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Reflexões sobre as diretivas antecipadas de vontade e os limites socioculturais e jurídicos enfrentados na sua efetivação

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FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

CAMILA VILAS BOAS ALVES

Reflexões sobre as diretivas antecipadas de vontade e

os

limites socioculturais e jurídicos enfrentados na sua efetivação

Salvador

2018

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Reflexões sobre as diretivas antecipadas de vontade e os

limites socioculturais e jurídicos enfrentados na sua

efetivação

Trabalho de conclusão de curso de graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Daniela Carvalho Portugal. Coorientadora: Belª. Hannah Abram Santos.

Salvador

2018

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Reflexões sobre as diretivas antecipadas de vontade e os

limites socioculturais e jurídicos enfrentados na sua

efetivação

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Aprovada em 07 de março de 2018.

Daniela Carvalho Portugal – Orientadora___________________________________ Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Hannah Abram Santos – Coorientadora____________________________________ Bacharel em Direito pela Faculdade Baiana de Direito.

Fabiano Cavalcante Pimentel___________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Thaís Bandeira Oliveira Passos__________________________________________ Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

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Na concretização de mais este ponto de continuação da minha jornada, ficaram pelo caminho as marcas do esforço e do sacrifício, que não foram apenas meus. Assim, alguns agradecimentos especiais se fazem indispensáveis.

Primeiramente agradeço a Deus, por sua presença constante em meu coração me dando forças para seguir em frente.

Agradeço a minha orientadora, professora Dra. Daniela Portugal, e a minha coorientadora, Bela. Hannah Abram, pela atenção e paciência na construção desse trabalho.

Por serem o meu início, meio e fim, agradeço aos meus pais, Eduardo e Eunice, por todas abdicações e esforço em prol da minha felicidade e de um caminho melhor para mim.

Agradeço ainda aos meus irmãos, avós, tios, tias, primos, amigos, por fazerem parte da minha vida, da minha essência.

Um agradecimento mais do que especial para minhas Panteras, Vanessa, Bartira, Victória e Luana, que estiveram comigo diariamente ao longo dessa jornada, lado a lado. Vocês são extraordinárias!

Também devo um especial agradecimento ao meu companheiro da vida, Victor Hugo, que me acompanhou nesse trilhar com paciência, dedicação e amor, e a minha irmã do coração, Mariana, que sofreu e sorriu junto comigo a cada passo dessa trajetória.

A todos que fazem parte da minha vida, obrigada por serem a minha mola propulsora, saibam que essa vitória é tão minha, quanto é de vocês. E, por fim, como Newton, só me resta reconhecer que “se vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”.

(5)

morte vem, nós já não estamos. Epicuro

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O presente trabalho de conclusão de curso tem por objetivo identificar os limites socioculturais e jurídicos enfrentados na efetivação das diretivas antecipadas de vontade (DAV). Para isso, foi necessário analisar, por meio do método de revisão bibliográfica, a forma como a sociedade ocidental, especialmente a brasileira, se relacionava e se relaciona com o processo de morrer, traçando um paralelo desse histórico com as mudanças dos critérios médico-legais de identificação da morte. Diferenciou ainda as práticas de eutanásia, de suicídio assistido, de mistanásia, de distanásia e de ortotanásia, e ponderou quais medidas de manutenção de vida poderiam ser dispensadas nas DAV e quais os tratamentos ordinários ao cuidado com o indivíduo. Em seguida, delineou as principais características das DAV, diferenciando as suas duas espécies, o testamento vital e o mandato duradouro. Verificou ainda a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, por meio do exame dos dispositivos constitucionais do direito à vida e dos princípios, notadamente, do princípio da dignidade da pessoa humana, da autonomia e da liberdade de consciência, além da análise de julgados, de dispositivos legais que se relacionam com o tema, e do comparativo com o tratamento jurídico dado por outros países. É nesse contexto que resta patente a complexidade e a relevância das diretivas antecipadas de vontade.

Palavras-chave: Diretivas Antecipadas de Vontade. Princípios. Direito à Vida. Direito

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This undergraduate thesis aims to identify the sociocultural and legal boundaries faced in the implementation of advanced directives. For this, it was necessary to analyze through the method of bibliographical revision, the way in which the western society, especially the Brazilian society, handles the process of dying, drawing a parallel between this history and the changes of the medical-legal criteria of death. It also differentiates practices of euthanasia, assisted suicide, dysthanasia and orthothanasia, and ponderes what life-sustaining measures could be dispensed in advanced directives, and what ordinary treatments are available for the care of the individual. Furthermore, it outlines the main characteristics of the advanced directives, differentiating between their two species, the living will and the durable power of attorney. It also verifies its compatibility with the Brazilian legal system by examining the constitutional provisions of the right to life and the principles, in particular, the principle of the dignity of the human being, autonomy and freedom of conscience, as well as the analysis of judgments, of legal provisions that relate to the topic, and the comparative with the legal treatment given by other countries. It is in this context that the complexity and relevance of the advanced directives will become apparent.

Keywords: Advanced Directives. Principles. Right to life. Right of a dignified death.

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CEM CFM CP DAV ed. EVP MP CC n. PSDA Res. vol.

Código de Ética Médica

Conselho Federal de Medicina Código Penal Brasileiro

Diretivas Antecipadas de Vontade Edição

Estado Vegetativo Persistente Ministério Público

Código Civil Número

Patient Self-Determined Act Resolução

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1 INTRODUÇÃO 10

2 UMA ANÁLISE SOBRE A TERMINALIDADE DA VIDA 13

2.1 BREVE HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE A SOCIEDADE 13

OCIDENTAL E A MORTE

2.1.1 A familiaridade da morte 13

2.1.2 A medicalização do processo de morrer 15

2.2 OS REFLEXOS DA MUDANÇA DOS CRITÉRIOS DE CONSTATAÇÃO 19

DA MORTE NA COMPREENSÃO SOCIAL DO MORRER

2.2.1 O critério cardiorrespiratório 20

2.2.2 O critério encefálico 22

2.2.3 Novos desafios: o critério neocortical 25

3 UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE 29

3.1 ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS 30

DE VONTADE

3.2 O TRATAMENTO JURÍDICO DISPENSADO PELO BRASIL 31

3.3 A NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DAS DESIGNAÇÕES QUE 35

COMUMENTE ENVOLVEM O PROCESSO DE TERMINAÇÃO DA VIDA:

3.3.1 Eutanásia 36

3.3.2 Mistanásia 39

3.3.3 Distanásia 40

3.3.4 Ortotanásia: Noções sobre cuidados paliativos 44

3.4. ESPÉCIES DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE: 47

TESTAMENTO VITAL (LIVING WILL) E MANDATO DURADOURO (DURABLE

POWER OF ATTORNEY FOR HEALTH)

4 LIMITES ENFRENTADOS NA EFETIVAÇÃO DAS DIRETIVAS 51

4.1 OS ENTRAVES CULTURAIS: A RELIGIÃO E A ATUAÇÃO DOS MÉDICOS 54

4.2 OS ENTRAVES JURÍDICOS: A ABSTENÇÃO DO LEGISLATIVO E A 59

INSEGURANÇA JURÍDICA

5 CONCLUSÃO 65

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1 INTRODUÇÃO

O medo da morte é algo orgânico, instintivo em todos os animais, intrínseco à ideia de sobrevivência. Contudo, quando se trata da espécie humana, não se pode negar a grandiosa influência que os fatores socioculturais exercem sobre a forma como a sociedade lida com o processo de morrer. Olhando para um passado não tão distante, já é possível perceber inúmeras diferenças na maneira de enxergar esse evento natural e inevitável, havendo uma clara relação dessas mudanças de perspectiva com os consideráveis avanços técnico-científicos, sobretudo na Medicina.

