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As regras familiares

9.3. Divisão sexual dos papéis na família

A análise da divisão do trabalho nas famílias, tendo em conta tudo o que anteriormente foi dito, parece revelar-nos a existência de uma sobrecarga de trabalho nas mulheres, particularmente nas mulheres activas do ponto de vista profissional. Trabalhando na sua maioria em regime de tempo completo com horários que variam de 7 a 10 horas por dia nas duas classes sociais,6 a isto associam um número importante de horas dedicado aos cuidados da casa e dos filhos.

O papel expressivo está igualmente assignado, de modo mais evidente, à mulher, sobretudo naquilo que se refere aos filhos. Para as mulheres o espaço doméstico continua a ser local do exercício de determinadas tarefas “específicas,” de tarefas que se destinam ao bem-estar de todos os familiares, especialmente ao dos filhos. Os papéis apresentam-se diferenciados no interior da família, mais ou menos diferenciados, consoante o grau de implicação do marido naquilo que decorre no espaço doméstico.

Procurámos classificar o grau de diferenciação sexual dos papéis nas famílias das 30 mulheres entrevistadas. Socorrendo-nos de trabalhos anteriores (Wall e Guerreiro 2005: 314-340) utilizamos como indicadores a divisão das tarefas domésticas rotineiras (arrumar a casa, cozinhar e tratamento de roupas) e as tarefas dirigidas aos cuidados aos filhos. Estabelecemos para tal classificação os seguintes critérios:

1. Indiferenciação de papéis – Existe delegação ou partilha nas três tarefas rotineiras e a mulher realiza sozinha apenas uma tarefa de cuidados aos filhos.

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Entre as mulheres activas profissionalmente existem duas excepções a estes horários de trabalho: uma mulher da classe média alta e outra da classe média baixa trabalham profissionalmente 5 e 4 horas/dia, respectivamente.

2. Forte diferenciação – A mulher realiza sozinha, duas ou mais tarefas domésticas rotineiras e três ou mais das tarefas de cuidados aos filhos.

3. Diferenciação moderada – todas as situações não contempladas em 1 e 2.

Os excertos de entrevistas que se seguem revelam como se procede à divisão dos papéis sexuais no seio de algumas das famílias que estudámos:

As famílias de Rosário e Zulmira são, entre outras, famílias onde se verifica indiferenciação de papéis:

“ Arrumar a casa, isso é entre mim, o meu marido e a empregada. A minha filha não participa muito… Cozinhar cozinhamos todos. Tratar das roupas é mais a empregada… e também eu e o meu marido. As compras? Não temos esse sistema das compras mensais. É muito cansativo. Vamos fazendo, geralmente os dois. Quando falta alguma coisa faz quem está mais disponível. A minha filha também. Tarefas administrativas? Agora vamos fazendo os dois mas o meu marido faz mais, tenho de concordar. Reparações em casa? Normalmente alguém do exterior. Não somos particularmente habilitados.

Do carro? Trata sempre o meu marido.

…quando a nossa filha era pequenita partilhava-mos bastante tudo. O lavar, o vestir, dar de comer, levantar de noite. Levava-mos sempre os dois ao infantário e á escola, ajudava-mos os dois nos trabalhos de escola…Não, nunca me lembro de ter ido sozinha ao médico com a minha filha. Nunca fui. Só ao deitar é que entrava mais de serviço. O contar a história e conversar um bocadinho à noite é que era mais comigo. De resto estava-mos sempre os dois ao serviço…”

[Rosário, 55 anos, Psicóloga, Docente Universitária]

“ Ao fim de semana talvez seja eu a arrumar. Para falar a verdade ele tem muito mais jeito para decorar. Ele tem esse dom de decorar. È muito criativo. E vai pondo o dedo aqui e ali. E sai tudo mais bonito. É o seguinte: Eu não sou criativa. Eu levo uma vida um pouco…Eu tenho de comprar o tempo. Eu levanto de manhã e pego no trabalho às oito horas. Eu chego a casa às cinco horas e posso fazer uma refeição e faço uma grande quantidade que dá para dois dias. Outros dias, faz ele. E faz muitas vezes… Depois vou para a escola. Eu entro às sete e só volto à meia - noite, ou às onze horas, depende dos dias. O que ele desarruma, por exemplo, se toma banho e molha o chão, ele limpa, não deixa para eu arrumar. E durante a semana ele limpa e arruma onde vê que não está limpo e arrumado. A roupa, temos de tratar os dois. As compras, fazemos os dois. Ou vamos os dois ou quando falta qualquer coisa quem vê compra. Reparações? Ele, mas eu também não vou ficar por trás. Se cair assim alguma coisa em casa, um quadro, eu subo o escadote, martelada e…pronto. Das coisas administrativas… Isso é mais ele.”

[Zulmira, natural de S. Tomé, de 26 anos, residente em Portugal há três anos, empregada de cozinha]

As situações de forte diferenciação de papéis, que o quadro 8.6 nos mostra serem mais expressivas nas classes com menos recursos económicos sociais estão bem patentes nos excertos das entrevistas de Leonor e Mariana:

“ Arrumar a casa sou eu sempre…Cozinhar sou eu, sem ajuda nenhuma. Fazer as compras? Sou eu com o meu marido, porque eu não vejo os preços, não é? E ele tem de ir comigo. Tratar da roupa, sou eu tudo…Lavar, engomar, estender, apanhar.

