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Do imaginário para o simbólico: a troca simbólica

1.2 O PROCESSO DE SIMBOLIZAÇÃO

1.2.3 Do imaginário para o simbólico: a troca simbólica

Na escola, a criança entra em contato com a educação formal e com os conteúdos sociais, dentre eles, a linguagem nas modalidades oral e escrita. Cabe ao professor favorecer a mediação entre o sujeito e a linguagem, de maneira que a relação sujeito-objeto possa ser refeita, permitindo que a criança ressignifique. Segundo Lacan,

para que uma relação assuma seu valor simbólico é preciso haver a mediação de um terceiro personagem que realize, em relação ao sujeito, o elemento transcendente graças ao qual sua relação com o objeto pode ser sustentada a certa distância (LACAN, 1963, p. 36)

Considerando que uma função importante da educação é proporcionar um espaço onde a criança possa sublimar suas pulsões (FREUD, 1916), ou seja, satisfazê-las de modo culturalmente aceito, considero que tal coisa [a sublimação das pulsões] acontece quando algo leva a criança a aceitar uma mediação.

Como por exemplo, podemos mencionar o momento em que o professor intervém de modo a provocar uma mudança de posição na criança, que, a partir deste momento, passa a ter maior trânsito no simbólico, por exemplo, pela via da escrita. Neste segmento, procuro delinear aspectos que levem à compreensão da passagem do imaginário para o simbólico.

Para explicar o modo pelo qual o sujeito se submete à ordem simbólica, Lacan recorre ao conto de Edgar Allan Poe (1844), A carta Roubada, realizando uma reflexão cuja intenção é mostrar o modo pelo qual “a linguagem formal determina o sujeito”(LACAN, 1955, p.47). Ele dá à carta a instância de sujeito, pois toda a trama se desenrola pelo seu desvio. A carta é a letra que segue um “trajeto que lhe é próprio” (ibid., p. 33) ela é o significante puro. É o deslocamento da carta [significante] que determinará os sujeitos envolvidos, pois “é o seu sentido que os possui” (ibid., p.34). Ora a carta está na mão de um, ora está na de outro, mas ela está sempre em um lugar, ela se desvia e segue o caminho para o simbólico.

No conto de Poe (1844), a carta foi roubada pelo ministro e escondida em um local evidente. A carta sempre esteve à vista de todos, embora a cegueira diante do seu desejo impeça o Chefe de Polícia de encontrá-la. Ele recorre a Dupin, personagem que consegue calcular a lógica do ministro e encontrar a carta. No conto, a cegueira diante do objeto de desejo é mostrada por meio de três olhares de diferentes sujeitos: o olhar que nada vê, aquele que vê que o primeiro nada vê e aquele que vê. Lacan demonstra que as ações se sucedem através do olhar e da cegueira. Fazendo uma comparação com o processo de aprendizagem, com aqueles que devem exercer a função do Outro, é possível pensar na hipótese de que esses três olhares fazem toda a diferença na relação que se estabelece com a criança, vista como a carta, portadora da mensagem. Há olhares que estão tão envolvidos com seu próprio desejo que não conseguem direcionar o seu olhar para a carta [sujeito], mesmo que ela esteja à sua vista, com sua mensagem disponível para ser lida; olhares que recebem a mensagem, mas se eximem da responsabilidade de tê-la lido e há, ainda, olhares que conseguem decifrar o percurso percorrido pela carta, direcionando o olhar para o lugar onde ela se encontra e, independente da mensagem que ela porte, conseguem vê-la.

Do mesmo modo que ocorreu com a carta, o percurso do sujeito é decifrável e passível de ser deduzido por meio do cálculo analítico. O Chefe de Polícia investiga o destino da carta sucessivamente, mas não a encontra, pois procura em locais onde ela não está e não lhe dá crédito por não corresponder à descrição que tinha da mesma. Assim, repete-se a ação da busca e do olhar investigativo. A cegueira pode ser entendida como sendo da ordem subjetiva, considerando que para Lacan “o inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN, 1955, p. 18). Em outras palavras, o inconsciente é habitado por um outro [eu] que cega o sujeito diante do objeto de desejo. Nesse momento de sua elaboração, portanto, a atenção de Lacan se voltava ao que se repete e como, a partir dessa repetição, o analista pode construir a lógica de funcionamento de um sujeito.