Com o desenvolvimento tecnológico na área médica foi possível o prolongamento da expectativa de vida, por meio da contínua descoberta de novos tratamentos, procedimentos, e equipamentos de suporte vital. Todavia, apesar das incontestáveis melhorias nas condições de vida da população, os avanços trouxeram consigo novos problemas de ordem social, ética e jurídica, vez que nem sempre os artifícios médicos utilizados para manter a vida, vinham aliados ao conforto e à dignidade do paciente.

Neste contexto, o quadro consolidado era o do paternalismo médico, no qual este era o responsável exclusivo por tomar as decisões sobre os tratamentos que dispensaria ao paciente. Apesar de ser ainda muito comum essa forma de atuar, passou-se a defender que o indivíduo possuidor de capacidade, detentor da própria vida, deveria decidir, de acordo com seus princípios e valores, sobre as terapêuticas que acreditassem ser melhores para si. Assim, no espírito de efetivar o exercício dessa autonomia, necessário se faz o consentimento livre e esclarecido, que, em conjunto, são indispensáveis para a concretização da dignidade da pessoa humana.

É nesse cenário de defesa da autonomia e da dignidade do paciente que surgiram as diretivas antecipadas de vontade. Estas se subdividem em dois instrumentos essenciais para a preservação destes princípios, visando manter a expressão de vontade do paciente nos momentos em que não mais puder exprimi-las por conta de algum fator incapacitante. Os instrumentos são o testamento vital e o mandato duradouro, sendo documentos que, em síntese rústica, estabelecem quais os tratamentos e cuidados aceitos ou rejeitados, indicando as circunstâncias

(11)

em que devem ser aplicáveis, ou indicam um procurador de saúde para tomar as decisões médicas conforme às vontades do paciente. Conjuntamente, estes buscam evitar a utilização de tratamentos agressivos ou fúteis, especialmente quando vão de encontro a vontade do paciente.

Em que pese a notória relevância do instituto, não existe ainda legislação que a regule no Brasil. Embora o Conselho Federal de Medicina tenha editado resoluções sobre a temática e estas possuam indiscutível importância, não conseguem alcançar inúmeros aspectos essenciais para dar segurança jurídica ao instituto. Doutrinariamente, após muitos anos de discussão, o ponto comum que se chegou foi o da compatibilidade das diretivas antecipadas de vontade com o Direito Brasileiro, mas perduram os debates sobre quais tratamentos, cuidados e condutas médicas que podem ou não ser objeto de disposição por meio destes documentos.

Assim, foi tendo em vista (I) a insegurança jurídica; (II) o desconhecimento da população em relação as práticas médicas e aos seus direitos básicos; (III) além das inúmeras confusões entre as designações que comumente que envolvem o processo de terminação da vida; (IV) e a influência dos fatores sociais, culturais, religiosos, econômicos; que se buscou estudar os fatores que prejudicam o processo de efetivação das diretivas.

Isso posto, esse trabalho se dividirá então em três partes, sendo que a primeira se debruçará numa análise sobre a terminalidade da vida. Nesta seção, será traçado um breve histórico da relação entre a sociedade ocidental e a morte, buscando o exame da transição do processo de familiaridade para o de medicalização do morrer. Ainda nesta parte serão determinados os reflexos da mudança do critério de constatação da morte, do cardiorrespiratório para o encefálico, na compreensão social do morrer, além de fazer uma previsão da relação da sociedade com o critério neocortical.

Na segunda parte será feita uma reflexão sobre as diretivas antecipadas de vontade, começando pelo escorço histórico deste instituto e pela análise do tratamento jurídico a este dispensado no Brasil. Serão então diferenciadas as designações que comumente envolvem o processo de terminação da vida, notadamente a eutanásia, a mistanásia, a distanásia e a ortotanásia, clarificando o que é ou não juridicamente aceito no Brasil. Assim, serão delimitadas quais práticas

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poderão ser objeto de disposição nas Diretivas Antecipadas de Vontade, que englobam duas espécies: o Testamento Vital (Living Will) e o Mandato Duradouro (Durable Power of Attorney for Health).

Por fim, o recorte da presente temática buscará explorar os limites enfrentados na efetivação das diretivas, tendo como enfoque os entraves culturais, notadamente no que toca à religião e à atuação dos médicos, assim como os entraves jurídicos, no que diz respeito a abstenção do legislativo e a insegurança jurídica do instituto.

O presente trabalho será realizado com base em pesquisa bibliográfica, principalmente por meio de consulta doutrinária nacional e estrangeira, com o propósito de alcançar uma reflexão crítica que contribua tanto para a comunidade científica, quanto para o amadurecimento da sociedade por meio de informações passadas de maneira clara e acessível.

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2 UMA ANÁLISE SOBRE A TERMINALIDADE DA VIDA

Por mais que de tudo que há na vida a única certeza que efetivamente se tenha seja a inevitabilidade da morte, inegável que trata-se de “uma obviedade esquecida por boa parte da sociedade ocidental contemporânea, que teima em ver a morte como um evento artificial, inesperado e injusto”1. Por mais que se tente, ainda

não chegamos nem perto de conseguir impedi-la, embora seja bastante questionável se é realmente isso que deveria acontecer. Assim, dada a impossibilidade de evitar este resultado natural, só nos cabe decidir como conviver com esta etapa natural da nossa existência, a morte, e com a sua iminência, afinal, como sabiamente diz o ditado popular “para morrer só basta estar vivo”.

2.1 BREVE HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE A SOCIEDADE OCIDENTAL E A MORTE

Em que pese ter sempre havido, em alguma medida, temor e apreensão, causadas principalmente pela incerteza que a envolve, o modo de se relacionar com a morte sofreu diversas alterações. Estas foram influenciadas por diferentes aspectos, dentre eles os socioeconômicos, os culturais e, principalmente, os derivados dos avanços tecnológicos na Medicina.

Historicamente é possível dividir em dois momentos principais a forma como as sociedades contemporâneas, em especial a brasileira, lidavam e lidam com o fenômeno da morte. Alerta-se que diferenças culturais, temporais e espaciais modificam traços desses momentos, permanecendo, contudo a essência deles.

2.1.1 A familiaridade da morte

Ainda no início do século XX, as pessoas defrontavam-se com a morte cotidianamente vez que a população vivia não mais de 33 anos.2 Essa baixa 1 COSTA, Diego Amaral da. Humanidade: Mitos, desejos, sonhos e esperanças. 1. Ed. Clube dos

autores, 2013. p. 185.

2 SIMÕES, Celso Cardoso Silva. Breve histórico do processo demográfico. In: FIGUEIREDO, Adma Hamam de (Org.). Brasil: uma visão geográfica e ambiental no início do século XXI. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Geografia, 2016. p. 45.

(14)

expectativa de vida, decorria das “duras condições de vida das populações, da insalubridade das habitações, da ausência de saneamento nas povoações e da ineficácia da Medicina”3. Assim, era comum ter sempre num círculo de convívio

próximo, pessoas enfermas e moribundas, o que facilitava este processo de naturalização da morte.

