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AS IDEOLOGIAS COMO FORMA DE CONSCIÊNCIA

DIALÉTICA, IDEOLOGIA E DISPUTA HEGEMÔNICA

1.5 AS IDEOLOGIAS COMO FORMA DE CONSCIÊNCIA

Para Antonio Gramsci, a ideologia representa uma visão de mundo em todos os espaços da vida: arte, literatura, economia etc. englobando tudo que está organizado no plano das ideias e não significando, apenas, concepções introjetadas. A ideologia adquire o:

[...] significado mais alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações individuais e coletivas (GRAMSCI, 1978, p. 16).

Diferentemente da leitura marxiana que predominavam até então, o autor rejeita o caráter exclusivamente negativo de ideologia, compreendendo desta forma esse processo histórico de significação:

O sentido pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstruído: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam a estrutura, mas sim vice-versa; 2) afirma-se que uma determinada solução política é ‘ideológica’, isto é, insuficiente para modificar a estrutura, mesmo que acredite poder modificá-la; afirma-se que é inútil, estúpida, etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia é ‘pura’ aparência, inútil, estúpida, etc (GRAMSCI, 1978, p. 62).

Ao longo do séc. XX diversos autores situados no interior da tradição marxista utilizaram o conceito de ideologia em diálogo com a perspectiva de revalorização inicialmente aberta por Gramsci. Ultrapassa nossos objetivos proceder a um

levantamento mais detalhado deste debate, porém faremos referência, a alguns aportes essenciais para a definição do ferramental teórico necessário à nossa pesquisa.

Neste sentido, as sínteses elaboradas por Eagleton nos serão bastante úteis, pois são bem delineadas teoricamente e encaminham a ênfase de nossa reflexão para a dinâmica construtiva e mobilizadora da ideologia. Sendo assim, o conceito de ideologia é visto como possuidor de:

[...] um amplo espectro de significados históricos, do sentido intratavelmente amplo de determinação social do pensamento até a ideia suspeitosamente limitada de disposição de falsas ideias no interesse direto de uma classe dominante. Com muita frequência, refere-se aos modos como os signos, significados e valores ajudam a reproduzir um poder social dominante, mas também pode denotar qualquer conjuntura significante entre discurso e interesses políticos (EAGLETON, 1997, p. 191). A ideologia como uma estrutura material complexa, não é vista apenas como um tipo de subjetividade coletiva (EAGLETON, 1997, p. 113) e, portanto, não reflete somente a visão de mundo dos setores dominantes, mas sim as relações entre os blocos em disputa na sociedade como um todo.

Sua tarefa é recriar, em um nível ‘imaginário’ a unidade da formação social inteira, não apenas emprestar coerência à consciência de seus governantes (EAGLETON, 1997, p. 113). Desta forma deve ser ampla e flexível o suficiente para atingir e perpassar diversos grupos sociais favorecendo os laços entre suas aspirações subjetivas específicas, suas realidades objetivas e as necessidades objetivas e subjetivas para a reprodução dos interesses das classes dominantes.

[...] deve afigurar-se como uma força social organizadora que constitui ativamente sujeitos humanos nas raízes de sua experiência vivida e busca equipá-los com formas de valor e crença relevantes para suas tarefas sociais específicas e para a reprodução geral da ordem social. […] A ideologia antes contribui para a constituição de interesses sociais do que reflete passivamente posições dadas previamente, mas, apesar disso, legisla a existência de tais posições por sua própria onipotência discursiva (EAGLETON, 1997, p. 194).

Desta feita, a propagação da ideologia é compreendida como um instrumento através do qual uma classe pode exercer a sua hegemonia sobre as demais, assegurando o apoio de outros importantes contingentes, majoritários ou não.

A ideologia, pois, é um aspecto de massa das concepções filosóficas. A filosofia tem uma dimensão orgânica, mostra-se com características de universalidade, expressa a visão ‘alta’ de

uma classe, de um bloco histórico, de uma hegemonia. A ideologia é a forma pela qual ela se torna ação concreta, transformação da realidade, força real. Aliás, é uma autêntica ‘fase intermediária entre a filosofia e a prática cotidiana’17.