Lacan (1955, p. 26) salienta que a carta é um significante puro que “materializa a instância da morte”, pois mesmo que a cortemos em pedaços, ela continuará a ser uma carta. O significante é o símbolo de uma ausência, pois “ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá” (ibid., 1955, 27). Parafraseando Lacan (ibid., p. 28), o que está escondido é aquilo que falta em seu lugar e aquilo que pode mudar de lugar nada mais é do que o simbólico, pois o real não muda de lugar, permanece sempre ali. É a mensagem da carta que muda de lugar, pois foi endereçada à rainha, furtada pelo ministro e encontrada por Dupin. O detentor da carta possuirá o seu significado, mas o significante precede o significado. Para Lacan, a singularidade da carta é o verdadeiro sujeito, o seu trajeto é um percurso simbólico. Mas esse percurso é intersubjetivo e envolve outros sujeitos na cadeia significante, assim, “o deslocamento significante determina os sujeitos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte” (LACAN, 1955, p.34). A existência da carta faz com que ela se situe numa cadeia simbólica, ela é o símbolo de um pacto (ibid., 31)

Pode-se resumir do seguinte modo:

Carta = Sujeito...Significante puro Mensagem = Nome/símbolo ... significado

Levando em conta os “olhares” sugeridos por Lacan, o nada vê, o que vê que o primeiro nada vê e aquele que vê, é possível afirmar que os olhares envolvidos nesse processo foram variados, como por exemplo, o olhar da criança dirigido à professora e aos colegas; os olhares das crianças que estavam presentes durante as gravações; o olhar da professora ao informante e aos demais alunos presentes na sala; e, o olhar da investigadora na leitura que realizou durante as transcrições, na observação atenta das gravações e na análise desse material.

A partir dessas reflexões, a minha ideia é a de que os informantes desta pesquisa são como cartas que portam mensagens, podendo passar de mão em mão, entre os pais, os familiares, os colegas, enfim, todos aqueles com quem a criança se relaciona no seu dia a dia. A mensagem é simbólica e só será lida por aqueles que conseguem vê-la.

Para mostrar o modo pelo qual a ordem simbólica funciona na relação entre os sujeitos, Lacan (1955, p. 58) elaborou o esquema “L”. Neste momento de suas reflexões, ele privilegiou o registro do simbólico sobre o imaginário. Para ele, um sujeito está assujeitado às leis da linguagem, ao Outro.

A seguir, na figura 3, apresento o esquema “L”:

Figura 3 - Esquema L

Observando a figura apresentada na figura 3, pode-se ver que o Esquema “L” é composto por quatro pontos unidos por dois segmentos que se cruzam. A figura deve ser lida da parte direita superior (a’) para a esquerda inferior (a). Esse eixo [a’] → [a] é denominado como relação imaginária, na qual [a] é o [eu], que recebe a sua imagem de [a’], representado pelo pequeno outro. O eixo [a’] → [a] refere-se à identificação comum aos homens e aos animais, ou seja, ao reconhecimento de si diante da imagem de seus semelhantes.

O eixo da relação imaginária é atravessado pelo eixo que recebe o nome de inconsciente, que sai do ponto [A] e segue até o ponto [S]. No eixo [A] → [S], o [A] representa o grande Outro, o Outro da linguagem que atua sobre o sujeito em uma relação inconsciente, atravessando a linha do imaginário dando origem ao sujeito [S]. O eixo [A] → [S] consiste no eixo simbólico que atravessa a relação dual imaginária por meio da linguagem, instaurando o advento do sujeito. É possível dizer que o esquema “L” mostra a mesma estrutura do Édipo lacaniano.

Considero que o esquema “L” pode definir a relação que procuro estabelecer nesta dissertação entre o informante, o objeto do conhecimento e o professor. É possível dizer que durante a realização da atividade, a intervenção do professor pode ser comparada com a função do Outro [A], o Outro da linguagem. A criança é o eu [a] que, primeiramente, mantém com o objeto de conhecimento [a’] uma relação imaginária, que será atravessada pelas intervenções do professor, que farão com que a criança reflita sobre o objeto, ressiginificando- o, seguindo um percurso inicial para o simbólico. Ou seja, primeiramente há uma falta de saber que passa pelo imaginário e, posteriormente, é parcialmente simbolizado.

No início do ano letivo de 2009, o trabalho pedagógico com o nome próprio ainda não havia começado. O alfabeto, cartazes ou outros materiais escritos não estavam expostos na sala. Na atividade realizada para coleta de dados, entre a fala da professora e a resposta dada pela criança, ocorre um percurso inicial para o simbólico, pois há uma cadeia significante em ação. O deslocamento do significante determinará os atos de ambos. Ou seja, tanto a professora quanto a criança sofrem os efeitos da cadeia significante.

Arrisco-me a afirmar que o processo de simbolização ocorre durante toda a vida do sujeito, em todas as situações em que ele se prive de algo e necessite passar do imaginário para o simbólico, como exemplo, quando estamos diante de uma nova aprendizagem à qual ainda não tínhamos tido acesso.

Considero que a compreensão do processo de simbolização pode trazer benefícios para a interpretação das produções escritas por crianças pequenas, favorecendo a mudança de posição da criança em relação ao seu próprio escrito.

Posto isto, passo à terceira parte deste capítulo, na qual pretendo delinear o percurso para que a criança se aproprie da linguagem escrita. Para tanto, tomarei a obra de Pommier (1993).