Destaca-se que a morte que passava por esse processo de naturalização era a morte por causas naturais, ou seja, aquela derivada do avançar da idade ou do acometimento por alguma mazela, e não aqueloutra derivada do aumento dos índices de violência que atualmente se convive aos montes e que é banalizada. À época ora em análise, Gonçalves destaca que “até a Primeira Guerra Mundial, no Ocidente de cultura latina, a morte de alguém era um período solene”, um acontecimento público, no qual toda a comunidade participava dos atos fúnebres e vivia o luto que se seguia, afirmando ainda que apesar de a morte ser temível, como continua a ser até hoje, não o era ao ponto de “fazer com que as pessoas a afastassem, fugissem dela, procedessem como se não existisse ou falsificassem as suas aparências”.4

Apesar de ser considerada desagradável, entendia-se que era indispensável que fosse informado ao moribundo que o fim da sua vida era iminente para que este tivesse a possibilidade de fazer a sua preparação espiritual, refletir sobre as experiências vivenciadas, expressar os seus desejos para seus últimos momentos em vida e aqueles para além da morte, embora essa prática já viesse sofrendo profundas modificações desde o início do século XX. Isso não significa dizer que a morte era uma vontade daquele que estava no seu processo de morrer, ou daqueles familiares e amigos que o acompanhavam, mas sim que havia uma atitude de conformação em relação ao destino que se descortinava e o acolhimento do moribundo nesse momento de despedida.5

Até meados do século XX, ainda era prática comum que as pessoas gravemente doentes ou com idade bastante avançada ficassem em casa, vivendo o processo de morrer cercado por parentes, amigos e pela vizinhança. Em seguida, o velório era também realizado na casa do falecido ou de alguém da família, no qual

3 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 8.

4 Idem.

5 ARIÈS, Philippe. O homem perante à morte. 2. Ed. Tradução de Ana Rabaça. Portugal: Publicações Europa-América, 2000. p. 24.

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se oferecia comida às pessoas que acompanhavam o velório e o enterro, “tradição que ainda sobrevive em algumas cidades do interior do Brasil”.6 Por haver este

alongamento dos rituais de luto, o que se via nos velórios era uma reunião fúnebre destes familiares e amigos, unidos pelo momento de consternação, mas entrecortado por momentos mais leves, onde as pessoas rememoravam as histórias daquele que se foi e conversavam sobre a vida e as novidades que esta tinha ofertado.

2.1.2 A medicalização do processo de morrer

Num segundo momento, observa-se que com a melhoria do saneamento, da salubridade, e das técnicas médicas houve um aumento significativo da expectativa de vida. O livro “Brasil: Uma visão geográfica e ambiental no início do século XXI”7,

organizado por Adma Hamam de Figueiredo, traz dados elucidadores a respeito deste aumento da expectativa de vida ao longo das décadas, como por ser visto nas tabelas abaixo:

Entre 1900 e 1930, como pode ser percebido na tabela, verifica-se que, temporalmente, o passar de uma década pouco influenciava a alteração da expectativa de vida da população, com variações de apenas frações de 1(um) ano.

6 COSTA, Diego Amaral da. Humanidade: Mitos, desejos, sonhos e esperanças. 1. Ed. Clube dos autores, 2013, p. 191.

7 SIMÕES, Celso Cardoso Silva. Breve histórico do processo demográfico. In: FIGUEIREDO, Adma Hamam de (Org.). Brasil: uma visão geográfica e ambiental no início do século XXI. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Geografia, 2016, p. 45.

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Contudo, a partir da década de 1930, com a melhoria da qualidade de vida, ocasionada pela evolução dos fatores indicados, o aumento da esperança de vida ao nascer passou a dar passos mais largos, como pode ser visto na tabela que segue.

Contudo, foi no contexto pós Segunda Guerra Mundial, durante o período da Guerra Fria, momento em que os países capitalistas, capitaneados pelos Estados Unidos da América com a política do Welfare State, vivenciaram período de grande assistencialismo do Estado em relação aos seus cidadãos. Nesse momento histórico realizaram-se maiores investimentos em políticas sociais, tais quais a saúde, momento em que passou-se à “progressiva utilização dos antibióticos e técnicas cirúrgicas”.8

Com esses dados depreende-se que até a primeira metade do século XX, havia um aumento da expectativa de vida em aproximadamente 2,37 anos a cada década, tendo havido um aumento de 56% entre 1950 e 2014, quando o referido aumento passou a ser aproximadamente 3,72 anos a cada década.

Nune indica que foi também na década de 1950 que se iniciou o projeto de saúde preventiva na América Latina, tendo se dado a partir da mudança paulatina no projeto pedagógico dos médicos em formação. Aponta ainda que foi na década de 1970 que houve efetivamente essa mudança de perspectiva do tratamento médico, que até então era majoritariamente individualizado, para uma dinâmica de atuação

8 NUNE, Everardo Duarte. Saúde coletiva: História de uma ideia e de um conceito. Saúde e Sociedade, v.3, n. 2, Publicado: 1994. p. 05-21.

(17)

médica também coletivizada, compreendendo as questões de saúde da população como um todo. 9

Feito esse recorte histórico, fica mais fácil de assimilar que, com a atuação da medicina preventiva, aliada ao avanço dos fármacos, das técnicas cirúrgicas e das máquinas utilizadas na atuação hospitalar, foi possível aumentar os níveis de saúde e bem-estar das populações, acarretando diretamente um expressivo aumento da expectativa de vida, de quase 10 anos, com o passar da década de 1970 para a de 1980.

Com o reconhecimento de que as técnicas médicas estavam fazendo as pessoas viverem cada vez mais, e tudo isso a passos largos, foi-se formando uma aura de invencibilidade da Medicina, e os enfermos e suas famílias, na esperança desse encontro com aqueles que tudo poderiam reverter, ansiavam pela contenção do processo da morte. Assim, tendo em vista a sua inevitabilidade, o processo de morrer foi silenciosamente sendo transferido para os ambientes hospitalares.

Diego Amaral da Costa, pontua que, com essa transferência para a frieza dos hospitais, foi diminuída a agregação social que ocorria pelo processo coletivo e gradual de resignação com a morte, de união que existia para digerir o “impacto provocado pela perda do outro” pois agora mantinha-se a ideia da morte distanciada até quando ela efetivamente ocorria, assim como se fazia com a pessoa que estava morrendo.10

Segundo Ariès, todos os avanços experimentados ao longo do século XX “em termos do conforto, da higiene das habitações e da higiene pessoal, a ideia de assepsia, tornaram as pessoas mais delicadas, mais sensíveis aos odores associados à doença e à morte”, corroborando o processo de afastamento da morte que ocorreu nesse período.11

Assim, com a perda desse caráter social, a morte medicalizada passa a proporcionar um desconforto majorado tanto para os familiares como “para os

9 NUNE, Everardo Duarte. Saúde coletiva: História de uma ideia e de um conceito. Saúde e Sociedade, v. 3, n. 2. 1994, p. 05-21.

10 COSTA, Diego Amaral da. Humanidade: Mitos, desejos, sonhos e esperanças. 1. Ed. Clube dos autores, 2013, p. 191.

11 ARIÈS, Philippe. O homem perante à morte. 2. Ed. Tradução de Ana Rabaça. Portugal: Publicações Europa-América, 2000. p. 24.

