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O SOCIALISMO COMO PROBLEMA: COMPREENSÃO OU RESOLUTIBILIDADE?

DIALÉTICA, IDEOLOGIA E DISPUTA HEGEMÔNICA

1.10 O SOCIALISMO COMO PROBLEMA: COMPREENSÃO OU RESOLUTIBILIDADE?

Afirmamos nosso distanciamento em relação às tentativas de constituir o socialismo como um ramo cientifico próprio, ou de adequá-lo pragmaticamente a uma ou outra ciência específica, seja para efeito didático ou metodológico. Por sua vez, a sua interpretação direcionada somente a uma prática política mais direta e eficaz, em geral também não ofereceu bons resultados, terminando por enfraquecer esta tradição filosófica e amplificar lacunas teóricas previamente existentes ou abertas por esse mesmo processo de “adequação”.

Em consonância com o apresentado até aqui, podemos afirmar que a melhor forma de construir o diálogo teórico entre essa tradição de pensamento e as ciências específicas, se dá quando não são subtraídos os seus pressupostos filosóficos e o movimento próprio das categorias do seu método.

Isolar a filosofia da economia política e da história, com o intuito de constituir um método marxista adequado a alguma ciência específica, é um risco para aqueles que se pretendem portadores de uma metodologia científica particular e, ao mesmo tempo, vinculados à tradição marxista de pensamento.

Este tem sido um campo fértil à proliferação de leituras compartimentalizadoras, que em geral supervalorizam o elemento econômico na interpretação da obra de Marx, em detrimento de outros elementos essenciais da vida real que agem, objetiva e subjetivamente, sobre o desenvolvimento das contradições e das potencialidades da humanidade.

Ao contrário do que essas leituras sugerem, a objetividade do pensamento marxiano não se encontraria em um apego ao empirismo, ou à determinação mecânica da infra- estrutura econômica sobre a superestrutura.

A objetividade do conhecimento produzido segundo a tradição de pensamento marxista, encontra-se, privilegiadamente, na visão integradora entre filosofia, história e ciência, como pressuposto da crítica às formas com que se apresenta o mundo real, descortinando suas contradições internas, suas negações e potencialidades, assim como suas possibilidades de superação e realização em outros estados de qualidade.

Desde o ponto de vista utilizado na obra de Marx, podemos dizer então que, independentemente do campo específico no qual esteja inserido o pesquisador que se pretenda vinculado à tradição de pensamento marxista, a necessária busca pela objetividade científica – pressuposto da construção do conhecimento – deve ser presidida pela combinação permanente e criativa entre o arcabouço filosófico, a perspectiva histórica e o método científico próprio da ciência especializada da qual compartilhe.

A visão de ciência incorporada por Engels, dada a nítida influência das ciências naturais, própria do final do séc. XIX, contribui, para além de sua intenção, à desconsideração dos pressupostos dialéticos do método marxista.

Para a filosofia da praxis, o ser não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se se faz esta separação, cai-se em uma das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido (GRAMSCI, 1978, p. 70).

Consideramos que os fatos produzidos pela humanidade trazem em si as múltiplas dimensões do mundo real, são totalizantes em si mesmos, desta forma não existindo, como concebe a ciência fragmentada, enquanto fatos isolados. A construção abstrata típica de cada disciplina científica, tais como o “fato econômico”, o “fato histórico”, o “fato político” ou o “evento discursivo”, se compreendidas radicalmente em separadas umas das outras, tendem a manter a sua veracidade, principalmente no campo da abstração, pois no campo da realidade material, é impossível delimitar praticamente onde começam e onde terminam as características sociais, econômicas, históricas ou políticas desses fatos.

Todos os fatos existentes possuem dimensões múltiplas que ao nível de sua concretude são radicalmente indissociáveis. No entanto, por opção metodológica, disciplinar e disciplinadamente, os estudamos em suas dimensões separadas (econômica, histórica, discursiva, entre inúmeras outras).

Não se trata de abolir idealisticamente o fato concreto da fragmentação das ciências modernas e da atual configuração do cenário de produção acadêmica em geral e em

particular nas ciências humanas. Trata-se, isto sim, de compreender a permeabilidade das fronteiras epistemológicas entre as ciências e a necessidade, cada vez mais frequente, de as atravessarmos todas as vezes e nas múltiplas direções que o real – mesmo recortado e reconstituído enquanto objeto científico – nos exige.

