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Entre a casa e o trabalho

5.2. O tempo das mulheres

Entre a casa e o trabalho se reparte o quotidiano das mulheres, numa conciliação frequentemente difícil e que apela ao sacrifício das horas de descanso e de lazer. A assignação prioritária, mas não exclusiva, das mulheres ao trabalho reprodutivo que ao longo dos tempos se verificou define não só modos de inserção diferentes no sistema produtivo para cada um dos sexos (Chaudron, 1991) como explica a “afinidade” feminina pelo doméstico que ainda hoje se faz sentir, e uma certa continuidade entre a esfera doméstica e a esfera do trabalho profissional que Martine Segalen assinala (1999).

A versão do inquérito ao Emprego do Tempo, conduzido em França em 1998, revela que o núcleo duro das tarefas domésticas recai em 80% sobre as mulheres; as tarefas domésticas correntes e os cuidados às crianças e adultos ocupam para as mulheres 33 horas semanais enquanto os homens despendem apenas 16 horas e 30 minutos por semana com as mesmas actividades (Meda, 2001: 26). Outros inquéritos referidos pela mesma autora e que analisaram a distribuição do chamado “tempo parental” – actividades feitas por ou com os filhos – apuraram uma totalidade de 39 horas semanais para a realização de tais tarefas das quais dois terços recaíram sobre as mulheres (idem: 27). Os resultados do Inquérito à Ocupação do Tempo 1999 analisados por Heloísa Perista (2002) mostram que, se ao nível da actividade profissional os homens gastam uma média diária de 9h 11m e as mulheres 8 h 04m, ao trabalho doméstico e aos cuidados à família, as mulheres empregadas dispensam uma média de 4 h e 07 m contra 1h 38 m gastos pelos homens. Não só a duração média das actividades é diferente, sendo igualmente diferente a participação de homens e mulheres no que se refere ao trabalho doméstico – se 94% das mulheres efectuam tarefas domésticas apenas 59% dos homens o fazem. Tratar da roupa, limpar a casa, preparar as refeições e fazer as compras são tarefas maioritariamente femininas – o tratamento da roupa sendo quase exclusivamente feminino – na jardinagem e cuidados aos animais tende a aproximar-se o tempo dispensado por ambos os sexo, sendo que, relativamente às tarefas administrativas, o tempo gasto pelos homens é um pouco superior ao das mulheres. Os resultados obtidos na pesquisa dirigida por Anália Torres (Torres et al 2004) confirmam na generalidade os resultados anteriores exceptuando um maior número de horas dedicado pelos homens às actividades de jardinagem, bricolage e manutenção do automóvel. Incumbem então às mulheres as tarefas mais rotineiras e mais exigentes em termos de carga horária e de esforço pessoal.

Wall e Guerreiro (2005) ao estudarem, no âmbito do projecto Famílias no Portugal Contemporâneo, a divisão do trabalho nas famílias portuguesas, encontraram nas famílias de dupla profissão, horários de trabalho profissional geralmente inferiores para as mulheres, em números que variam entre 0,46 a 2,80 horas, respectivamente para operárias industriais e para empresárias e dirigentes. Na distribuição das tarefas domésticas verifica- se que a mulher faz sozinha 54,2% da totalidade das mesmas, percentagem que se eleva para 71% quando se consideram apenas as tarefas rotineiras – cozinhar, tratar da loiça, tratar da roupa e limpar a casa. O homem realiza sozinho apenas 0,8% destas tarefas. Compras, refeições e tratamento da loiça surgem como os domínios onde se verifica alguma partilha conjugal; contudo só nas compras se observa uma partilha mais expressiva. Os cuidados aos bebés são ainda muito feminizados, verificando-se, porém, nos casos de crianças em idade pré-escolar, uma maior partilha de cuidados. Quando os dois elementos do casal trabalham a tempo inteiro constata-se que em 27,3% dos casos é sobretudo a mulher a realizar o trabalho doméstico, em 15,9% das situações existe alguma partilha conjugal e, apenas em 6,7% das mesmas, se observa bastante partilha conjugal. Nestes casos cresce a importância da delegação em terceiros, com a empregada doméstica a auxiliar a mulher em 9,6% das situações. Verifica-se uma associação entre práticas de divisão do trabalho doméstico, grau de escolaridade da mulher e classe social da família. Assim, nas famílias de duplo emprego, em que os dois cônjuges têm escolaridade igual ou superior a licenciatura, a delegação de tarefas na empregada doméstica surge numa percentagem elevada de casos (idem: 336). Sabemos, contudo, que a coordenação das actividades “ da casa” e a gestão definitiva do doméstico assenta fundamentalmente na mulher.

Trabalho e casa, duas realidades de conciliação difícil tanto mais que os diferentes tempos que lhe estão dedicados estão estreitamente interligados e impenetrados, sobrepõem-se e irrompem uns nos outros (Meda, 2001); há uma continuidade dos tempos para as mulheres, que transportam para o emprego casa e filhos e frequentemente para o descanso, a casa e as preocupações profissionais. Se esta afinidade quase forçada das mulheres para o doméstico as impede de progredir na carreira profissional, ela induz ainda, pela dificuldade de conciliar as várias esferas, sentimentos de impotência, de fadiga, culpabilidade e níveis acrescidos de stress, repercutindo-se de forma negativa no bem estar e saúde femininos.

Não só o tempo quotidiano é afectado por esta difícil articulação de campos de trabalho; as trajectórias individuais e familiares femininas – o tempo na sua dimensão

diacrónica - fazem-se marcadas por este contínuo movimento entre a casa e o trabalho. Assim, se, à partida, mulheres e homens ocupam nos locais de trabalho posições de igualdade, logo com o nascimento do primeiro filho a mulher verá dificultada a sua progressão na carreira, situação que em regra se agravará com o aumento do número de filhos. Também, em fases posteriores da sua trajectória pessoal e familiar, o apoio a dar a várias gerações – filhos jovens, netos, pais ou sogros – se repercute quer na distribuição dos vários tempos - profissional, doméstico, livre – quer na forma culpabilizada como grande parte das mulheres vive a dificuldade real de se dividir entre as exigências dos vários espaços e tempos que balizam a sua existência.

Apesar dos constrangimentos a que se encontram submetidas, e para além da simples necessidade económica, as mulheres continuam a afirmar a vontade de permanecerem no mercado trabalho, como a pesquisa de Anália Torres o demonstrou (Torres, 2004). Novas formas de redistribuição das tarefas domésticas, mais equitativas, a assunção de papéis conjugais não sexualmente diferenciados, a criação de legislação que faculte uma maior assignação dos homens ao espaço doméstico e ao cuidado dos filhos, transformações culturais que facilitem a assunção de novos papéis, uma profunda alteração das culturas empresariais que reconheça aos homens o direito de usufruir de tempos mais vocacionados para o doméstico e para a parentalidade e, por fim, uma rede de serviços que apoie os casais na sua função de cuidadores parecem ingredientes indispensáveis para que homens e mulheres usufruam de uma mais justa repartição do tempo e do trabalho

Parte II – A organização da pesquisa