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IDEOLOGIAS ORGÂNICAS, SINCRONICIDADE E INTELECTUAL COLETIVO

DIALÉTICA, IDEOLOGIA E DISPUTA HEGEMÔNICA

1.6 IDEOLOGIAS ORGÂNICAS, SINCRONICIDADE E INTELECTUAL COLETIVO

Entre as várias formulações de Marx e Engels que adquiriram notoriedade, figura a compreensão de que nas sociedades nas quais as classes se dividem, fundamentalmente, pela posse ou não dos meios de produção, a classe dominante materialmente é aquela dominante espiritualmente, pois além de possuírem os instrumentos e meios para a produção das ideais dominantes, essas ideias são a expressão utópica das relações materiais que sustentam o seu domínio.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante (MARX, 1979, p. 72).

Assim, os indivíduos que constituem a classe dominante predominam, tanto no exercício do poder econômico, político e militar, quanto predominam também em vários campos da produção das formas de pensar, sentir e valorar as práticas sociais, determinando:

[...] todo o conteúdo de uma época histórica... dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e distribuição de ideias do seu tempo (MARX, 1979, p. 56).

Desta forma, a produção das ideias encontra-se contactada organicamente e historicamente com o conjunto do todo social, no qual estas ideias são produzidas. Em outras palavras, não se trata de considerar que as ideias são a reprodução imediata, mecânica ou reflexiva, das condições materiais de produção e reprodução da vida, dada uma posição social em um determinado período histórico.

Trata-se, isto sim, de compreender que as ideias surgem no interior de um campo de possibilidades econômico, social, filosófico, ideológico e político construído historicamente. E que essas ideias surgem, em muitos casos, em sincronia com o objetivo de interpretar, agir e modificar a concretude das coisas do mundo, assim como as formas de consciência sobre esse mesmo mundo e o campo de possibilidades interpretativas nele presente.

Esta sincronia possui um componente histórico, pois as ideias são formuladas pelos indivíduos e grupos sociais para compreender e agir sobre um mundo já existente, que lhes precede e lhes escapa, através de suas múltiplas relações.

Esta sincronia também possui componentes sociais, dado o fato perceptível de qualquer ponto de vista, de que algumas ideias voltadas para a compreensão e ação, no e para o mundo, compartilham entre si diversos pontos de contato, nos mais variados aspectos. Mais do que o fazem com outras ideias de outros indivíduos, grupos e classes.

Para exemplificar este raciocínio podemos comparar duas ideias-força que possuíram protagonismo político, social e cultural no séc. XX: de um lado a ideia da supremacia racial branca, e de outro lado, a construção do socialismo como superação da sociedade capitalista.

No alvorecer do séc. XXI, em que nos encontramos, muitos ainda podem acreditar piamente que a base do sucesso econômico das sociedades do capitalismo central, exceto o Japão, está na sua composição étnica predominantemente branca19 e podem empenhar-se no desejo de que é possível comprová-la cientificamente.

Porém, a associação com a barbárie nazista estará sempre presente em nosso período histórico, pesando sobre os formuladores dessa plataforma de compreensão do mundo, como uma marca de indignidade profunda, frente a qual não há outro caminho do que a tergiversação. Pelo menos enquanto a humanidade lembrar-se dos horrores da segunda guerra mundial...

Mesmo aqueles que acreditam nisso, estão historicamente constrangidos e necessitam criar subterfúgios para manter e expor parcelas de suas visões de mundo.