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médicos modernos que muitas vezes a consideram um fracasso” e que, de modo defensivo procuram pelos erros que a justifiquem.12

Fazendo um breve comparativo histórico, elucidador dessa mudança de pensamento sobre o morrer, Gonçalves explica que a ideia de boa morte que atualmente povoa o imaginário coletivo é aquela que ocorre subitamente durante o sono, pois se entende que assim não haveria a experimentação do sofrimento que o morrer nos remete. A intenção é que a morte, e tudo que com ela se relaciona – a enfermidade, a velhice, a decrepitude13 –, seja tão invisibilizada quanto possível, pois

tratam-se de realidades inconvenientes para uma “sociedade que realça a juventude, a riqueza, o sucesso”.14

Em contraposição a este pensamento, alerta que na “Idade Média rezava-se a Ladainha dos Santos – de uma morte repentina e imprevista, livrai-nos, Senhor” –, pois a compreensão social/espiritual à época indicava que era necessário ter tempo para se preparar para a morte.15

Entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a década de 1950 começa a haver a alteração desse processo onde passa-se a pensar “que o doente não necessita de ser advertido”, primeiro porque é melhor protegê-lo “do conhecimento de que o seu fim está próximo”, e segundo “porque ele já sabe, porém, pretende-se manter a ilusão”, então a família e os amigos dissimulam o próprio comportamento para que o moribundo não seja alertado. Contudo, este novo comportamento traz danos irreparáveis para a pessoa que passa pelo processo de morrer, pois é retirado dele “o controle da situação e o direito de revelar as suas últimas vontades”, pensamentos e sentimentos, além de não lhe ser possibilitado satisfazer a sua necessidade de informação sobre a sua situação. Assim desenvolve-se o fenômeno conhecido como paternalismo, no qual as decisões acerca do fim da vida do indivíduo passam a ser tomadas sem a sua consulta, havendo a transferência de todo esse poder e responsabilidade para as mãos dos familiares, “com a cumplicidade dos médicos”.16

12 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 10-11.

13 COSTA, Diego Amaral da. Humanidade: Mitos, desejos, sonhos e esperanças. 1. Ed. Clube dos autores, 2013. p. 191.

14 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. Op., cit; p. 173. 15 Ibdem. p. 10-11.

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2.2 OS REFLEXOS DA MUDANÇA DOS CRITÉRIOS DE CONSTATAÇÃO DA MORTE NA COMPREENSÃO SOCIAL DO MORRER

A Medicina, como referido anteriormente, teve mais avanços “na segunda metade do século XX do que tinha progredido em toda a história anterior da humanidade”17, fazendo com que surgisse ao seu derredor uma aura de

invencibilidade, criando a falsa sensação de que seria capaz de resolver todas as mazelas naturais do organismo humano. Assim, em que pese a importância incontestável que tiveram – o progresso dos medicamentos, das técnicas e dos dispositivos destinados a curar ou prolongar a vida – para a saúde das populações, começaram a surgir os problemas resultantes do seu uso inadequado, excessivo ou indesejado. Como em todos os processos de criação, este necessitava chegar a um ponto de equilíbrio, que é o que o que ainda se busca, dada a dinamicidade da vida.

Em que pesem os diferentes conceitos de morte estabelecidos pelas diferentes culturas, religiões e filosofias, que influenciam a forma de cada indivíduo entender e lidar com a morte, o que interessa ao mundo jurídico é o conceito médico-biológico da morte, pois será ele o norte no estabelecimento das consequências legais da morte. Contudo, a determinação da morte, enquanto atividade própria da Medicina, sempre encontrou dificuldades, tendo passado por algumas mudanças de critério para a sua determinação, buscando o seu refinamento e diminuição dos resultados falsamente positivos da morte.

Diariamente, no organismo humano nascem e morrem trilhões de células, num contínuo processo de renovação, havendo a variação da quantidade e da velocidade a depender da idade e condições físicas do indivíduo, chegando ao ponto em que diariamente começarão a morrer mais células do que a nascer, iniciando-se o processo de decadência da vida. Maria Elisa Villas-Bôas alerta que a morte de um indivíduo não poderá, portanto, ser precisamente localizada no tempo, pois trata-se de um processo que poderá ocorrer gradual ou subitamente, e, de uma forma ou de

17 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 35.

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outra, haverá expansão em cadeia desse acontecimento nos órgãos, tecidos e células.18

Essa reação em cadeia gradual da morte fica clara quando se constata na prática a capacidade que cada tecido tem de resistir à ausência de oxigênio, pois inúmeras são as células que mantêm as suas funções mesmo após o diagnóstico de morte, como é caso das unhas e do cabelo, que continuam crescendo depois de o coração parar, ou o caso da pele, da córnea, e de artérias que podem ser colhidas e usada em transplantes mesmo horas após a assistolia. Isso posto, complementa que, apesar de possível, a destruição simultânea de todas as células do corpo enquanto causa da morte é excepcional, tendo acontecido, por exemplo, nos casos de carbonização em explosões nuclear. 19

Gonçalves acrescenta que a humanidade sempre buscou meios de se resguardar que a pessoa que seria enterrada não estivesse viva, principalmente a partir de meados do século XVIII, quando se passou a ter consciência a respeito da morte aparente. Inicialmente evitava-se que isso acontecesse através do decurso do tempo nos “rituais religiosos e outros relacionados com a morte, como a higiene e exposição do corpo, deixar o rosto descoberto e o intervalo até a inumação”20 e, a

datar da segunda metade do século XIX, essa segurança passou a se dar através dos critérios médicos de determinação da morte, que se somaram ao critério temporal.

2.2.1 Critério cardiorrespiratório

Com o passar do tempo, o critério para confirmação da morte foi sendo alterado a partir do descobrimento de novas técnicas médicas. José Antonio Saraiva Ferraz estabelece que, até o fim do século XIX, considerava-se morte a partir da parada respiratória, mas que, com “a descoberta da circulação sanguínea e da auscultação, passou a basear-se também na parada cardíaca”21. O critério da 18 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial: Aspectos polêmicos da

disciplina jurídico-penal do final da vida. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 18

19 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 22

20 Idem. 21 Ibdem. p. 23.

(21)

parada cardiorrespiratória é ainda a forma de análise mais utilizada nos dias atuais pelos profissionais de saúde, e, para a sociedade leiga em geral, trata-se de uma constatação mais tangível aos sentidos, pois é possível colocar as mãos ou encostar os ouvidos na pessoa para ver se o coração ainda pulsa e se o ar mantém o seu contínuo ciclo de entrada e saída dos pulmões.

Vale destacar o art. 2°, do Código Civil Brasileiro de 200222, que define que a

pessoa natural adquire personalidade civil com o nascimento com vida, sendo a vida entendida doutrinariamente como a entrada natural de ar pelos pulmões. Fica claro portanto a importância da respiração para a conceituação médico-legal do que é e do que não é vida.

Contudo, na década de 1950, com o avanço das técnicas de ressuscitação, e a criação dos dispositivos de suporte de vida, tais quais os ventiladores mecânicos, concomitantemente ao surgimento das primeiras Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), passou a ser possível reverter a parada das funções cardíacas e respiratórias. Porém, muitos dos beneficiados por essa evolução tecnológica da Medicina, apesar de continuarem vivos sob o ponto de vista do critério cardiorrespiratório, já não mantinham nenhuma função cerebral, dadas as lesões irreversíveis no Sistema Nervoso Central (SNC) decorrentes da oxigenação inexistente ou insuficiente por determinado tempo.

