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DIVERGÊNCIAS ACERCA DA DIALÉTICA

DIALÉTICA, IDEOLOGIA E DISPUTA HEGEMÔNICA

1.3 DIVERGÊNCIAS ACERCA DA DIALÉTICA

Anteriormente situamos o elemento da negação de Marx em relação à Hegel na centralidade da questão do trabalho social. Em seguida, nos posicionaremos francamente a favor do reconhecimento do legado hegeliano como essencial ao funcionamento do método teórico empreendido por Marx. O que aparentemente seria uma contradição é, em si mesma, a expressão do próprio movimento dialético que o método marxista pretende utilizar.

A crítica filosófica – a qual objetiva Marx em sua leitura de Hegel – não deve denunciar uma acomodação moral ou política, como faziam os neo-hegelianos criticados por Marx, mas sim revelar como a

[...] possibilidade dessas aparentes acomodações tem sua raiz mais profunda na insuficiência ou na insuficiente formulação de seu próprio princípio... [pois] não se suspeita da consciência particular do filósofo, mas sua forma de consciência essencial é construída e elevada a uma determinada forma e significação, com o que ela é, ao mesmo tempo, ultrapassada (MARX, 2005, p. 12).

Assim, ao contrário de objetivar a supressão do pensamento que é seu objeto e que se deseja criticar, se faz necessária a crítica filosófica para que os seus elementos já repudiados possam ser superados, filosoficamente e historicamente. O processo de superação, que inclui o momento da negação, assim como o momento da conservação, caracteriza a superação dialética. No caso em questão, a relação teórica entre Marx e Hegel, o elemento que permite caracterizar a superação, aufhebung, é o próprio método dialético.

A questão do método começou a suscitar diferenças e polêmicas desde o final do século XIX, gerando repercussões importantes ao longo do tempo e que devem ser apontadas brevemente aqui, dadas as sua interferências em nossa trajetória. Entre os

vários nomes de peso que se dedicaram à questão entre os clássicos do marxismo, tais como Labriola, Mehring, Kautsky e Plekhanov, faremos referência sucintamente à crítica de Lukács è Engels.

Musse nos relata a iniciativa de Engels, em sua obra “O Anti-Duhring”, em enfrentar uma das lacunas da obra marxiana: uma exposição nítida de seu método filosófico. Independentemente de ter conseguido ou não, ou de ter acertado ou errado, o fato é que essa obra foi tomada, como resumo autorizado do método de Marx pela posteridade, e mesmo após a sua crítica ter ganhado certa generalização, continuou sendo utilizada, tanto nos processos de formação política da militância de esquerda nos anos posteriores, quanto pelos detratores explícitos da tradição de pensamento marxista, como “prova irrefutável do seu positivismo”7.

Engels, assim como boa parte da intelectualidade do período final do século XIX, compartilhava de certa admiração e fascínio pelo avassalador movimento de descobertas nos campos das ciências naturais geradoras de avanços tecnológicos com impactos sociais concretos, tais como vacinas, telégrafo, telefone, produção de energia elétrica, combate a uma série de doenças e a redução da mortalidade infantil, tendo como resultado o aumento das taxas de crescimento demográfico, entre outras alterações verificáveis na vida cotidiana da época.

Para ele, o caminho do avanço tecnológico das ciências naturais e exatas, dada a sua intensidade e velocidade aproximaria esses campos do saber da dialética materialista, em contraposição com um método metafísico especulativo que, por ser:

Unilateral e abstrato [...] enreda-se em contradições insolúveis: atento a objetos determinados, não concebe a gênese e a caducidade; concentrado na estabilidade das condições, não percebe a dinâmica, ‘obcecado pelas árvores, não consegue enxergar o bosque (MUSSE, 2005, p. 373).

A dialética, por sua vez, como seu oposto simétrico:

Investiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere em ‘uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, em que nada permanece como era nem como existia’. Nela, os pólos da antítese, apesar de todo antagonismo, ‘se completam e se articulam reciprocamente’. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, se diluem na ideia de uma trama universal de ações recíprocas, na qual as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que antes era causa toma, logo depois, o papel de efeito e vice- versa (MUSSE, 2005, p. 373).

