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Entre a casa e o trabalho

5.1. Percursos profissionais no feminino

Debruçámo-nos, até agora, sobre uma das mais importantes esferas onde se desdobra a vida da mulher, a família, nas suas múltiplas dimensões. Com uma importância crescente, a actividade profissional, hoje com a particularidade de se desenvolver, quase exclusivamente, no exterior do domicílio, ocupa uma fatia considerável do tempo real e simbólico vivido pelas mulheres. A actual maior visibilidade do trabalho profissional feminino não pode fazer-nos esquecer que este constituiu para as mulheres do passado, sobretudo as de meios sociais mais desfavorecidos, uma realidade dura com fortes repercussões na sua saúde e no seu bem estar. Ainda na sociedade pré – industrial e nos grupos de camponeses, artesãos ou comerciantes, encontramos, associado ao trabalho doméstico, um trabalho não doméstico efectuado pelas mulheres no espaço da própria casa ou no exterior, relacionado com as tarefas agrícolas, a fiação, o trabalho na oficina artesanal ou no comércio familiar (Cruz, 2003). Assistimos muitas vezes a um “trabalho de casal” feito lado a lado, em pequenos empreendimentos familiares, realizado sob a presença dos filhos pequenos, que, em meio rural, eram no entanto frequentemente confiados à guarda dos irmãos mais velhos ou colocados em amas nos meios urbanizados (Sonnet, 1991). Não só os empreendimentos familiares mobilizam a actividade não doméstica das mulheres. Lavadeiras, serviçais, bordadeiras, amas, constituem-se como uma multiplicidade de actividades profissionais, realizadas por conta de outrem e no exterior do espaço doméstico (Cruz, 2003).

A emergência da industrialização coloca as mulheres das classes sociais baixas em situações de trabalho profissional penoso realizado no domicílio ou na fábrica. O trabalho no domicílio ocupa preferencialmente as mulheres casadas e mães surgindo como a solução que idealmente possibilitaria a articulação de uma tarefa profissional com o encargo da vida doméstica e do cuidado dos filhos, articulação que na maioria das vezes se tornava difícil de concretizar dado o elevado número de horas que a primeira exigia. A máquina de costura, instrumento auxiliar do trabalho da mulher burguesa, torna-se para a mulher da família operária um instrumento de opressão. Como Martine Segalen afirma:

“Por um magro salário, agarrada à sua máquina de costura, a mulher reencontra o seu lugar e a sua função tradicionais, fixa a imagem simbólica da mulher disciplinada (hoje em dia, a mesma imagem tem o seu prolongamento na dactilógrafa, primeiro presa à sua máquina de escrever, nos anos 90, ao seu computador). Com o desenvolvimento da indústria do vestuário, muitas mulheres tiram da sua máquina de costura o dinheiro necessário ao pagamento do instrumento da sua dominação e com o qual completam o salário do marido” (Segalen, 1999:251).

As mulheres mais jovens, solteiras ou sem filhos faziam a sua entrada na fábrica, onde constituíam uma mão-de-obra desqualificada, submissa, mal paga e mal aceite pelos trabalhadores do sexo masculino. Sofia Cruz transcreve parte do discurso levado a cabo pela Confederação dos Trabalhadores Franceses em 1920, relacionado com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, provocada pela Primeira Guerra Mundial:

“numa sociedade que deve ser bem organizada [...] a mulher, companheira do homem, destina-se, sobretudo a fazer crianças, a cuidá-las num lar cuidado e limpo, a educar os pequenos, a instruir-se e a instruí-los, tornando a existência do companheiro o mais feliz possível de forma a faze-lo esquecer a exploração monstruosa de que é vítima. Para nós, é esse o seu papel social” (in Cruz, 2003: 46-47).

É assim que, nos finais da Primeira Guerra Mundial, as mulheres operárias são empurradas para casa, onde, à semelhança da mulher burguesa desempenhariam o papel de esposa, mãe e dona de casa, responsável não só pelo trabalho do afecto mas pelas tarefas do arranjo, da alimentação, da limpeza, dos cuidados materiais aos filhos enquanto os homens assumiam como sua a função de provedor do sustento económico da família.

A situação tende a modificar-se a partir da segunda metade do século XX. A partir dos anos 50 assistimos a um peso significativo e crescente da população feminina nos mercados de trabalho. A taxa de actividade das mulheres dos 25 aos 49 anos era, em França, em 1962, de 41,5%; a taxa actual ronda os 80%, constituindo as mulheres 45% do total da população activa (Meda, 2001).

A generalidade dos países europeus acompanha este movimento; a população activa feminina na Europa dos 15 era em 1997 de 57,7% (Guerreiro, 2000). Embora em Portugal só a partir dos anos 60 se faça sentir o maior peso das mulheres no mundo profissional, o fenómeno rapidamente se expandiu e detemos hoje uma percentagem de população activa feminina superior à média europeia – em 1997 a taxa era 63,5% para uma média europeia de 57,7% (idem). Neste campo do trabalho feminino Portugal apresenta algumas especificidades que importa referir; não só a taxa de trabalho feminino é das mais altas da

Europa, como é também maior a taxa de trabalho feminino a tempo inteiro – o número médio de horas de trabalho semanal da população feminina era, em 1997, de 38,4 enquanto que a média europeia se situava nas 33,5 horas (Guerreiro, 2000). O rápido crescimento da taxa de trabalho no nosso país parece poder explicar-se pelos movimentos migratórios e a guerra colonial que condicionaram a diminuição da mão de obra masculina, e um nível global de salários baixo que justificaria a necessidade de um complemento do orçamento familiar pelo trabalho feminino (Guerreiro, 2000; Torres, 2004).

As mulheres, globalmente mais escolarizadas do que os homens, invadem progressivamente o mercado de trabalho, mas neste a sua posição apresenta algumas características que importa assinalar. O seu trabalho profissional tende a desenvolver-se num número restrito e particular de actividades que de alguma forma prolongam no exterior o tipo de tarefas realizado no espaço doméstico; os serviços domésticos ou afins, os serviços educativos e de saúde empregam uma população maioritariamente feminina que ocupa, ainda, uma considerável fatia do funcionalismo público cujo trabalho, menos competitivo, parece melhor poder articular-se com o encargo doméstico (Guerreiro, 2000; Meda, 2001). Embora apresentem globalmente um maior capital escolar, é menor o acesso das mulheres a cargos de direcção ou chefia (Meda, 2001; Torres, 2004). Desigualdades salariais são também uma constante. Em França, Dominique Meda (2001) avança valores diferenciais de 7% em desfavor das mulheres, não imputáveis a qualquer outra causa objectiva que não a diferença sexual. Em Portugal, Anália Torres e colabores (2004) confirmam a desigualdade de rendimentos, com rendimentos femininos globalmente inferiores aos dos homens, embora nos níveis de escolaridade média e superior se atenuem as diferenças entre os dois sexos.

A inserção massiva das mulheres na esfera do trabalho remunerado não as libertou de uma carga importante de trabalho não pago, efectuado no domicílio ou no exterior, mas sempre direccionado para os outros elementos da família. Veremos como se faz, de forma assimétrica, a distribuição deste tipo de trabalho entre os dois sexos.