Assim, o avanço tecnológico permitiu que esses pacientes ficassem indefinidamente ligados a aparelhos, que substituíam artificialmente a função de outros sistemas, sem nenhuma possibilidade de retorno à normalidade da função substituída. Dantas Filho alerta que “a ausência da ação integradora do SNC leva inexoravelmente à falência progressiva dos demais sistemas, independente da qualidade dos métodos de suporte artificial”23. Fica claro, portanto, que a

manutenção artificial da vida nesse contexto não trazia nenhum benefício ao paciente, sendo apenas um prolongamento da espera pela inevitável falência dos demais sistemas vitais que invariavelmente o levariam a óbito.

22 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em 9 jun. 2016.

23 DANTAS FILHO, Venâncio Pereira et al . Dos conceitos de morte aos critérios para o diagnóstico de morte encefálica. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 54, n. 4, p. 705-710, Dec. 1996.

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Eric Grossi Morato reforça que, em estudo realizado com “310 pacientes com diagnóstico de morte encefálica, que foram mantidos sob suporte intensivo mesmo após o diagnóstico, observou-se que 88% evoluíram para parada cardíaca em até 24 horas e 100% em até cinco dias”.24

2.2.2 Critério encefálico

É nesse contexto que inúmeros problemas entram em ebulição, podendo-se aqui destacar os danos psicológicos àqueles familiares e à equipe hospitalar que tratava do paciente que já estava morto, ainda que aparentemente vivo por meio de intervenções artificiais; os danos econômicos suportados pelas famílias, pelas seguradoras de saúde ou por toda “sociedade quando era o Estado que suportava o custo”; além das questões éticas e legais que passaram a ser levantadas.25

Além disso, faz-se jus evidenciar outros dois fatores que integravam esse contexto. Primeiramente destaca-se que com a escassez de recursos para a promoção de serviços de saúde para toda a população, passou a ser crucial a sistematização de para onde os recursos seriam direcionados, incluindo-se aí a “racionalização da ocupação de leitos hospitalares”.26

O segundo fator decorre dos grandes avanços nas técnicas de transplantação ocorridos à época, nas quais percebia-se que a identificação dos doadores de órgãos deveria ser feita rapidamente, pois o tempo era condição decisiva para que a cirurgia fosse bem-sucedida. Contudo havia ainda a necessidade do estabelecimento de critérios objetivos para que fosse possível resguardar o direito à vida do doador.27 Destaca-se aqui que a execução do primeiro transplante cardíaco,

ocorrido em 1967, ajudou a retirar a carga de importância que se dava ao coração

24 MORATO, Eric Grossi. Morte encefálica: conceitos essenciais, diagnóstico e atualização. Revista Médica de Minas Gerais. 2009, v. 19, n. 3, p. 230.

25 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 23

26 DANTAS FILHO, Venâncio Pereira et al . Dos conceitos de morte aos critérios para o diagnóstico de morte encefálica. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 54, n. 4, p. 705-710, Dec. 1996.DISTRITO FEDERAL. Justiça Federal do Distrito Federal. Sentença nº 2007.34.00.014809-3. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-resolucaocfm-180596.pdf> Acesso em 25 outubro de 2017

27 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial: Aspectos polêmicos da disciplina jurídico-penal do final da vida. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 22.

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como principal órgão, impulsionando a mudança do critério cardiorrespiratório pelo encefálico, pela comissão da Harvard Medical School, em 1968. 28

A reunião de todos estes fatores culminaram na alteração do paradigma médico de definição de morte até então utilizado, passando-se a entender que para se constatar a morte, não era necessário ter havido a morte de todo o corpo, com a falência de todos os sistemas individualmente considerados. Passa-se então da constatação sistêmica da morte para a morte encefálica (ME), entendida pela ausência de atividade no cérebro e no tronco cerebral, que conjuntamente são os responsáveis por manter em funcionamento as atividades primitivas de todos os sistemas. Destaca-se que não houve uma superação do modelo cardiorrespiratório anterior, e sim a sua complementação por este novo critério neurológico.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) se baseou nos critérios estabelecidos em 1995 pela American Academy of Neurology, para estabelecer as normas de determinação de morte encefálica contidas na Resolução nº 1.480/97 do CFM. Contudo, destaca-se aqui que houve recentíssima edição da Resolução n° 2.173/17 do CFM, em 15 de dezembro de 2017, que revogou a Resolução anterior e atualizou os critérios. Em quadro sistemático com as principais características o CFM definiu que devem ser constatados as seguintes características:

Coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal, apneia persistente. Deve apresentar lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e capaz de causar a morte encefálica, ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de morte encefálica. Temperatura corporal superior a 35º, saturação arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial sistólica maior ou igual a 100 mmHg para adultos. Deve-se ainda observar o paciente por no mínimo 6 horas para que seja iniciado o diagnóstico. A confirmação da morte encefálica dependerá de: a) dois exames clínicos, por médicos diferentes, especificamente capacitados para confirmar o coma não perceptivo e a ausência de função do tronco encefálico, com intervalo mínimo de 1hora entre as duas avaliações clínicas; b) um teste de apneia; c) um exame complementar que comprove a ausência de atividade encefálica. Este exame deve comprovar: ausência de perfusão sanguínea encefálica, ou ausência de atividade metabólica encefálica ou ausência de atividade elétrica encefálica.29

28 PESSOA, Laura Scalldaferri. Pensar o final e honrar a vida: direito a uma morte digna. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 31.

29 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução da morte encefálica é publicada no Diário Oficial. Dezembro de 2017. Disponível em <http://portal.cfm.org.br/index.php?

option=com_content&view=article&id=27333:2017-12-15-13-07-00&catid=3> Acesso em 31 de janeiro de 2018.

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Além disso, a partir de agora a análise deverá ser feita por médicos capacitados, assim considerados aqueles com pelo menos “um ano de experiência no atendimento de pacientes em coma e que tenham acompanhado ou realizado pelo menos dez determinações de ME ou curso de capacitação para determinação em ME”. Ressalta-se ainda que “um dos médicos especificamente capacitado deverá ser especialista em uma das seguintes especialidades: medicina intensiva, medicina intensiva pediátrica, neurologia, neurologia pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência”, mas que na falta de um de médico com estas especialidades, “o procedimento deverá ser concluído por outro médico especificamente capacitado”. Por motivos de segurança, mantém-se a regra que nenhum dos dois médicos que farão a avaliação clínica de morte encefálica poderá fazer parte da equipe de transplante.30

O conforto psicológico antes existente, derivado da possibilidade de percepção através dos sentidos que a pessoa querida havia naturalmente parado de respirar e seu coração de bater, deixa aqui de existir, havendo uma dificuldade significativa desses familiares e amigos em aceitar o desligamento das máquinas de suporte em caso de constatação de morte encefálica, pois os sentidos ainda conseguem constatar os batimentos cardíacos e a respiração, mesmo que isso seja inteiramente decorrente dos artifícios da tecnologia médica, tais quais o suporte ventilatório e os fármacos que aumentam a força de contração do coração para estimular que ele continue batendo. Assim, pessoas leigas acabam com o sentimento não de que a pessoa morreu, a morte natural ao seu tempo, e sim que a sua vida foi encurtada pela equipe médica, pois no fundo, sempre há a esperança que a pessoa se recupere. Esse aspecto é inclusive reconhecido na fundamentação da Resolução nº 1.826/07, do CFM, quando afirma que “a sociedade não está devidamente familiarizada com este tema, o que gera ansiedade, dúvidas e receios, mas que o mesmo deve ser enfrentado de modo compreensivo, humano e solidário”.31

30 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n° 2.173 de 2017. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2173> Acesso em 28 de janeiro de 2018

31 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.. Resolução nº 1.826 de 2007. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2007/1826> Acesso em 31 de janeiro de 2018

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Ademais, vale a pena destacar importante trecho dessa mesma resolução que veio com o objetivo de não deixar dúvida acerca da legalidade e do caráter ético da suspensão dos procedimentos de suportes terapêuticos quando da determinação de morte encefálica de indivíduo não-doador de órgãos. Veja-se:

do ponto de vista ético e legal, após seu diagnóstico é dever do médico retirar os procedimentos de suporte que mantinham artificialmente o funcionamento dos órgãos vitais utilizados até o momento de sua determinação. A suspensão desses recursos não é eutanásia nem qualquer espécie de delito contra a vida, haja vista tratar-se de paciente morto e não terminal.32

Contudo, em que pese a modificação do critério ter sido crucial em tantos aspectos, alguns casos continuam não solucionados por ele, como os casos de Estado Vegetativo Permanente (EVP).

