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O PROJETO SOCIALISTA E O TRANSFORMISMO

DIALÉTICA, IDEOLOGIA E DISPUTA HEGEMÔNICA

1.9 O PROJETO SOCIALISTA E O TRANSFORMISMO

Podemos tratar agora de um conceito também fundamental na obra de Gramsci, o transformismo. Alfio Mastro Paolo (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1995, p. 1259) identifica a origem do termo transformismo com o discurso de Agostinho Depretis de 1876, após a substituição da direita histórica pela esquerda na liderança da Itália que viria governar o seu país após a unificação. Seu argumento era carregado de

positividade na medida em que apontava uma unificação com as forças liberais geradora de condições para enfrentar os problemas que se abriam na nova situação política italiana. Rapidamente, o termo transformismo se reveste de negatividade na medida em que a fecunda transformação passa a indicar

[...] um novo tipo de prática parlamentar, entre a maioria e a oposição, na corrupção elevada à condição de recurso político fundamental, na frequente passagem de homens políticos de um setor parlamentar para outro ou de partido para outro. Mais genericamente, no transformismo será identificado o sintoma de um Estado patológico de todo o sistema parlamentar, a causa de sua ineficiência e ineficácia como centro nevrálgico do sistema político, da sua incapacidade em estabelecer alinhamentos definidos e compactos, maiorias estáveis e oposições responsáveis. No futuro, com a ampliação do sufrágio e a afirmação dos grandes partidos de massa, o mesmo termo será adotado para indicar os complexos jogos de equilíbrio, as mudanças menos previsíveis de opinião e as coalizões aparentemente menos coerentes que ainda hoje, especialmente com a tendência imposta aos partidos pelas regras da competição eleitoral, e para confundir a própria especificidade e para transformar-se em partidos ‘acolhe-tudo’ (Kirchheimer), nos caem frequentemente debaixo dos olhos (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1995, p. 1259). Essa visão do transformismo como fenômeno restrito à esfera dos comportamentos políticos parlamentares em suas dinâmicas eleitorais, estão presentes na base dos fenômenos aos quais Gramsci se refere quando elabora e constrói o seu sentido particular de transformismo. No entanto, como veremos adiante, para esse autor o transformismo é um fenômeno político e social muito mais complexo e abrangente do que meramente restrito a dinâmica do sistema político partidário stricto sensu.

Destarte a sua utilização em um contexto político e histórico particular, o transformismo enquanto conceito teórico permanece válido, a partir da sua compreensão mais ampla como um mecanismo de integração hegemônica ao bloco de poder das classes dominantes, dos setores sociais identificados inicialmente como portadores de visões de mundo e plataformas políticas contra-hegemônicas, ou tradicionais.

Sua absorção gradual pelo campo ideológico e político das classes possuidoras, independentemente dos mecanismos utilizados para esse fim, em geral passam pela abrogação das antigas crenças e a adesão às teses anteriormente criticadas. O aspecto de sua enunciação discursiva, em geral, é um dos elementos pelos quais este processo se caracteriza, uma vez que não há como se realizar, sem a rejeição explícita, ou implícita, dos valores anteriormente defendidos.

Muito embora causem alguma estranheza, estupor ou indignação este processo em geral leva à crise e desorganização política e teórica do campo contra-hegemônico, particularidade denominada por Gramsci de decapitação intelectual política, em geral redundando em graves consequência s para a organização política autônoma dos grupos antagonistas ao status quo, por um período frequentemente muito longo.

O transformismo de um grupo político não ocorre em termos abstratos, é uma adaptação ao modo de reprodução sócio-metabólica do capital predominante no seu contexto histórico específico, por isso ele traz as características centrais da fase do desenvolvimento econômico e social da sociedade na qual este grupo está inserido.

[...] o transformismo é um dos aspectos da dimensão política da relação entre os ‘grupos sociais’ no capitalismo, um dos mecanismos ordinários da hegemonia burguesa. [...] absorção gradual, mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliavelmente inimigos29.

