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Do espaço público à esfera social

No documento Actas I Jornadas de Jornalismo (páginas 193-200)

Carla Martins, mestre, ESCS / Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias

(carlamartins@netcabo.pt)

Sumário

A genealogia do social na sua relação à modernidade proposta por Arendt tem como referente a distinção entre esferas pública e privada, da polis e da oikia, distinção essa erguida em princípio de compreensão da comunidade política. A sociedade significou a confusão entre os dois registos outrora separados na experiência ateniense. Na modernidade, o uso e compreensão do termo sociedade alteraram-se profundamente em relação ao universo de significação e acção grego. A divisão entre duas “entidades diferentes e separadas”, da política e da família – bem como das actividades desenvolvidas no seio de cada uma –, será perturbada por um “fenómeno novo” que se encontra no dealbar da idade moderna: a emergência de uma esfera “híbrida”, a esfera social (Arendt, 1958, 35). Combinando elementos das esferas pública e privada, essa esfera “não é nem privada nem pública” (Ibidem, 28). A confusão histórica das esferas da existência humana marca o nascimento da sociedade que, num sentido mais estrito, mais não é do que uma ampla extensão da esfera familiar.

Introdução

Antes de iniciar a minha intervenção, subordinada ao tema “Do espaço público à esfera social”, penso ser relevante salientar dois aspectos.

Em primeiro lugar, a resistência de Arendt em pensar o fenómeno político como filósofa. Após uma precoce apetência para a filosofia e uma promissora formação filosófica, Arendt viria, anos mais tarde, a diagnosticar um hiato profundo entre a política e a filosofia e, mais amplamente, entre a vita activa e a vita contemplativa. Arendt assimilou negativamente a atitude filosófica a um tipo de intelectualidade que, recorrentemente, desprezou a política e os assuntos humanos. “Aquilo que os filósofos quase unanimemente reclamaram do domínio político foi um estado de coisas no qual a acção (...) seria ou supérflua ou permaneceria reservada, a título de privilégio, apenas a uns poucos” (Arendt, 2001, 327-328). Como escreve em The Human Condition: “Fugir da fragilidade dos negócios humanos para a solidez da tranquilidade e da ordem parece, de facto, tão recomendável que a maior parte da filosofia política, desde Platão, poderia facilmente ser interpretada como uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de escapar inteiramente da política. O que caracteriza todas essas modalidades de evasão é o conceito de governo, isto é, a noção de que os homens só podem viver juntos, de maneira legítima e política, quando alguns têm o direito de comandar e os demais são obrigados a obedecer” (1958, 222).

Em segundo lugar, Arendt sabia que, por temperamento e inclinação, era desajustada para a acção política ou para a vida pública. A sua juventude foi marcadamente apolítica mas o “choque da realidade”, no início dos anos 30, levou-a a orientar-se para a acção. Segundo Anne-Marie Roviello, o sistema totalitário e a vivência do mal enquanto negação do humano moldaram a experiência originária pela qual o pensamento arendtiano se abriu à questão do político e da condição humana (1997, 7). O desapontamento em relação ao grupo de intelectuais – do qual também fazia parte – levou-a, desde 1933, a assumir como imperativo organizar-se na acção no quadro do sionismo. Em entrevista a Günter Gaus, afirmou: “manifestamente, a pertença ao judaísmo tinha-se transformado no meu próprio problema e o meu próprio problema era de ordem política. Puramente política! Queria empenhar-me praticamente num trabalho e queria empenhar-me no trabalho judeu” (2001, 26). No entanto, o afastamento dos assuntos público-políticos tornou-se uma opção a partir da II Guerra Mundial. É no registo de uma espécie peculiar de bios teoreticus que amadurecem as suas reflexões; é este registo que molda a sua identidade

como intelectual – não, obviamente, como “pensadora profissional” – e legitima a sua forma de intervenção na sociedade. E Arendt não detecta qualquer incompatibilidade entre compreender e reflectir sobre a política sem ser um “animal político”.

Espaço público “grego”

Em The Human Condition, Arendt sustenta que a esfera pública é “o local adequado para a excelência humana”. O homem apenas alcança a humanidade através da exposição da sua vida e da sua pessoa aos “riscos da vida pública”, escreveu a pensadora a propósito de Karl Jaspers.

Afinal, o que poderemos entender por Espaço Público na obra de Hannah Arendt?

O “grego” e o “burguês” são os dois grandes modelos de espaço público já consagrados na tradição ocidental.

O primeiro emana da tradição clássico-aristotélica da política em redor da polis, o segundo surge no contexto do Iluminismo em torno da categoria de Publicidade (Ferry, 1998, 13), entendida em termos kantianos como o uso público da razão.