2.2.3 Novos desafios: o critério neocortical

Gonçalves destaca que são considerados pacientes em EVP aqueles que tiveram lesões cerebrais e que estão inconscientes por tempo superior a um mês, mas que continuam respirando espontaneamente. “Estes doentes não têm as funções cerebrais superiores que controlam a consciência, a cognição e as emoções, mas mantêm funções do tronco cerebral que lhes permite manter funções corporais, entre as quais a respiração, e ciclos de sono-vigília”. Alerta ainda que, apesar da possibilidade de reversão desse quadro “ao fim de alguns meses, dependendo da causa e da idade do doente, a recuperação torna-se improvável”.33

Esses casos trazem a baila, novamente, os mesmos problemas que tinham que ser enfrentados antes da mudança do critério cardiorrespiratório para o critério de morte encefálica, quais sejam: os danos psicológicos causados à família e à equipe hospitalar que trata do paciente em EVP; os danos econômicos suportados pelas famílias, pelas seguradoras de saúde ou por toda sociedade quando o Estado

32 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.. Resolução nº 1.826 de 2007. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2007/1826> Acesso em 31 de janeiro de 2018

33 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 27

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suporta o custo; a necessidade de otimização dos recursos da saúde, que são escassos, para que seja possível prestar esse serviço essencial ao maior número de pessoas; a possibilidade de realização de transplantes com órgãos desse paciente, que ainda mantém as suas funções vitais, devido ao funcionamento do tronco cerebral; tudo isso culminando em inúmeros debates de ordem ética e de ordem legal acerca da possibilidade ou não de declarar morto um paciente perda das funções cerebrais superiores. Em razão disso, hoje já se é discutido um novo critério, no qual a constatação de morte de daria a partir da morte cerebral superior (neocortical).

Indo na mesma direção da comparação do momento de transição entre o critério puramente cardiorrespiratório para o que adere a morte encefálica, Dantas Filho traz ainda a problematização se o que deve ser levado em consideração é a "morte de todo o encéfalo", na perspectiva que todas as áreas do encéfalo precisam parar de funcionar para que seja declarada a morte, ou se deveria ser adotada a "morte do encéfalo como um todo". Esta última seria uma perspectiva sistêmica de que, se a área determinante para tornar o indivíduo aquilo que ele é, aqui entendida como o córtex, não mais funciona, de nada importaria o pleno funcionamento do tronco cerebral, responsável por manter os sistemas em funcionamento, pois, em que pese o reconhecimento da sua importância, quando individualmente considerada, é por ele considerada como responsável por atividades acessórias do cérebro.34 Gonçalves, igualmente, apresenta alguns argumentos que são utilizados

pelos defensores do conceito de morte cerebral superior:

(…) o conceito de pessoa implica a existência de consciência e a capacidade de tomar decisões e dar permissão e não apenas a capacidade de manter algumas funções orgânicas. Segundo este conceito os doentes em EVP estão mortos como pessoas, visto que perderam irreversivelmente a consciência e, portanto, não devem ser consideradas pessoas. Os defensores do conceito de morte cerebral superior objetam que no conceito de morte do tronco cerebral ou cerebral global o cérebro é considerado um órgão controlador e integrador das funções dos sistemas orgânicos, relegando para um

34 DANTAS FILHO, Venâncio Pereira et al . Dos conceitos de morte aos critérios para o diagnóstico de morte encefálica. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 54, n. 4, p. 705-710, Dec. 1996.DISTRITO FEDERAL. Justiça Federal do Distrito Federal. Sentença nº 2007.34.00.014809-3. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-resolucaocfm-180596.pdf> Acesso em 25 outubro de 2017

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lugar secundário, e não essencial, a sua função como responsável pela consciência.35

Em que pese os debates já existentes nesse campo em todo o mundo, ainda existe muita insegurança acerca dos critérios para “determinação da irreversibilidade da perda da função cerebral no EVP”, sendo grande a preocupação com as determinações falsamente positivas, notadamente com os casos de “recuperação tardia da consciência” registrados pela literatura médica. Ressalta-se que nestes casos excepcionais, malgrado a reversão do quadro, o paciente, em regra, retorna num “estado de grande incapacidade e dependência total”36.

Gonçalves alerta ainda para a problemática da intensidade que é levantada no conceito de morte cerebral superior, na qual é questionada quanta “consciência é necessária ter para se considerar que a pessoa está viva”, numa inferência aos “doentes com demências, os quais vão perdendo gradualmente a função cognitiva, muitas vezes ao longo de anos, até chegarem a uma altura em que perdem a consciência de si próprios”.37

Isso posto, se claro estava que a população não médica já encontra dificuldade na compreensão do atual critério de determinação da morte clínica, qual seja, a morte encefálica, longe está de compreender a atual discussão acerca do critério de determinação da morte cerebral superior. Assim, o caminho para uma possível alteração de critério, naturalmente, encontrará mais entraves de ordem emocional e social para a sua introdução legal no sistema posto, vez que tanto os parentes e amigos do indivíduo, quanto a sociedade em geral, incluindo aí as equipes de saúde, terão ao alcance dos sentidos a constatação que o paciente respira e mantém suas funções vitais espontaneamente, sendo muito mais complexa a compreensão de morte neste contexto.

Assim, diante destes novos quadros, com complexidades tão evidentes, e naqueloutros que já se encontram mais pacificados na ciência médica, mas ainda em tanta ebulição no coração da sociedade, não existe justificativa plausível para a manutenção da visão paternalista dominante. Impõe-se, portanto, a abertura do processo decisório aos pacientes, dando-lhes a possibilidade de traçar os caminhos

35 GONÇALVES, José António Saraiva Ferraz. A Boa Morte: Ética no fim da vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Bioética). Universidade do Porto, Porto. p. 28

36 Idem. p. 28 37 Ibdem. p. 29

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médicos da própria vida quando achar conveniente. É nesse contexto que resta patente a relevância das diretivas antecipadas de vontade.

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3 UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

As diretivas antecipadas de vontade tratam-se de uma categoria de instrumentos que, segundo o art. 1°, da Resolução 1995/15, do CFM, propõem-se a possibilitar a manifestação prévia e expressa dos pacientes “sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar livre e autonomamente sua vontade”38. É, assim, uma forma legal que

pessoas capazes têm de, desde logo, por meio de um registro escrito, antever uma situação de incapacidade e estabelecer parâmetros para que seus desejos médicos continuem sendo respeitados, num contínuo exercício da sua autonomia.39

Tradicionalmente as diretivas antecipadas de vontade dividem-se em dois institutos: o testamento vital (living will), no qual o indivíduo descreve instruções sobre os tratamentos médicos que aceita ou rejeita em certas circunstâncias; e o mandato duradouro (durable power of attorney for health care), onde o paciente faz uma espécie de procuração para fins de saúde, tratando-se, portanto, de um documento legal onde é indicada uma ou mais pessoas para tomar as decisões em nome do doente quando este estiver incapaz de o fazer.