Os partidos da 2.ª Internacional que aderiram à 1.ª Guerra Mundial tornaram-se, no seu decorrer, segundo formulação de Lênin, nacional-chauvinistas, por abandonarem o internacionalismo proletário e a defesa da autodeterminação dos povos. Característica que continuará durante o processo de descolonização posterior à 2.ª Guerra Mundial, gerando contradições entre esses partidos e movimentos de libertação nacional. Em outras palavras, o transformismo nos países centrais, no período histórico do predomínio do capitalismo financeiro, cuja expansão passava pelo controle imperialista dos mercados periféricos (LÊNIN, 1986), contribui decisivamente para que amplos segmentos das classes trabalhadoras abandonassem ou silenciassem frente à luta anti- imperialista.

Na periferia do capitalismo, seria ilusório considerar que a principal característica do processo de adaptação dos partidos da social-democracia dos países centrais se repetisse mecanicamente. Pela condição estruturalmente diferenciada dessas sociedades, o transformismo dos partidos operários democráticos e socialistas da periferia, tenderá a significar a adesão a programas de unidade nacional sob a lógica de manutenção da condição periférica de subserviência aos países centrais do capitalismo.

Apesar da existência de características similares entre os processos de adesão da social democracia no centro do capitalismo e na sua periferia, a busca pela construção

de paralelismos mecânicos, ou vaticínio absolutamente irreversíveis tende a ser inócua. Forçosamente haverão traços distintos entre elas. No entanto podemos fazer uma referência a uma hegemonia da plataforma social democrata e reformista em partidos de origem socialista ou ainda formalmente identificados com o socialismo, mas que progressivamente trilharam caminhos de afastamento e negação da ideia de ruptura com a ordem do capital e a construção de uma nova sociedade.

Nestes termos, a social democracia na periferia, sob a égide do neoliberalismo, amadurece e consolida seu processo de transformismo e adere ao bloco de poder, não tendo como fugir à articulação concretamente construída entre opções econômicas e opções políticas deste modelo. Logo, o transformismo da social democracia periférica é incisivamente marcado pelo modelo de acumulação hegemônico no período histórico no qual se dá seu amadurecimento, mesmo que seu discurso e sua identificação formal se recusem a admitir.

Na periferia, como as condições concretas da reprodução do capital não favorecem à universalização de direitos e à constituição de sociedades de bem-estar, o trajeto do transformismo que leva das pretensões reformistas clássicas às realizações do Consenso de Washington é, em si mesmo, o trajeto da impossibilidade política da realização do seu programa original30. Ou bem a social democracia adere à macroeconomia hoje hegemônica para consolidar seu processo de transformismo e adesão ao bloco histórico das classes dominantes, ou bem continua lutando por seu programa reformista original e não realiza sua inclusão neste “banquete”.

No entanto, independentemente das latitudes e dos termos da adesão ao bloco social dominante de cada agremiação política específica que um dia orientou-se pela macro- estratégia do socialismo radical, e depois se transformou em defensora da macro- estratégia gradualista ou social-democrata31, este processo em geral é visto como o desenvolvimento natural das coisas, o amadurecimento das pessoas, ou a comprovação das qualidades inerentes do modo de produção capitalista.

30 Seguindo essa linha de raciocínio influenciada por Florestan Fernandes, podemos afirmar que só uma

mudança estrutural na condição periférica ou o patrocínio direto por razões geopolíticas pelos países centrais do capitalismo, pode reabrir uma janela de oportunidade para um programa reformista clássico, como por exemplo, a Coréia do Sul. Mas esse convite só acontece em momentos especiais de grande convulsão política e social internacional. A nosso ver, paradoxalmente, a possibilidade histórica de Estados de bem-estar na periferia capitalista poderá ser favorecida através da ocorrência em outros países, de processos políticos de natureza socialista, pela contradição que se repõe no sistema político internacional (FERNANDES, 1973).

Principalmente, quando este processo é interpretado com os paradigmas das ciências compartimentalizadoras do real e que compartilham entre si a lealdade sistêmica à divisão da sociedade em classes.

Por sua vez, compreender este processo desde um ponto de vista marxista, tal qual construído até aqui, nos exige o enquadramento de processos de transformismo de modo crítico, o que nos leva a um ponto de vista diverso das leituras apologéticas à democracia liberal representativa sob o modo de produção capitalista.

1.10 O SOCIALISMO COMO PROBLEMA: COMPREENSÃO OU