Essas coisas administrativas trata tudo o meu marido por Multibanco. Do carro também é ele.

Das filhas trato eu tudo, sem a ajuda dele. Faço tudo sozinha. Só quando ele está de folga é que me pode ajudar a levá-las ao médico, se for dia de ir. De resto mais nada.

Para acompanhar os estudos? Também sou eu. Ele é vigilante e uns dias trabalha de noite e outros de dia. Quando trabalha de noite tem de descansar de dia e quando trabalha de dia chega a casa cansado e já pouca coisa faz.”

[Leonor, 21 anos, 6ºano de escolaridade, doméstica, invisual]

- “Arrumar a casa? Faço eu tudo. Só eu. Não há aqui ninguém que faça nada. - Cozinhar e fazer as compras?

- Sou só eu

- Tratar das roupas? - Eu sozinha, também.

- Fazer alguns pagamentos, pagar a renda, pagar a água, tratar de alguns papéis?

- A única coisa que o meu marido paga é o telefone. O resto eu peço á minha mãe, e é ela que vai pagar.

- Pequenas reparações em casa, quem é que faz?

- O meu marido às vezes faz. Quando está bem disposto, às vezes faz. Nem sempre. - E os seus filhos? Costumam ajudá-la ou não?

- Nada, nem pouco nem muito, nada.

- Quando os filhos eram pequenos quem é que tratava dos filhos? Lavar, deitar, vestir…

- Era eu. Nunca tive a ajuda do meu marido, nada, nada. Não. Porque ele é bombeiro voluntário já há muitos anos e como ele é secretário do comando a maior parte do tempo ele está no quartel. E por isso…

- Portanto essas tarefas eram todas para si?

- Tudo, tudo. Até o meu filho mais velho entrar para a escola ainda tive alguma ajuda da minha avó. Ficava com ele quando ele estava doente…Depois, eles faleceram e ficou tudo em cima de mim - Levar os filhos ao médico, quem levava?

- Sempre eu. O mais velho já vai sozinho, agora com o mais novo sou sempre eu. - Quando os seus filhos eram mais pequenos, acompanhava-os nos estudos ?

- Não, porque as minhas capacidades também não são muitas. O mais velho nunca foi preciso. Agora este, eu também não lhe sei explicar e ele também é um miúdo que não aceita ajuda nem mesmo do irmão”

[Mariana, 44 anos, costureira]

As situações de moderada diferenciação de papéis são, como nos mostra o quadro 9.6, mais expressivas na classe média alta. A situação de Carmo, casada há um ano e com uma filha de nove meses, exemplifica bem uma tal divisão de papéis:

“Arrumar a casa somos os dois em conjunto. Um faz uma coisa e outro faz outra. Dividimos muito. Cozinhar sou mais eu. As compras somos os dois. Tratar das roupas? Sou mais eu. Tarefas administrativas, é mais ele. O carro é ele. As reparações somos os dois. Eu gosto de fazer. Tratar da bebé? Ele tem muito jeito para tratar, mas há certas coisas que sou mais eu. Damos banho os dois. Vestir, tenho de ser eu, se não ela faz um berreiro, porque não gosta de se vestir. Mas, mudar a fralda e essas coisas, ele faz sozinho. Trazer ao médico, como está a ver, sou mais eu. Mas também eu agora estou mais disponível.”

[Carmo, 32 anos, licenciada, secretária de antiquário]

Sónia, cabeleireira, insere-se também numa família com uma moderada diferenciação de papéis, como o seu relato nos dá a conhecer:

“Arrumar a casa sou eu e o meu marido também me ajuda, Cozinhar somos os dois

Fazer as compras, vamos sempre os dois. As roupas, é mais comigo. Os arranjos e essas coisas das papeladas é mais com ele. E o carro também.

Com os meus filhos é assim: lavar, vestir e dar de comer temos de ser os dois. Ele faz a um e eu a outro. Deitar somos os dois mas ele é que vai mais vezes contar a história. Vamos os dois levar e buscar ao Infantário. Ao médico normalmente sou eu, mas às vezes o meu marido também vai.”

[Sónia, 33 anos]

O Quadro 9.6 mostra o modo como a divisão de papéis se faz nas trinta famílias estudadas.

Quadro 9. 6 - Divisão sexual de papéis nas famílias estudadas por classe social e grupo etário

À semelhança de Karin Wall e Maria das Dores Guerreiro (2005) encontramos também a influência da escolaridade nas práticas de divisão do trabalho no seio da família. Assim, nas famílias de classe social mais baixa, em que as mulheres são detentoras de menores capitais escolares, encontramos maior feminização do trabalho doméstico e uma divisão sexual dos papéis mais acentuada. Uma moderada diferenciação sexual de papéis, e mesmo uma indiferenciação dos mesmos, tendem a predominar nas famílias de mulheres com perfis mais escolarizados.