Do mesmo modo, no outro pólo, entre aqueles que não aceitam o vaticínio da insuperabilidade histórica do capitalismo e do estado moderno de corte liberal e conteúdo de classe burguês, e acreditam na possibilidade concreta de sua superação histórica em perspectiva socializante,20 por sua vez também sofrem de um outro tipo de constrangimento histórico: a necessidade de criticar os equívocos e absurdos presentes na experiência do socialismo burocrático de corte stalinista. Ambos os casos, são

19 Utilizaremos esta terminologia formal tradicional, branco, negro, indígena etc., dado que ela se adequa

ao exemplo que pretendemos utilizar. Muito embora, do nosso ponto de vista, essas leituras de corte racial, não sejam tão adequadas quanto parecem, por apagar diferenças culturais, históricas e políticas, no interior do mesmo fenótipo racial, branco, negro, indígena, oriental, etc. a depender do contexto e do local onde são formuladas.

20 Perspectiva do intelectual frente às realidades do período atual da globalização pós-guerra fria,

conforme expressado verbalmente por Milton Santos no documentário dirigido por Silvio Tendler: “Encontros com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá” (ano de produção: 2006; duração: 89 minutos; distribuidora: Caliban Produções Cinematográficas Ltda).

exemplares da necessidade de sincronia histórica das ideias e plataformas voltadas para a compreensão e ação no mundo concreto.

Contudo, não há exemplos em nenhuma parte do mundo, da existência de alguma forma de combinação programática entre a ideia de supremacia racial, orientada por qualquer fenótipo existente, e o programa socialista de superação do capitalismo e a construção da sociedade de homens e mulheres livres. Como eles poderiam associar-se livremente, se a humanidade for dividida entre poderes diferentes de ordem biológica?

Além do problema lógico, a questão de fundo é que a afirmação de um programa social do poder de uns sobre os outros, justificada pelo componente fentípico racial, é socialmente mais viável, nos espaços sociais nos quais a assimetria de poder é um dado tido como natural, inquestionável. Mais precisamente entre as classes dominantes, que reproduzem formas de consciência reificadoras da sua condição protagônica e os setores subordinados e associados aos seus interesses e aos valores de sua hegemonia.

Quando ideias assim se disseminam pelo conjunto da sociedade, o fazem sob uma combinação intensa de coerção, esmagamento dos opositores e ausência de alternativas, a ponto de serem aceitas – mas não incoporadas integralmente – como uma condição de sobrevivência social. Neste caso, além do nazismo, podemos citar a escravidão africana e indígena nas Américas. No caso desta, a aparente apatia e passividade combinou-se com diversas lutas e enfrentamentos que ao longo da história desses povos permitiu a sobrevivência de diversas práticas de resistência cultural, simbólica e política.

Não há pontos de contato programáticos e metodológicos possíveis entre a ideia de supremacia racial e o programa comunista de fim da exploração do homem pelo homem. Não compartilham entre si semelhanças de família.

Acaso a ideia de supremacia racial viesse a prevalecer como alternativa programática e plataforma de ação anticapitalista, dado o seu caráter antiuniversal, rapidamente tenderia a gerar formas diversas de afirmação despótica de poder e apropriação da riqueza socialmente produzida, inviabilizando, na prática, a afirmação dessas semelhanças e a construção de uma plataforma comum.

O exemplo do partido nazista alemão é útil nesse aspecto, dado que, para ampliar o seu espaço político e combater os comunistas, socialistas e social-democratas em suas bases operárias, utilizava um discurso de crítica difusa aos liberais e à sua forma de organização do Estado e da sociedade. No entanto, essas inflexões antiliberais nunca vieram se tornar oposição em relação à aceitação do capitalismo como modo de produção, seus princípios como a propriedade privada e seus valores.

Portanto, voltando à questão das ideologias que predominam historicamente, podemos afirmar que as ideias que compartilham muitos pontos de contato e processos de construção metodológica entre si, podem ser consideradas enquanto portadoras de determinadas semelhanças de família. Quando essas semelhanças ocorrem em relação aos interesses e valores de uma classe, podemos afirmar que são produzidas tanto em função dos aspectos inerentes à sua condição material e posição social, quanto em relação direta com as outras classes às quais esta classe se defronta, seja em posição de autoridade ou de submissão.