Feito este brevíssimo relato sob o nosso prisma metodológico, faremos breve incursão no campo da ciência política liberal a fim de ilustrar posições inversas ao movimento aqui sugerido. Através de algumas ponderações críticas pretendemos contextualizar alguns dos pressupostos que norteiam nossa pesquisa.

Entre os diversos autores liberais que problematizaram o socialismo, enfocamos o trabalho de Schumpeter, dada sua ampla repercussão e influência, entre alguns dos autores com os quais trabalhamos em nossa pesquisa. A teoria schumpeteriana procura frisar o modus operandi da democracia e pode ser brevemente resumida como sendo

[...] o método democrático é um sistema institucional, para tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor (SCHUMPETER, 1961, p. 327 e 328).

Outros aspectos importantes dessa teoria são:

1. Por um lado, a possibilidade de deixar um espaço maior para a interpretação dos comportamentos da liderança política, diferentemente da teoria clássica que atribuía ao eleitorado um grau de iniciativa que equivaleria ignorá-la (a liderança);

2. Diferentemente da teoria clássica, a definição de Schumpeter deixa mais espaço para a liderança política, pois não se satisfaz com a ideia de vontade geral, mas explica como ela surge e como é substituída ou falsificada;

3. As vontades coletivas autênticas ganham maior possibilidade interpretativa, pois são vistas como afirmações dos fatores políticos presentes nas sociedades segundo a leitura dos seus líderes;

4. Essa teoria identifica a concorrência pela liderança política com a livre concorrência pelo voto e que o método eleitoral é praticamente o único exequível;

5. A teoria parece esclarecer a relação que subsiste entre a democracia e a liberdade individual, pois se todos são livres para concorrer à liderança política, isso trará uma considerável margem em liberdade de expressão para todos;

6. Ao considerar a função primária do eleitorado formar o governo, permite-se a inclusão da função de dissolvê-lo, que significa a aceitação da liderança e a retirada dessa aceitação;

7. A teoria clareia a relação entre a questão da vontade do povo e a decisão por maioria simples. O princípio da democracia significaria apenas que as rédeas do governo devem ser entregues àqueles que contam com maior apoio que os outros.

Claramente inspirada na teoria democrática de Schumpeter, têm-se generalizado a associação da democracia com a competição política, enfatizando os elementos claramente mercadológicos entre elites políticas e as consequentes indeterminações do jogo político democrático. A nosso ver, fica clara a associação da disputa política com a disputa no mercado capitalista entre os seus diversos agentes econômicos e a ideia da destruição criativa32. É colocada ênfase nas estratégias dos competidores e nas condições de competição entre os atores políticos de modo a se compreender o funcionamento do processo chamado de accountability vertical através do qual progressivamente os partidos adequam-se às expectativas, demandas e necessidades do eleitorado por um jogo de punição e recompensa (LATTMAN-WELTMAN, 2006).

Em outras palavras, poderiam ser explicadas as transformações programáticas de um partido e a frequência ou não dos seus sucessos eleitorais pela sua capacidade de “ouvir e atender as demandas do consumidor”.

A ideia de cálculo mediante fins, por si só, muito embora também esteja presente nas escolhas individuais e decisões políticas coletivas, remete a um possível mecanismo isento de valores, opiniões e paixões. Pretensamente purificado de concepções e valores ideológicos constituintes das visões de mundo e das avaliações correntes sobre os comportamentos e práticas dos atores políticos organizados presentes neste mundo e em conflito latente.

A nosso ver, pressupõe uma tentativa de tradução para o universo da política, da fantasia liberal clássica típica de Adam Smith e seu ‘hommo economicus’, partindo de uma releitura do homem político de Aristóteles reelaborado segundo a visão da natureza humana típica do capitalismo moderno.

Como este homem, ou melhor, os agentes econômicos são naturalmente individualistas, racionais e maximizadores de lucros, o seu processo natural de escolha e tomada de decisões políticas possui também uma técnica matemática que presidiria as ações e escolhas, colocados à priori, em condições iguais no mercado político e, no seu interior, prevalecendo aqueles melhores adaptados e mais eficientes.

É nítido o seu componente reificador e idealista, pois em nenhum momento se questiona sobre as condições históricas nas quais é possível e necessário escolher, nem sobre o desenvolvimento daquilo que hoje é mais valorizado, mas que ontem não era. Muito menos das dificuldades adicionais de estar contra a ordem e as facilidades de estar a favor. Desta feita, naturalizando e eternizando os valores típicos da natureza do homem capitalista moderno, egoísmo, individualismo e busca do lucro, como sendo a natureza do homem na totalidade do seu desenvolvimento histórico mundial33.

