos termos da lei citada.

51 MABTUM, MM., and MARCHETTO, PB. Diretivas antecipadas de vontade como dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 89-131. ISBN 978-85-7983-660-2. Disponível em :

<http://books.scielo.org/id/qdy26/pdf/mabtum-9788579836602-05.pdf> Acesso em 19 de janeiro de 2017. p.114

52 DADALTO, Luciana. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Revista Síntese Direito de Família. Ano XV, 2013.

53 Art. 4° A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

Destaca-se ainda que atualmente no Brasil as DAV têm como limites, para a disposição acerca da recusa ou aceitação de cuidados e tratamentos médicos, a distanásia e a ortotanásia, o que não significa ser esta uma regra para todos os países que já legislaram sobre o tema. Em verdade, os limites destes instrumentos serão fixados de acordo com a legislação local. Por exemplo, em Estados onde a legislação autoriza práticas de eutanásia ou de suicídio assistido, estas poderiam tranquilamente estar previstas nas diretivas, ante a sua inofensividade aos princípios e ao ordenamento jurídico à qual deve respeito.

Em que pese as primeiras discussões acerca das DAV já terem completado 50 anos, fica claro que o tema é bastante recente, quando considerada a sua complexidade. No Brasil, por exemplo, a despeito de ser claro para quem estuda sobre o tema, que as DAV tratam-se de escolhas no limite dos tratamentos distanásticos e ortotanásticos, a população em geral, e até mesmo os profissionais de saúde continuam fazendo diversas confusões entre estas, a eutanásia e o suicídio assistido. Essa confusão é compreensível dada a pouca familiaridade com essas terminologias e por conta da linha tênue que por vezes as difere na prática. Assim, indispensável se faz a diferenciação dessas designações que comumente que envolvem o processo de terminação da vida, para que reste claro quais medidas efetivamente estão dentro da possibilidade de escolha autônoma do indivíduo, afastando de uma vez a falta de conhecimento que leva as pessoas a se colocarem contra a efetivação desse instituto tão importante.

3.3 A NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DAS DESIGNAÇÕES QUE COMUMENTE