A dimensão do aspecto da alienação e do falseamento do real, não desaparece nessa formulação, antes é qualificada em função de sua óbvia efetividade social ao longo do tempo e das diversas sociedades de classe:

Muito do que as ideologias dizem é verdadeiro e seria ineficaz se não o fosse, mas as ideologias também têm muitas proposições que são evidentemente falsas, e isso não tanto por causa de alguma qualidade inerentemente falsa, mas por causa das distorções a que são submetidas nas suas tentativas de ratificar e legitimar sistemas políticos injustos, opressivos (EAGLETON, 1997, p. 193).

Da mesma forma, em Lukács, ideologia é algo também constituinte do real, de tal modo que “os momentos ideológicos não ‘encobrem’ apenas os interesses econômicos, não são apenas bandeiras e palavras de ordem de luta. São parte integrante e elementos da própria luta real” (LUKÁCS, 1974, p. 73).

Neste sentido, situa-se o fundamental aporte de Mészáros, definindo que

[...] a ideologia não é uma ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída) como consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com o conjunto de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus aspectos.

Desta forma,

[...] os interesses sociais que se desenvolvem ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas, é claro, de modo algum independentes), que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social (MÉSZÁROS, 2004, p. 65).

No transcorrer da luta entre as classes,

[...] as ideologias mais importantes devem definir suas respectivas posições tanto como ‘totalizadoras’ em suas explicações e, de outro, como alternativas estratégicas umas às

outras, desta forma os conflitos entre as classes encontram nas ideologias as suas manifestações necessárias através das quais os homens se tornam conscientes desse conflito e o resolvem pela luta, não pelo domínio legislativo da razão teórica (MÉSZÁROS, 2004, p. 65).

Portanto, o que “determina a natureza da ideologia”, antes de tudo, é o imperativo de se tornar praticamente consciente do conflito social fundamental – a partir dos pontos de vista mutuamente excludentes das alternativas hegemônicas que se defrontam em determinada ordem social – com o propósito de resolvê-lo pela luta (MÉSZÁROS, 2004, p. 66).

Tendo a sua racionalidade específica orientada pela e para a prática social e política, os interesses dos discursos ideológicos estão voltados para a percepção de indicadores efetivos do real e de estímulos mobilizadores direcionados a ações sociais e sujeitos sociais concretos. Atualiza-se, deste modo, a questão da falsa consciência como:

[...] um momento subordinado dessa consciência prática determinada pela época [...] sujeita a uma multiplicidade de condições delimitadoras que devem ser avaliadas concretamente em seu próprio cenário (MÉSZÁROS, 2004, p. 67).

Limites estes que são determinados

[...] pela época, colocando em primeiro plano novas formas de desafio ideológico em íntima ligação com o surgimento de meios mais avançados de satisfação das exigências fundamentais do metabolismo social (MÉSZÁROS, 2004, p. 67).

Por fim, compreendendo as ideologias como a consciência social prática das sociedades de classe, Mészáros reafirma o pressuposto marxista da indissociabilidade entre a realidade concreta, a praxis político-ideológica e a elaboração teórica sobre o mundo, e aponta para a existência das conexões entre: os conflitos de classe que caracterizam as sociedades de nosso tempo, as formas de consciência ideológicas sobre esses conflitos e a produção dos conhecimentos sobre os mesmos.

No cenário típico das sociedades divididas em classes e composto por essas conexões, existiriam principalmente com caráter protagônico:

Três posições ideológicas fundamentalmente distintas, com sérias consequência s para os tipos de conhecimento compatíveis com cada uma delas (MÉSZÁROS, 2004, 67). Deste desta perspectiva, elencamos as três posições:

1. Aquela que apóia a ordem estabelecida de modo acrítico, tendo-o como horizonte absoluto da própria vida social;

2. Uma outra que apresenta um novo ponto de vista crítico das “irracionalidades da forma específica de uma anacrônica sociedade de classes”, exemplificada por pensadores radicais como Rousseau, porém atada às contradições de sua própria posição de classe;

3. E, mais outra, que se contrapõe a ambas, questionando a viabilidade histórica da própria sociedade de classe, propondo como objetivo de sua intervenção prática consciente, a superação de todas as formas de antagonismo de classe. (MÉSZÁROS, 2004, p. 67 e 68)