Acrescenta-se ainda que as DAV servem, igualmente, como ferramenta de proteção dos profissionais de saúde, notadamente do médico, em caso de eventual tentativa de “responsabilização ao fazer ou não fazer uso dos tratamentos e cuidados dispensados pela escolha prévia do paciente ainda capaz”.40

Ana Carolina Brochado Teixeira e Luciana Dadalto indicam que as DAV tratam-se de gênero documental que oportuniza a realização da vontade futura de alguém que gostaria de assegurar que morrerá com dignidade, e teme não estar em

38 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.. Resolução nº 1995 de 2012. Disponível em

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf> 28 de outubro de 2017. 39 FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. In: Revista eletrônica de

direito civil. A.2. n.4. 2013. Disponível em:

<http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf> Acesso em 16 de novembro de 2017

40 BOMTEMPO, Tiago Vieira. Diretivas antecipadas: instrumento que assegura a vontade de morrer dignamente. Revista de Bioética y Derecho. n. 26, 2012. Disponível em

<http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872012000300004&lng=en&nrm=iso> Acesso em 26 de dezembro de 2017.

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condições de decidir quando chegar a hora.41 Gabriel Rocha Furtado, no mesmo

sentido, salienta que “permitir que o indivíduo escolha como viver os seus últimos dias é um tributo à sua vida pretérita e um ato ligado – ainda que em um momento final – ao direito ao corpo e ao livre desenvolvimento da personalidade a todos assegurados”42

3.1 ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

As DAV (advance directives) surgiram em 1967, nos Estados Unidos da América (EUA), quando foi proposta pela Sociedade Americana para Eutanásia. Uma de suas espécies, o testamento vital (living will), teve seu primeiro modelo desenvolvido em 1969 por Luis Kutner. À época, era defendido que pacientes em quadros clínicos irreversíveis ou estado vegetativo persistente poderiam documentar a sua recusa a tratamentos extraordinários, fúteis.43 Contudo, destaca-se que a

generalidade com que essas diretivas eram produzidas gerou grande parte das críticas que, ainda hoje, recaem sobre as DAV.

Com os avanços a serviço da ciência médica, cada vez mais era possível prolongar a vida dos pacientes incuráveis, fazendo com que mais situações se adequassem a esse modelo proposto, o que impulsionou ainda mais os debates acerca das DAV. Foi então que, em 1976, o living will foi reconhecido pela primeira vez enquanto documento legal, com a promulgação, pelo Estado da Califórnia, do

Natural Death Act. Essa lei que reconheceu às pessoas capazes o direito de

determinar antecipadamente sobre terapias de suporte vital, na hipótese de se encontrar em condição de final de vida.

Ato contínuo, em 1991, após um bom amadurecimento dessa temática, o Congresso estadunidense positivou uma lei federal, a Patient Self-Determination

Act, que reconheceu o direito à autodeterminação do paciente, permitindo que o 41 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Terminalidade e autonomia: uma

abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena (coord). Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 58.

42 FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. In: Revista eletrônica de direito civil. A.2. n.4. 2013. Disponível em:

<http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf> Acesso em 16 de novembro de 2017

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paciente informe quais tratamentos deseja ou não ser submetido em caso de incapacidade superveniente.44 Como o tema das diretivas antecipadas de vontade já

vinha sendo maturado no país a mais de 20 anos, ainda na década de 1990 “todos os estados norte-americanos haviam reconhecido expressamente a legalidade destes documentos”, quais sejam, o living will e durable power of attorney for health

care (DPAHC).45

Além da importância de ter sido a primeira lei no mundo, vale ressaltar que o PSDA impôs que todos os hospitais e centros de saúde informassem, desde o momento da admissão, aos pacientes sobre a possibilidade de escolha quanto aos tratamentos e procedimentos que desejavam ou não se submeter na eventualidade de se encontrarem em situação de terminalidade de vida. Dessa forma, a lei impôs a abertura do canal que possibilitaria a manifestação do paciente, reafirmando a sua autonomia.46

Aos poucos, outros países foram adotando a mesma postura dos EUA e começaram a legislar sobre o tema, tais quais Espanha, Alemanha, Argentina, Portugal, Austrália, Bélgica, Itália, Holanda, Uruguai, dentre outros. Contudo, até o presente momento o Brasil ainda não possui legislação sobre o tema.47

3.2 O TRATAMENTO JURÍDICO DISPENSADO PELO BRASIL

No Brasil, as DAV foram regulamentadas pela primeira vez em 2012, por meio da Resolução nº 1995 do CFM. Esta reconheceu o direito à autonomia do paciente,

44 BOMTEMPO, Tiago Vieira. Diretivas antecipadas: instrumento que assegura a vontade de morrer dignamente. Revista de Bioética y Derecho. n. 26, 2012. Disponível em

<http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872012000300004&lng=en&nrm=iso> Acesso em 26 de dezembro de 2017.

45 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista bioética do Conselho Federal de Medicina. V. 21, n. 3, 2013, p.463-476. Disponível em

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855> Acesso em 05 de janeiro de 2018. p. 464

46 MÖLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia: o direito à morte de pacientes terminais e os princípios da dignidade e autonomia da vontade. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 102.

47 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev. Bioética y Derecho, Barcelona, n. 28, Maio 2013. Disponível em <http://scielo.isciii.es/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S188658872013000200006&lng=en&nrm=iso> Acesso em 24 de novembro de 2017. p. 65

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confirmando que este poderia se manifestar previamente ou indicar representante para decidir acerca dos tratamentos médicos que lhe seriam dispensados em caso de incapacidade superveniente. A resolução afirmou ainda que respeitar essas diretivas tratava-se de obrigação do médico.

Luciana Dadalto, em crítica sobre o tema, indica que muitos autores, no Brasil e no mundo, acabam por incluir, equivocadamente, todos as declarações acerca de tratamentos médicos dentro das DAV. Salienta que o equívoco se dá por não se reconhecer a herança histórica da criação deste instituto nos EUA. Afirma ainda que o fundamento estava, e ainda está, plenamente vinculado às decisões médicas sobre o fim da vida de pacientes com doenças terminais, em EVP, ou com demências avançadas, alertando, contudo, que poucos são os locais que preveem o uso das diretivas nessas últimas.48 Explica, ainda, que:

Doença terminal é aquela em que a patologia do paciente está em estágio irreversível e incurável e que a morte é esperada nos próximos seis meses. O EVP é quando o paciente está em situação clínica de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral por mais de três meses após anóxia cerebral e doze meses na sequência de traumatismo craniano. Por fim, a demência avançada é o quadro clínico em que o paciente tem função motora alterada, perdeu a autoconsciência e a reação à dor e o prognóstico de recuperação neurológica é irreversível.49

Embora este trabalho se debruce notadamente sobre as DAV no que toca aos pacientes terminais, com demência avançada ou em EVP, exatamente por serem, as situações limítrofes entre a vida e a morte, mais sensíveis à aceitação da expressão de autonomia destes pacientes, ousa-se discordar do posicionamento de Dadalto, uma das principais autoras sobre o tema na atualidade. Primeiramente, a despeito de reconhecer a relevância do contexto histórico, o tratamento jurídico dispensado por outros países nesta temática não vincula a abordagem que o Brasil venha a dar. Vale ressaltar que distintas são as realidades de cada Estado, sendo portanto plenamente plausível o estabelecimento de modelo distinto que melhor se adeque,

48 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Revista bioética do Conselho Federal de Medicina. V. 21, n. 3, 2013, p.463-476. Disponível em

<http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/855> Acesso em 05 de janeiro de 2018. p. 466

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não se vislumbrado, portanto, nenhuma impropriedade na reunião, em um único instituto, de todas as declarações acerca de tratamentos médicos. Além disso, analisando a Resolução nº 1995 do CFM, que atualmente é a que regulamenta a temática no Brasil, verifica-se que o objeto não foi restringido às situações de terminalidade, de EVP ou de demência avançada, em que pese terem sido as principais razões que impulsionaram os debates e levaram à sua confecção, exatamente por sua maior complexidade.

