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3 UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

3.3 A NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DAS DESIGNAÇÕES QUE COMUMENTE ENVOLVEM O PROCESSO DE TERMINAÇÃO DA VIDA:

3.3.4 Ortotanásia: noções sobre cuidados paliativos

A nomenclatura ortotanásia significa a morte no tempo certo, o que pode ser confirmado a partir da etimologia grega dos radicais orthos (reto, correto) e thanatos (morte). Ao contrário das designações anteriormente conceituadas, aqui não há nem a antecipação, nem a postergação da morte. Em verdade, a ortotanásia é o antônimo da distanásia, vez que aquela visa evitar a prática desta. Assim, a ortotanásia é uma prática de recorrer apenas a tratamentos proporcionais, não mais se admitindo aquelas que nem reverterão o quadro terminal, nem trarão conforto e bem-estar ao paciente que já vivencia o curso do processo de morrer, prezando ao fim pela promoção dos cuidados paliativos.

Ao contrário da eutanásia passiva, como já foi explicado, aqui não há a interrupção “arbitrária de condutas que ainda são indicadas e proporcionais, ou seja, condutas que ainda poderiam beneficiar o indivíduo”77, com a intenção de pôr fim ao

sofrimento através do resultado morte, e sim a suspensão de tratamentos que não mais operam a função que deveriam exercer e que em nada melhoram a existência do paciente terminal, e “a intenção não é matar, mas sim evitar prolongar indevidamente a situação de esgotamento físico”.78 Assim resta claro que, além da

primeira interromper um tratamento eficaz, ao passo que na outra a interrupção é de tratamento ineficiente, ainda se diferem na intenção, vez que na eutanásia tem-se a intenção de matar, ainda que por motivos nobres, e na ortotanásia apenas permite- se que a vida siga o seu curso natural, culminando na morte, por não existirem, na Medicina, artifícios capazes de reverter o quadro.

Faz-se jus destacar que essa distinção ganha ainda mais relevo no que toca ao tratamento jurídico dispensado, vez que a eutanásia, como já dito, trata-se de prática ilícita e criminalmente punível, ao passo que a ortotanásia não só é lícita, como é um ideal a ser seguido, sob pena de responsabilização disciplinar, civil e até

77 LEMOS, Tamiles Ferreira. O respeito pela autonomia: a admissibilidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia. 2017. p. 54.

78 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o direito penal brasileiro. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina. 2008, p. 63. Disponível em:

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/56/59> Acesso em: 22 de novembro de 2017.

mesmo criminal. A Resolução 1.805/06, do CFM, veio para reforçar a licitude da ortotanásia, indicando que

Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.79

Diz-se aqui que a Resolução citada apenas reforçou, pois, em verdade, a permissão já existia, vez que se trata de consectário lógico do ordenamento jurídico brasileiro, notadamente dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia. Assim, a Resolução 1.805/06, do CFM, foi editada com o objetivo maior de aclarar os moldes dessa prática, elucidando as dúvidas que os médicos mais frequentemente tinham ao lidar com pacientes terminais. Fincou-se, dessa forma, o entendimento que “a ciência e a tecnologia não podem ser punição ao doente”, não sendo plausível que recursos sejam desperdiçados com tratamentos extraordinários e desproporcionais em pacientes que não auferem nenhum benefício, sobretudo “quando se considera que tratamentos e medicações efetivamente necessários sequer são disponibilizados a todos os que realmente deles precisam”.80

Nessa perspectiva, Hannah Abram esclarece que a prática da ortotanásia não deve remeter à demonização do avanço tecnológico da Medicina, e sim à problematização dos dilemas ético-jurídicos que envolvem a forma como é utilizada, vez que a mesma tecnologia que visa “a cura do paciente ou a sua qualidade da vida, e é bem empregada”, deve ser rechaçada quando visa “tão somente, o prolongamento do processo de morrer”.81

79 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.. Resolução nº 1805 de 2006. Disponível em <

http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm> acesso 28 de outubro de 2017.

80 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o direito penal brasileiro. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina. 2008, p. 77. Disponível em:

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/56/59> Acesso em: 22 de novembro de 2017.

81 SANTOS, Hannah Abram. Reflexões sobre o direito de morrer: uma análise crítica acerca da (in)compatibilidade das diretivas antecipadas de vontade com o sistema jurídico brasileiro. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade Baiana de Direito. 2016.

A ortotanásia se efetiva a partir das chamadas “condutas médicas restritivas”, que limitam a utilização de certos recursos que não se mostram adequados ao caso, havendo a manutenção apenas dos tratamentos ordinários. Esses tratamentos são assim chamados vez que são ordinariamente devidos a todos os pacientes e não apenas aos terminais. Assim, compõem os tratamentos ordinários ou paliativos as terapêuticas sem as quais a morte seria antecipada ou induzida, além daquelas que visam o conforto do paciente, sem interferir propriamente na evolução da doença. Pode-se citar aqui a administração de sedativos para controle da dor, outras medicações para controle de sintomas da patologia vivenciada pelo enfermo, além da sua higienização, não devendo haver a sua suspensão exatamente por estarem ligadas à dignidade do ser humano.82

Além disso, os cuidados paliativos devem envolver atenção à pessoa e à família, vez que ambos passam por momentos bastante sensíveis, e devem ser respeitados “na sua globalidade, com a sua multiplicidade de problemas e que, para melhor os resolver, é desejável que a abordagem seja multidisciplinar, com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos/psiquiatras, voluntários, religiosos e outros”.83

Em breve síntese, Villas-Bôas aponta quais tratamentos que poderiam ser interrompidos indicando que

Quando se fala em omissão ou suspensão do suporte vital, geralmente se quer aludir ao desligamento ou à não introdução de aparelhos de ventilação mecânica e à omissão ou interrupção do uso de drogas que estimulam o funcionamento cardíaco (vasoativas). É possível incluir-se também a ordem de não reanimar. Menos frequentemente, discute-se a omissão de métodos dialíticos nos casos de vítimas de falência renal, a não introdução de antibióticos em caso de infecções e, ainda mais raramente, a suspensão da nutrição e da hidratação providas por meios artificiais.84

82 PESSOA, Laura Scalldaferri. Pensar o final e honrar a vida: direito a uma morte digna. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 100.

83 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 170.

84 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o direito penal brasileiro. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina. 2008, p. 69. Disponível em:

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/56/59> Acesso em: 22 de novembro de 2017.

Ressalta-se que, em que pese a impossibilidade de suspensão de alimentação e hidratação artificial ser entendimento dominante no Brasil, existem profundas discussões em todo o mundo a esse respeito, já tendo sido reconhecida por alguns países e havendo forte inclinação à sua aceitação outros. Os críticos dessa possibilidade afirmam que com a suspensão “os doentes morrerão de fome e sede, o que vai contra a solidariedade interpessoal”, caracterizando eutanásia. Como forma de ilidir essa preocupação que em regra é levantada, os defensores da possibilidade de suspensão de alimentação e hidratação artificial afirmam que os pacientes decerto morrerão da patologia que os afeta, antes mesmo que a ausência da nutrição ou hidratação produza seus efeitos no seu organismo de maneira fatal. Essa afirmação é decorrente de estudos que indicam que, em determinadas situações, a introdução ou manutenção dessas medidas causam desconforto incontornável ao paciente terminal, não podendo, portanto, ser considerada cuidado básico vez que não melhora a qualidade de vida, devendo ser, nesses casos, entendido como tratamento desproporcional. 85

3.4 ESPÉCIES DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE: TESTAMENTO