Na formulação de Engels, a dialética marxista frente ao seu oponente especulativo- metafísico, além de passar a considerar a natureza terreno próprio ao seu campo de análise, passa a se configurar como um método experimental dotado de saber científico.

O novo materialismo, na medida em que se qualifica a si próprio como ciência, não se propõe a ultrapassar apenas o pensamento de Hegel. É a própria filosofia, em sua totalidade, que se encontra sujeita à condenação, explicitada na famosa frase: “tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história” (MUSSE, 2005, p. 376).

A ênfase exclusiva na anterioridade da condição material em relação as formas de consciência sobre o mundo, terminou por levar ao erro mecanicista da ‘impossibilidade’ da ação das consciências dos sujeitos históricos sobre a realidade concreta. As formas de consciência seriam determinadas, sem nenhuma mediação, pelas suas condições dadas ao nível da infra-estrutura da sociedade. Equívoco comum entre as interpretações do marxismo enquanto uma ciência específica e mecanicista (LUKÁCS, 1974). É neste processo que surge o socialismo enquanto discurso científico, com as suas leis da dialética e as suas certezas para o desenvolvimento histórico.

Além das passagens já citadas anteriormente do pensamento de Lukács, devemos aprofundar algumas de suas críticas, uma vez que o próprio autor reconhecia o impacto decisivo das formulações de Engels para as posteriores confusões geradas no debate metodológico.

Os mal-entendidos que a maneira engelsiana de expor a dialética suscitou vêm essencialmente de que Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – estendeu o método dialético ao conhecimento da natureza, ao passo que as determinações decisivas da dialética; ação recíproca do sujeito e do objeto, unidade da teoria e da praxis, modificação histórica do substrato das categorias como fundamento de sua modificação no pensamento, etc., não se encontram no conhecimento da natureza (LUKÁCS, 1974, p. 19).

Para este autor faltou ao parceiro de Marx a referência que diferencia o método da perspectiva puramente contemplativa que é seu caráter prático, tendo a transformação da realidade como seu problema central.

[...] ao aspecto mais essencial desta ação recíproca, a relação dialética do sujeito e do objeto no processo da história, não chega a ser mencionado, e muito menos colocado (como deveria) no âmago das considerações metodológicas. Ora, privado desta determinação, o método dialético (apesar, é certo, de manter, de forma puramente aparente, a ‘fluidez’ dos

conceitos) deixa de ser método revolucionário (LUKÁCS, 1974, p. 17) (grifos do autor).

Esta ausência torna-se possível na reflexão engelsiana, segundo a crítica de Lukács, pelo foco privilegiado na mudança contínua em detrimento de sua objetividade historicamente determinada, o que termina por favorecer uma ideia de progressão linear de eventos e o esvaziamento da totalidade histórica como perspectiva para a compreensão das suas inter-relações. A dialética engelsiana:

[...] se apresenta como insuficiente, uma vez que não vai além da simples constatação de mutabilidade dos fatos (que pode inclusive se dar dentro de uma mesma ordem social, desde que considerada temporalmente), ou de sua inclusão em um processo contínuo e ininterrupto (LUKÁCS, 1974, 383).

Desta forma o último Engels foi reapropriado por Bernstein e outros teóricos da segunda internacional, em defesa de interpretações nas quais a contradição poderá ser abandonada, em prol da evolução pacífica do capitalismo para o socialismo8. Estas leituras basicamente lineares do processo histórico serão consolidadas através dos programas políticos de reformas, defendidos pelas agremiações da social-democracia nos países centrais do capitalismo após o estouro da primeira guerra mundial.

Essas interpretações serão possíveis porque a característica central do caráter revolucionário da dialética não é, isoladamente, o foco no movimento, e sim o ponto de vista da totalidade em movimento. Ao ser excluída a totalidade, o movimento dialético pode ser facilmente traduzido, como o desenrolar dos acontecimentos, como o avanço progressivo das conquistas da classe, ou, no caso dos países periféricos, na busca pelo desenvolvimento.