Atualmente, no Brasil, o entendimento doutrinário com o qual se concorda, é que as diretivas devem elencar em sua elaboração, além das (I) decisões sobre a recusa ou a aceitação de cuidados e tratamentos médicos, indicando as patologias/situações em que pretende ver o seu direito respeitado; (II) os valores e desejos do indivíduo no que toca à sua vida, como forma de deixar clara a sua intenção ao elaborar o documento; (III) a declaração de “que foi esclarecido sobre a possibilidade de revogação do documento a qualquer momento, sem a necessidade de justificativa”. Além dessas, alguns autores indicam a possibilidade de previsão de outras disposições que sejam do interesse do indivíduo, podendo, por exemplo, indicar onde “deseja passar seus últimos dias, se deseja ser enterrado ou cremado”, mas ainda trata-se de ponto controverso, vez que outros entendem que há a desnaturalização do instituto com a inclusão dessas cláusulas.50

Concorda-se com Matheus Massaro e Patrícia Borba, quando pugnam pela inclusão do “aconselhamento médico e jurídico, como pressupostos fundamentais para a validade do documento”. Notável é a importância do médico para “esclarecer ao declarante no que consiste cada procedimento e tratamento disponível, os benefícios e malefícios de sua utilização, e as consequências da decisão”, sendo ainda possível, caso este concorde, anotar o nome e o CRM do médico, a fim de que este seja procurado caso hajam dúvidas das informações prestadas pelo paciente. Igualmente importante é o auxílio de um advogado para orientar o indivíduo na elaboração formal do documento, evitando que este incorra em vícios que o invalidaria, tais quais a disposição sobre assuntos que são ilícitos no direito

50 MABTUM, MM., and MARCHETTO, PB. Diretivas antecipadas de vontade como dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 89-131. ISBN 978-85-7983-660-2. Disponível em :

<http://books.scielo.org/id/qdy26/pdf/mabtum-9788579836602-05.pdf> Acesso em 19 de janeiro de 2017. p.113

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brasileiro, além de esclarecer sobre as consequências jurídicas da decisão e informá-lo acerca da possibilidade de revogação do documento a qualquer tempo. Dúvida não há que apenas um paciente devidamente esclarecido seria capaz de exercer efetivamente a sua autonomia.51

Trata-se de ponto comum entre os autores brasileiros que as DAV devem possuir efeito erga omnes, “vinculando médicos, parentes do paciente, e eventual procurador de saúde vinculado às suas disposições”52, evitando assim a

judicialização do processo de morrer.

No que toca ao prazo de validade não existe consenso na doutrina se as DAV deveriam ser vitalícias ou se deveriam perder a sua validade após alguns anos. Os países que adotaram as DAV com prazo de validade assim o fizeram por entender que o declarante poderia esquecer de ter elaborado o documento, além de levarem em consideração que as diretivas se tornariam obsoletas, dada a evolução da ciência médica; ao passo que as que adotaram a modalidade vitalícia assim optaram por se tratar de documento que pode ser revogado a qualquer tempo, e que deverá ser interpretado pelo médico segundo o atual avanço da Medicina.

Além disso, em que pese ser possível em muitos países, no Brasil não é cabível a imposição da vontade do declarante, por meio das DAV, no que toca à doação de órgãos, uma vez que o art. 4°, da lei 9.434/97, alterada pela lei 10.211/0153, estabelece que esta decisão cabe aos familiares. Assim, alguns autores

entendem que não seria possível incluir como item do testamento vital, por ir de encontro ao fundamento das DAV, qual seja, a obrigatoriedade do respeito à vontade, à autonomia, do paciente; ao passo que outros reconhecem a possibilidade de inclusão do desejo do paciente, desde que esteja expresso que trata-se de sugestão, por ser a sua vontade, mas que entender que a decisão será exclusivamente dos familiares nos termos da lei citada.

51 MABTUM, MM., and MARCHETTO, PB. Diretivas antecipadas de vontade como dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 89-131. ISBN 978-85-7983-660-2. Disponível em :

<http://books.scielo.org/id/qdy26/pdf/mabtum-9788579836602-05.pdf> Acesso em 19 de janeiro de 2017. p.114

52 DADALTO, Luciana. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Revista Síntese Direito de Família. Ano XV, 2013.

53 Art. 4° A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

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Destaca-se ainda que atualmente no Brasil as DAV têm como limites, para a disposição acerca da recusa ou aceitação de cuidados e tratamentos médicos, a distanásia e a ortotanásia, o que não significa ser esta uma regra para todos os países que já legislaram sobre o tema. Em verdade, os limites destes instrumentos serão fixados de acordo com a legislação local. Por exemplo, em Estados onde a legislação autoriza práticas de eutanásia ou de suicídio assistido, estas poderiam tranquilamente estar previstas nas diretivas, ante a sua inofensividade aos princípios e ao ordenamento jurídico à qual deve respeito.

Em que pese as primeiras discussões acerca das DAV já terem completado 50 anos, fica claro que o tema é bastante recente, quando considerada a sua complexidade. No Brasil, por exemplo, a despeito de ser claro para quem estuda sobre o tema, que as DAV tratam-se de escolhas no limite dos tratamentos distanásticos e ortotanásticos, a população em geral, e até mesmo os profissionais de saúde continuam fazendo diversas confusões entre estas, a eutanásia e o suicídio assistido. Essa confusão é compreensível dada a pouca familiaridade com essas terminologias e por conta da linha tênue que por vezes as difere na prática. Assim, indispensável se faz a diferenciação dessas designações que comumente que envolvem o processo de terminação da vida, para que reste claro quais medidas efetivamente estão dentro da possibilidade de escolha autônoma do indivíduo, afastando de uma vez a falta de conhecimento que leva as pessoas a se colocarem contra a efetivação desse instituto tão importante.

3.3 A NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DAS DESIGNAÇÕES QUE COMUMENTE ENVOLVEM O PROCESSO DE TERMINAÇÃO DA VIDA:

Com o processo de desenvolvimento das técnicas e da tecnologia dos equipamentos à disposição dos médicos, assim como o avanço da indústria farmacêutica, foi possível a manutenção da vida dos indivíduos por mais tempo, contudo, concomitantemente, surgiram os “problemas sobre a oportunidade e a adequação da introdução desses recursos, sua manutenção e sua suspensão”, passando-se a discutir sobre “o tipo e o grau de enfermidade que os admitem, sobre a necessidade de anuência do paciente ao tratamento, sobre a motivação da

Referências

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