O mesmo se dá em relação às formas da organização política do conjunto da sociedade – seja um Estado, uma cidade autônoma, ou um império. No caso das classes dominantes, por sua vez, essas formas de organização política assumem também o papel de ser a sua representação ideal, símbolo e altar da superioridade dos seus interesses políticos e sociais predominantes.

Desta forma, a luta entre as classes com interesses opostos e/ou contraditórios possui no campo das representações ideológicas uma arena privilegiada, pois,

[...] cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade, ou seja, sua expressão ideal: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas (MARX, 1979, p. 58).

A questão essencial neste ponto, seria a distinção entre aquelas ideologias historicamente orgânicas, por adquirirem a característica de narrativas necessárias à vida estrutural da sociedade, em contraste com aquelas vistas como arbitrárias, ou simplesmente desejadas.

Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. [...] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que esta distinção entre forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais (GRAMSCI, 1978, p. 63).

As ideologias orgânicas ganham tal importância para o seu grupo social e para o conjunto da luta ideológica na sociedade, exatamente porque passam a identificar-se

com os diversos aspectos da praxis e da experiência cultural humana, quando mediados pelo gesto da compreensão racional.

O grupo, ou a classe, reelabora intelectualmente a sua experiência coletiva através desta ideologia, assim como seus adversários e inimigos doravante possuem na ideologia adversária, novos elementos cognitivos para compreender e interpretar o seu oponente. A perda ou o abandono por um grupo de sua ideologia orgânica aproxima-se, no terreno da batalha das ideias, a uma rendição incondicional, situação na qual o oponente perde a autonomia sobre seus interesses fundamentais.

A batalha das ideias para a conquista e manutenção da autonomia dos grupos sociais adquire grande importância na reflexão teórico-política de Gramsci. Nela, os sistemas de crenças e as filosofias espontâneas são vistas como elementos presentes nas atitudes humanas, mesmo que de modo heterônomo e fragmentário, revelando um pensar disperso e acrítico dos indivíduos em sua prática social cotidiana.

Este cenário – exemplar da consciência do trabalhador manual em momentos iniciais de seu desenvolvimento histórico político enquanto classe social em si – reifica a sua aparente incompetência filosófica e inaptidão intelectual. Extrapola os elementos de conformismo com a estrutura social existente e consequentemente, reafirma sua posição subordinada dentro desta, terminando por relegar para outros setores sociais, classes e indivíduos as responsabilidades pela organização racional superior de sua experiência.

Por esse motivo, quando um grupo social inicia o desenvolvimento de uma concepção própria, mesmo que embrionária e insuficiente em um primeiro momento, tomará emprestado concepções de outro grupo dada a sua subordinação política e/ou filosófica. As contradições não tardam a aparecer, e a decisão de construir uma visão de mundo crítica e consciente recuperando assim a autonomia do pensar, transforma-se em atitude política, o que lhes cobra o diálogo com outras construções filosóficas distintas e críticas aos elementos reprodutores do senso comum e de sua base material.

Desta forma, na visão de Gramsci, a constituição de uma nova cultura, de um novo corpo de ideias e valores próprios à experiência das classes subordinadas e constrangidas à venda da sua força de trabalho, passaria pelo diálogo com a teoria crítica à sociedade de classes. Isto porque a sedimentação histórica da experiência secular desta luta possui, no campo da construção filosófica, um momento privilegiado de sistematização crítica e autoconsciente, em um nível mais elaborado que o senso comum e a religião.

O grande desafio teórico ao marxismo, seria a construção de uma teoria que produzisse e ajudasse a constituir vínculos orgânicos entre a consciência fragmentária – presente ao nível do senso comum cotidiano das classes oprimidas – com os níveis mais elaborados da crítica filosófica. Para isso enfrentar esse desafio teórico, Gramsci lança mão da ideia de intelectual orgânico.