Marx operou a transmutação da dialética hegeliana em ‘álgebra da revolução’ não como uma simples inversão epistemológica do lugar de causa e efeito, do tipo ‘sai o espírito, entra a matéria’, mas sim pela contextualização do método como momento do mundo concreto e da relação histórico-dialética entre sujeito e objeto. Por isso a reivindicação de que

[...] a compreensão do caráter histórico de um dado factual qualquer esteja vinculada à apreensão dos condicionamentos que o configura como momento determinado de uma totalidade sócio-histórica (LUKÁCS, 1974, 383).

8 Como pode ser visto com mais detalhes na exemplar crítica filosófica de Mészáros ao pensamento de

Lukács demonstra que, ao recusar o abandono da perspectiva da totalidade, nos recusamos também a pensar a sociedade a partir do ponto de vista do indivíduo, tal como este é constituído através do desenvolvimento das relações sociais próprias do sistema de produção capitalista de mercadorias9. Isto pois:

[...] o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a ‘fatos desconexos ou leis parciais abstratas10.

Pensamos e problematizamos a sociedade capitalista como uma construção histórica de relações conflituosas entre as classes sociais, submetidas por sua vez às formas assumidas historicamente pela reprodução do capital, na qual os indivíduos estão inseridos. Consequentemente isto implica na afirmação do reconhecimento de que as classes sociais, no mesmo processo em que constroem as relações sociais peculiares ao capitalismo, são constituídas por estas mesmas relações sociais de produção e reprodução da vida em seu interior.

Portanto, pensar e interpretar dialeticamente segundo essa perspectiva à qual esposamos, significa colocar a ênfase na compreensão da indissociabilidade fundamental entre sujeito e objeto no interior da totalidade social e histórica.

Ao compreendermos os sujeitos históricos11 inseridos no mundo concreto como sujeitos e objetos da construção das relações materiais de existência, o passo seguinte é compreendermos que as suas consciências a respeito desse mundo concreto estão inseridas neste mundo. Assim, as formas de conhecimento desenvolvidas pelos sujeitos históricos não se realizam fora do mundo concreto, para depois retornarem a ele. Estão inseridas no movimento da totalidade social e são, ao mesmo tempo, momentos particulares que constituem essa mesma totalidade.

As relações de produção, que restringem e deformam as potencialidades humanas, determinam inevitavelmente a

9 Para Lukács esse é o elemento mais decisivo no processo de transição de Hegel para Marx. 10 LUKÁCS apud MUSSE, 1974.

11 Não compreendemos o sentido da expressão ‘sujeito histórico’ como um ator submisso a um script

determinado por outros agentes ou processos, portanto heterônomo e totalmente determinado de fora. Nem contudo, como um agente totalmente consciente, coerente e portador de uma plataforma inerente a sua constituição social. Compreendemos que a construção social e política do sujeito histórico se dá no processo de luta política e social concreta, inclusive com a possibilidades múltiplas combinações identitárias e programáticas em sua visão de conjunto. Por exemplo, o proletariado. Apesar de seu papel na produção capitalista, não está dado a priori o desenvolvimento de uma determinada consciência revolucionária anticapitalista no seu interior. Nem está dado que a sua consciência ‘natural’ é a adaptação à ordem capitalista. A consciência de classe no sentido radicalmente autônomo, portanto revolucionária, pode ser construída, pode ser bloqueada ou pode ser redirecionada a outros programas e plataformas. O fascismo, para Lukács, é o grande exemplo desta última possibilidade.

consciência do homem, precisamente porque a sociedade não é um sujeito livre e consciente. Enquanto o homem for incapaz de dominar estas relações, e de usá-las para a satisfação das necessidades e desejos do todo, elas tomarão a forma de uma entidade objetiva, independente. A consciência, presa e dominada por essas relações, torna-se, necessariamente, ideológica (MARCUSE, 1988, p. 291).

Enfim, compreendemos que essa breve síntese do nosso ponto de vista teórico metodológico e ao qual nos afiliamos na tradição marxista, se justifica dado que o nosso objeto de pesquisa (os sentidos do socialismo no discurso do presidente Lula) corresponde ao nível das formas de consciência do real. Desta forma, ao nos posicionarmos entre aqueles que pretendem compreender os sujeitos históricos e suas formas de consciência do mundo enquanto momentos de sua realização efetiva, criamos as condições para nos posicionar frente a outro debate extenso e complexo no interior desta tradição: a questão da Ideologia.