Arendt opera explicitamente uma recuperação da categoria de espaço público à luz das experiências gregas da polis. “A polis grega, escreve, continuará a estar presente como fundamento da nossa existência política, no fundo do mar, durante o tempo em que tivermos na boca a palavra «política»” (1974, 304). No contexto grego clássico a organização política opunha-se à “associação natural” cujo centro é o lar (oikia) e a família. Para os gregos, a vida na polis denotava uma forma de organização política livremente escolhida e, de modo algum, apenas a acção necessária para manter os homens unidos de uma forma ordeira. Salienta Cristina Sanchez que o facto determinante para conquistar a titularidade dos direitos políticos, para se ser cidadão, era a pertença a uma comunidade política, e esta pertença não significava principalmente estar integrado num colectivo mas, sim, a vontade de agir.

Arendt resgata este sentido original do bios politikos aristotélico, que significa uma espécie de segunda vida, comunal, que cada homem recebe para além da sua existência privada. De todas as actividades presentes nas comunidades

humanas, apenas duas eram credenciadas como políticas e como constituintes do bios politikos, a saber, a acção (praxis) e o discurso (lexis).

Vita activa – vita contemplativa

Ao retomar o conceito aristotélico da política, analisa Jean-Marc Ferry, Arendt evidencia as oposições entre o político e o económico, o público e o privado, a liberdade e a necessidade, o poder e o domínio, a prática e a técnica (1998, 13).

Com efeito, a obra arendtiana – de estilo ensaístico – é atravessada por clássicas oposições, geralmente dentro de enquadramentos trípticos: trabalho, labor e acção; julgamento, pensamento e vontade; passado, presente, futuro; privado, social e público (Bruehl, 1982, 280).

Estas oposições iluminam-se, em parte, no quadro da reabilitação do conceito de vita activa, cujo significado, na leitura de Arendt, foi tradicionalmente determinado a partir do ponto de vista da vita contemplativa. Arendt considerou que era possível tornar de novo visíveis as diferenças e manifestações no âmbito da vita activa que tinham ficado obscurecidas pelo valor da contemplação na hierarquia tradicional (Arendt, 1958, 16).

Recorde-se muito brevemente a organização interna de A Condição Humana. O exame fenomenológico que a pensadora empreende da vita activa incide sobre três elementos: as actividades do homem, as condições da existência humana e os espaços onde têm lugar essas actividades. Vita activa designa, em primeiro lugar, três actividades humanas fundamentais: labor, trabalho e acção. A cada uma correspondem as condições básicas pelas quais a vida na terra foi dada ao homem. O labor, a actividade que colmata as necessidades de reprodução e de sobrevivência da espécie, tem como condição a própria vida.

O trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana – “o trabalho produz um mundo «artificial» de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural” e destinado a perdurar e a transcender as vidas individuais (Ibidem, 7) – e a sua condição é a mundanidade.

A acção, a única actividade que decorre directamente entre os homens, corresponde à condição humana da pluralidade, “ao facto de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (Ibidem).

Quanto ao terceiro elemento do exame fenomenológico arendtiano da vita activa, cada actividade humana aponta para um topos, um espaço de realização que será público ou privado. “Se considerarmos a escala integral das actividades humanas do ponto de vista da aparência, encontramos muitos graus de manifestação. Nem laborar nem fabricar requerem a mostração da própria actividade; só o agir e o falar precisam de um espaço de aparecimento – tal como as pessoas que vêem e ouvem – para que se possam de todo actualizar” (Ibidem, 84).

Esferas separadas: público - privado

A partir da “natureza” das actividades dentro da vita activa, das suas condições e dos espaços onde decorrem, Arendt identifica uma separação clara entre esfera pública e esfera privada. Na concepção das “esferas separadas”, a pensadora parece privilegiar a participação na esfera pública como único lugar onde o homem pode alcançar uma existência autêntica. Em comparação com estas possibilidades de realização, a esfera privada parece inadequada para proporcionar uma existência verdadeiramente humana.

Esfera privada

No entanto, o espaço privado, mesmo à luz da experiência histórica grega, e não obstante ser em todas as circunstâncias não-político, abre-se a uma leitura dupla. Por um lado, numa acepção positiva, privado é indissociável do conceito de propriedade.

O que impedia a polis de violar as vidas privadas dos seus cidadãos e que impelia à assunção da sacralidade dos limites de cada propriedade era o facto de a participação do cidadão nos assuntos políticos depender da posse de uma casa e de um lugar (físico, tangível) protegido no/do mundo (Ibidem, 30).

Público e privado entreteciam uma relação de interdependência: antes da idade moderna, a propriedade privada não constituía apenas a condição para a entrada no domínio público, representando assim a superação das necessidades vitais; a privacidade, o lugar protegido e escondido do domínio público, era essencial para a admissão às mais elevadas possibilidades da existência humana alcançáveis no plano político, porque não ter um lugar privado no mundo equivalia a deixar de ser humano (Ibidem, 64).