Em sua formulação Gramsci compreende que o papel do intelectual orgânico é desenvolver ao máximo o potencial da praxis da classe, o que significa combater o que existe de regressivo e negativo na consciência empírica do povo – o senso comum – visto como agregado caótico de concepções díspares, zona catalizadora de experiências conflitantes e em geral retrógradas. Certas concepções folclóricas refletem importantes aspectos da vida do povo, no entanto não deveriam ser romantizadas, pois combinam contraditoriamente aspectos progressistas e conservadores presentes na consciência popular.

Frente a isso, seria necessário não uma concordância paternalista/populista de modo global com a consciência popular, mas sim, o empenho na construção de uma nova cultura e de uma nova filosofia lastreada em seus elementos progressistas, assim como no combate permanente aos sedimentos opressivos acumulados historicamente, e as formas adaptadas e legitimadoras do bloco social dominante.

A função dos intelectuais orgânicos, em outras palavras, é forjar os vínculos entre ‘teoria’ e ‘ideologia’, criando uma passagem em ambas as direções entre a análise política e a experiência popular. E o termo ideologia, aqui, ‘é usada em seu sentido mais elevado, de concepção do mundo implicitamente manifestada na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva’. Tal ‘visão de mundo’ cimenta um bloco social e político, mas como um princípio de unificação, organização, inspiração do que como um sistema de ideias abstratas (EAGLETON, 1997, 111). Isto é o oposto de certa concepção em voga do papel do intelectual, típico da burguesia moderna pós-revolução francesa e atualmente pós-modernista, que se crê independente da vida social e da história, acreditando não mais possuir vínculos orgânicos com valores e plataformas que correspondiam à época de ascensão de sua classe.

Por sua vez, o grande desafio político seria desenvolver agremiação que cumprissem o mesmo papel de amálgama, síntese e potencialização das forças sociais das classes subalternas, possibilitando o convívio entre os diversos setores interessados, objetiva e subjetivamente, na transformação da ordem capitalista.

A visão de partido em Gramsci, tal qual um intelectual orgânico coletivo, passa a incorporar mais explicitamente a dimensão da disputa de ideias, não só voltada para o conjunto da sociedade, como também direcionada aos elementos particulares e coesionadores da experiência social das classes subalternas; em outras palavras, a política em sua dimensão de luta social, convive com as dimensões cultural, simbólica e educativa, caracterizando uma disputa de hegemonias conflitantes na sociedade como um todo, inclusive entre as classes subalternas.

O predomínio da ideologia da classe dominante sobre as demais classes e ideologias, possui em nosso momento histórico, a marca do pensamento burguês como uma

[...] barreira intransponível, já que seu ponto de partida e o seu fim são sempre, mesmo inconscientemente, a apologia da ordem existente das coisas ou, pelo menos, a demonstração da sua imutabilidade (EAGLETON, 1997, p. 61).

Desta forma, o balizamento ideológico, orientado pelas referências à apologia da organização social e à sua imutabilidade, revela, ao mesmo tempo, o grau de aceitação de uma dada hegemonia de classe no conjunto social, assim como, as potencialidades e limites das alternativas contra-hegemônicas presentes e ativas no cenário político.

Enquanto perfazem concepções de mundo distintas e que disputam entre si pela hegemonia da sociedade, as ideologias dos setores dominantes e dos setores dominados informam-se mutuamente, se constroem e desconstroem em permanente disputa.

Na mesma medida que se afirmam e se negam dialeticamente uma à outra, assim o fazem, em relação à arena política concreta e aos valores e ideias presentes e intercambiáveis no todo social. Ou seja, assim como é correto afirmar no interior da tradição marxista de pensamento, que a realidade material determina as condições concretas frente às quais os homens e mulheres desenvolvem as suas potencialidades; também é correto afirmar que a totalidade concreta de uma sociedade, em determinado momento de seu desenvolvimento histórico é, objetiva e subjetivamente, influenciada pela luta ideológica entre os segmentos sociais em disputa por hegemonia em seu interior.