Em outro momento de sua reflexão, Mészáros discorre sobre o desenvolvimento das ideologias emancipadoras que se forjaram em diálogo com a obra marxiana ao longo do século XIX e início do século XX, identificando no fim sangrento da Comuna de Paris em 1871, a distinção entre duas estratégias diametralmente opostas (Mészáros, 2004, p. 373), que a grosso modo nos arriscamos a cracterizar como:

1. A estratégia gradualista, (também conhecida como ‘social-democrata’), cujo maior expoente foi a social-democracia européia do período abrangendo a crise da Segunda Internacional até a crise econômica dos anos 80. Esta macro-estratégia têm sido atualizada desde então com as perspectivas da Terceira Via, do Social Liberalismo e de uma variação de neo-liberalismo de esquerda.

2. A estratégia radical, (ou simplesmente ‘socialista’) de viabilização do socialismo pela conquista revolucionária do poder de Estado, que se generalizou pela periferia do capitalismo do pós-guerra. Esta macro- estratégia também passou por uma série de diversificações e reelaborações, desde os expurgos do stalinismo, passando pelas denúncias de Kruschev até a crise das experiências de socalismo burocrático de tipo sociético. Seus defensores sofreram o impacto maior desta crise, exatamente por se recusarem a estabelecer compromissos histórico-estratégicos com a ordem capitalista. A crescente influência das elaborações de Gramsci e Rosa Luxemburgo, permitiu para a estratégia radical atualizações combinando a disputa de espaços institucionais com a luta extra-institucional e a afirmação do compromisso anticapitalista.

Conviveram no PT18, no período estudado, as duas macro-estratégias, gradualista e radical. As atualizações por que passaram os grupos vinculados a ambas alternativas estratégicas, estiveram em sintonia com a luta pela hegemonia no interior do partido, sofrendo os influxos internacionais predominantes de cada período histórico.

Esta distinção, portanto, nos será muito útil, para a caracterização do contexto enunciativo mais geral propiciado pelo desenvolvimento da luta interna do Partido dos Trabalhadores, assim como na análise de nosso objeto de pesquisa, os sentidos do socialismo no discurso do presidente Lula.

Ao fim dessa pequena síntese sobre o debate acerca do conceito de ideologia, reafirmamos uma leitura específica que busca privilegiar o movimento dialético entre as categorias do mundo real e os conceitos teóricos científicos sem, contudo, romper com os princípios da precedência do mundo material esboçado na construção filosófica de Marx em sua crítica a Hegel.

Objetivamos, deste modo, recusar as leituras reducionistas da tradição marxista de pensamento, críticas ou defensoras, que privilegiam uma causalidade mecanicista que supervaloriza a determinação, na qual não há possibilidade para a autonomia relativa, das formas de construção políticas, ideológicas, culturais e morais, e os sistemas de ideias gerados pelas classes em luta.

Procuramos afirmar a compreensão de um espaço de liberdade possível da política e da ação humana, coletiva e individual, assim como do papel criativo das ideias, dos complexos ideológicos e teóricos sobre o mundo real e não apenas a condição das determinações históricas, econômicas e sociais em última instância. Destacamos que as ideologias não podem surgir de si mesmas, como geração espontânea das ideias, mas elas nascem, dialogam e se desenvolvem em relação com o desenvolvimento humano e suas contradições.

Enquanto inerentemente presentes na vida dos grupos humanos, nas sociedades divididas em classes, as ideologias, por outro lado, interferem concretamente no mundo

18 O autor afirma que para além de suas diferenças há um elemento de unidade substantitva, “o fato de

que em ambas, foi relegada a segundo plano a exigência marxiana original de subordinação estrita de qualquer movimento político, como um meio, ao objetivo central da emancipação econômica das classes trabalhadoras, a qual seria levada a cabo com a transformação radical da divisão do trabalho historicamente estabelecida” (grifos do autor). Este é uma perspectiva válida sobre o debate estratégico, contudo desviaria o foco da nossa reflexão que se dá em um período de aprofundamento das diferenças entre as duas macro-estratégias, gradualista e radical, levando inclusive a rompimentos políticos, como os vivenciados pelo próprio PT.

real, fortalecendo ou enfraquecendo os projetos de dominação, de emancipação ou de adesão negociada presentes na disputa política dessas sociedades.

1.6 IDEOLOGIAS ORGÂNICAS, SINCRONICIDADE E INTELECTUAL