Obviamente, este requisito obstava a que, dentro do lar, as mulheres, os escravos, os servos, numa palavra, os não-cidadãos, pudessem também eles participar nas actividades público-políticas. Encontramos aqui o sentido negativo de privacidade como carácter privativo. Os não-cidadãos permaneciam resguardados na esfera privada, isentos de projecção ou de realidade públicas. O denominador comum da esfera da oikia assentava na comunhão – ou, mais rigorosamente, na coabitação compulsiva – dos homens sob a égide das urgências vitais, da satisfação das suas necessidades, traduzidas na preservação-reprodução da vida e na sobrevivência individual e da espécie. A comunidade natural do lar e as actividades aí desenvolvidas radicavam na necessidade.

Se a privacidade, enquanto este estar-privado de uma existência autêntica, se constituía como condição pré-política, tal ficava a dever-se ao imperativo de superar as necessidades e carências para alcançar uma existência política e livre. A esfera da polis era conduzida pelo princípio da liberdade, cuja condição primeira residia na libertação das necessidades da vida e das actividades do labor e do trabalho. No lar reinava a desigualdade ao passo que só os “iguais” tinham acesso à polis – o domínio dos “pares”. “Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão” (Ibidem, 32).

Ser-livre e viver-na-polis eram, num certo sentido, uma e a mesma coisa (Arendt, 1995, 57). Esta liberdade impulsionava o cidadão a procurar distinguir- se em todas as circunstâncias, a esforçar-se por superar-se sempre a si próprio, através da excelência e da acção extraordinária.

Sendo a esfera pública caracterizada pelo estar-com-os-outros, pela convocação de uma pluralidade, compreende-se com alguma dificuldade que a

vontade de ultrapassar as marcas históricas dos feitos realizados por outros, o desejo de imortalidade, transformassem a polis num lugar “reservado à individualidade”, o único onde os homens “podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram” (Arendt, 1958, 41).

Poderemos admitir, porém, como o faz Seyla Benhabib, a existência de dois modelos de espaço público. Além da clara presença do cidadão como “herói guerreiro”, em The Human Condition encontramos também fios que conduzem a um modelo de espaço público associativo, participativo ou discursivo. A imagem guerreira e agonal do cidadão fica, de certa forma, “domesticada” pelo cidadão deliberativo aristotélico, no qual a praxis se irá entender como lexis. Poder-se-á assistir, neste enquadramento, a uma transferência do “herói homérico” para o modelo de cidadão comprometido numa deliberação colectiva (Apud, Sanchez, 1994, 27-28).

Espaço público

Apropriando livremente o sentido grego de espaço público, Arendt irá propor uma definição dupla do conceito.

O termo “público” designa, em The Human Condition, dois fenómenos relacionados entre si embora distintos. Público “significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade” (Arendt, 1958, 50). Tudo o que aparece e existe está destinado a ser visto e ouvido por outros. Como escreve no primeiro volume de A Vida do Espírito, “não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra” (Arendt, 1999, 29).

Novamente nas palavras de Arendt: “a nossa certeza que o que apreendemos tem uma existência independente do acto de apreender, depende inteiramente de o objecto também aparecer como tal a outros e ser confirmado por eles. Sem esta confirmação tácita por outros, não seríamos sequer capazes de confiar na maneira como aparecemos a nós mesmos” (Ibidem, 56).

Por outro lado, a percepção humana da realidade “depende totalmente da aparência, e portanto da existência de uma esfera pública” (Arendt, 1958, 51). Arendt indica uma outra componente fundamental do conceito de espaço público, ao defender que a realidade do domínio público se baseia na presença simultânea de inumeráveis perspectivas e aspectos sob os quais o mundo comum se apresenta. Embora o mundo comum seja o local onde todos se encontram, os homens aparecem nele em diferentes localizações. “Só quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de modo que os que estão à sua volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, é que a realidade do mundo se pode manifestar de maneira real e fidedigna” (Ibidem, 57).

Em segundo lugar, “público” significa o próprio mundo, comum a todos os indivíduos, erguido artificialmente contra a natureza, e signo de durabilidade e de estabilidade. A durabilidade e a estabilidade do mundo – um mundo humanamente criado e que se opõe ao movimento cíclico natural – dão a medida ao tempo humano. Isto porque aparecemos num mundo que precedeu a nossa chegada e que sobreviverá à nossa partida (Arendt, 1999, 31).

A “realidade e a confiabilidade do mundo humano” dependem precisamente deste carácter durável das coisas produzidas pelas mãos humanas – mais duráveis do que o tempo de duração das actividades ou o tempo de vida dos autores. Todas as actividades humanas, mais ou menos tangíveis, são susceptíveis de sofrer processos de reificação, e as coisas produzidas como resultado desses processos têm uma duração ou um grau de mundanidade variável (Arendt, 1958, 95-96).

Viver em conjunto no mundo significa, essencialmente, que um mundo de coisas (artefactos, obras de arte, monumentos, instituições, leis, narrativas...) está entre aqueles que o partilham, tal como a mesa está localizada entre aqueles que se sentam à sua volta. “O mundo, como todo o intermediário, ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens” (Ibidem, 52). Neste sentido, o domínio público identifica-se com o mundo comum, entendido como koinon, núcleo comunitário. Nas palavras de Arendt: “Esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o carácter público da esfera pública que é

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