Outro exemplo desta perspectiva reificadora dos limites da ordem social burguesa, das suas formas políticas e do seu edifício institucional legal, é a leitura de Touraine que se propõe o debate, desde um ponto de vista social-reformista típico dos países onde foi implementado o Estado de Bem-Estar, sobre a globalização e os avanços do liberalismo. Sua perspectiva é a do mal menor, da defensiva estratégica dos movimentos sindicais e dos direitos universais frente às novas condições de produtividade do capitalismo desregulado transnacional. Frente a este quadro, a sabedoria tática seria o único método. Não cabe aqui discutir quais os caminhos e descaminhos dos trabalhadores franceses para a manutenção de suas conquistas passadas, o que nos chama a atenção é a forma exemplar de compreensão da macro-estratégia socialista.

Da mesma forma que, para Schumpeter e outros analistas políticos que serão tratados mais à frente, o socialismo é um problema a ser resolvido, uma mácula do sistema político e partidário e dos movimentos sociais. Seu enquadramento é o mesmo de um objeto físico, sem história, que não seja aquela previamente oriunda das leituras reificadoras do sistema, e sempre, implicitamente ou não, em função dos interesses maiores da sociedade, da liberdade e da democracia.

Apesar da distância política entre ambos, há sintonia total em relação ao ponto de partida da análise, em uma confluência de valores não pouco expressiva entre o liberalismo e a social-democracia.

33 Interessante notar como apesar desta construção abertamente etnocêntrica e evolucionista, o

pensamento liberal no meio acadêmico é preservado destes adjetivos, enquanto o marxismo é frequentemente “qualificado” por eles.

Bastante bien sabemos que los conflictos de intereses entre patrones y asalariados industriales, por inportantes que seas, ya no se sitúan en el centro de la vida social y política, y que las palabras ‘comunismo’ y ‘socialismo’ ya no tienen sentido o han adquirido outro diferente al que a comienzos de siglo tenían (TOURAINE, 2003, p. 17).

Contudo, o elemento central da naturalização dos processos de transformismos desde a Segunda Internacional, até a pós-modernista Terceira-Via que termina por enquadrar a estratégia socialista e seus defensores na posição dos sem história.

Alguns autores vinculam as vitórias eleitorais dos social-democratas com a perda do elemento discursivo do socialismo

[...] a diminuição da importância ideológica está diretamente relacionada com o aumento da competitividade eleitoral e é um dos principais elementos da transformação dos partidos de massa em agremiações profissionais-eleitorais34 (AMARAL,

2003, p. 156).

Seu primeiro aspecto de naturalização é a recusa em considerar ideológica qualquer postura que não seja a abertamente socialista, como se a prática discursiva da reforma gradual do capitalismo, ou da manutenção da ordem e das regras da democracia liberal- burguesa não fossem também práticas discursivas e ideológicas.

Apesar de identificar corretamente aspectos destas transformações, como o esvaziamento dos elementos discursivos ligados ao socialismo e o desenvolvimento de aparatos burocráticos nos partidos e sindicatos, a pressa em chegar à conclusão desejada, os fazem muitas vezes incorrer no erro de contar a história pelo ponto de vista dos vencedores.

Nas análises produzidas pelos teóricos que enfocam centralmente as manifestações do processo de adequação sistêmica dos partidos de massa, notadamente os partidos social-democratas, e no caso brasileiro, o PT, salta aos olhos a ausência de voz própria das agremiações defensoras da estratégia socialista-radical entre as fontes historiográficas utilizadas. Quase que exclusivamente, a narração é feita pelos setores que implementaram conscientemente a trajetória de transformismo.

Por fim, e mais centralmente, uma questão permanece inalcançável pela trajetória do raciocínio acima exposto: qual o motivo da permanência formal da identidade socialista

34 Caberia a pergunta: e a campanha de 1989, quando o PT ainda afirmava claramente uma identidade e

uma postura político-eleitoral mais ‘ideológica’, como conseguiu alcançar votação tão expressiva? E as recorrentes vitórias eleitorais do presidente venezuelano Hugo Chávez, não seriam incompatíveis com sua carga explicitamente ideológica?

do Partido dos Trabalhadores, se um dos principais motivos de suas vitórias, senão o fundamental, foi o abandono do socialismo como plataforma de identidade ideológica?

Para enfrentarmos esse problema que permanece, retornaremos à nossa metodologia e lançaremos mão da história como fonte de interpretação e compreensão do desenvolvimento das posições acerca do socialismo no interior do PT.

Capítulo 2