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O discurso que não causa efeito no sujeito

4.2 O EFEITO DO DISCURSO DO OUTRO

4.2.1 O discurso que não causa efeito no sujeito

Na primeira gravação do informante Guilherme, ele fez uso do conhecimento que possuía da estrutura da língua. Quando foi solicitado a escrever seu nome, ele substituiu um significante por outro ao trocar o seu nome próprio pelo nome de seus colegas, pois o pronome possessivo seu é usado para designar o outro. Pela transcrição 1, disponível no apêndice F, é possível notar a relação que o informante estabelece entre os pronomes pessoais seu e meu. Mesmo que de modo não explícito, quando lhe foi solicitado para que escrevesse seu nome ele usou o pronome possessivo seu/dela para se referir ao nome da colega Bia:

1 P. Guilherme ... escreve pra mim o seu nome ... 2 G. num consigo ...

3 P. por que você não consegue?

4 G. porque ... não consigo faze o nome de Bia ...

Entre as linhas 16 e 20, pode-se verificar que a criança passou por um processo de reflexão. Primeiramente, ele relacionou o pronome seu com o nome da colega e, em seguida, quando a professora insistiu, passou a usar o pronome possessivo meu, fazendo a associação

meu nome – Guilherme.

16 P. eu quero saber do seu nome ... tenta escrever o seu nome ... 18 G. O meu nome ...

19 P. É ... o seu nome ... Como que é o seu nome? 20 G. Guilherme ...

Entre as linhas 35 e 37, pode-se verificar que a reflexão realizada sobre o pronome

meu/seu não levou à possibilidade de escrever seu nome próprio, o que pode ser entendido

35 G. o nome eu ... 36 P. o nome o que? 37 G. o nome eu ...

A escrita do seu nome próprio pode representar um problema relacionado com o fato de inscrever-se sobre uma superfície, a criança riu dessa possibilidade. É possível que o nome eu estivesse relacionado com o eu que é um corpo físico, impossível de ser representado. Guilherme ainda não sabia usar grafias que se assemelhem à forma de seu corpo físico e ele não o faz com a grafia de bolas. No meu entendimento, nesta faixa etária o nome próprio não é desvinculado do corpo físico, como se para a criança nome e corpo fossem uma só coisa. Uma possibilidade de interpretação pode levar à dificuldade semântica da criança de se apropriar do conceito de nome próprio. Nesta primeira gravação com o informante Guilherme, as minhas intervenções causaram poucas mudanças de posição no informante, embora a reação dele tenha feito com que a minha participação durante a realização da atividade fosse revista. Ou seja, ele não muda de posição, mas me convoca a rever a participação que teria durante as próximas gravações.

Na figura 14, pode-se averiguar a produção escrita resultante da segunda gravação do informante Guilherme, realizada no dia 20 de março de 2009. Realizada onze dias após a primeira, sua produção escrita não apresentou alterações no que se refere à grafia, pois ele fez uso de imagens que se assemelhavam com bolas, entretanto, essas figuras arredondadas foram usadas para escrever o seu nome e não o nome de outros colegas.

O informante não utilizou todo o espaço da folha. Ele iniciou seu escrito na parte central, como pode ser conferido na caixa 1, seguindo para a parte superior direita, indicada na caixa 2. Após a escrita de três círculos, ele grafou outros quatro em direção à parte inferior da folha, como pode ser visto na caixa 3. A última bola possui uma forma achatada, semelhante a de um peixe, espremida pela proximidade da borda da folha.

Nesta atividade não houve nenhum tipo de recusa por parte de Guilherme. Ele foi solicitado a escrever seu nome e cumpriu o que lhe foi pedido. A transcrição 2 está disponível no apêndice G, ao final deste trabalho. Abaixo, apresento as linhas de 1 a 4, que mostram a solicitação da professora e a imediata resposta de Guilherme:

1 P. ( ) nome ...

2 G. olha eu consegui ...

3 P. o que que você escreveu aí? 4 G. nome eu Guilherme Vertoan

Na linha 2, Guilherme falou que conseguiu escrever seu nome, demonstrando ter compreendido a solicitação da professora, ou seja, na atividade anterior suas reflexões resolveram o problema do pronome possessivo seu – meu. Ele escreveu o nome de seus colegas por meio de bolas e eu aceitei essa escrita como escrita, não fazendo nenhuma intervenção no sentido de que essa grafia não era a escrita do nome. Na insistência para que ele escrevesse o seu nome e não o nome do colega, é possível inferir que Guilherme viu a grafia de bolas como escrita usando-a para escrever seu nome e não mais o nome dos colegas. Na transcrição 2, disponível no apêndice G, constata-se que não houve nenhum tipo de intervenção por parte da professora que, novamente, aceitou essa grafia de Guilherme como escrita, sem questioná-lo. O modo como me posicionei diante da atividade não causou mudanças de posição da criança em relação ao seu escrito e arrisco-me a afirmar que não há nada que levasse a criança a refletir sobre a linguagem.

A sétima gravação realizada com o informante Guilherme, ocorreu no dia 3 de setembro de 2009. A reprodução gráfica do que foi escrito por Guilherme é apresentada na figura 15, página 116. A transcrição completa pode ser visualizada no apêndice L.

À época, Guilherme reconhecia o seu nome escrito e o nome de todos os colegas do grupo. Ele escrevia as letras do seu nome em atividades informais de escrita e nos quadros do pátio. Embora ainda não tivesse memorizado a ordem correta das letras, colocava-as em uma sequência semelhante ao convencional, por exemplo: GUILEHMER.

Guilherme demonstrava não estar interessado na realização da sétima atividade e, para atender à demanda, realizou a produção rapidamente. Vejamos como se deu o diálogo:

1 P. Guilherme ... escreva seu nome para mim ... 2 G. ah ... o meu nome?

3 P. é, o seu nome ... 4 G. pronto ...

5 P. o que você escreveu? 6 G. Guilerme ...

A escrita de Guilherme foi feita da esquerda para a direita, linearmente e com a mesma marca usada nas produções 4, 5 e 7. É possível pensar que Guilherme encontrou um modo de representar e inscrever seu nome na superfície do papel. Para tanto, ele adotou um traçado que se assemelha com a escrita manuscrita e repetiu esse traçado nas produções solicitadas, pois nas demais, informais, ele usava a grafia de letras. Neste momento, aceitei essa marca como a escrita de seu nome e não fiz intervenções.

Figura 15 - Produção de Guilherme realizada em 03/09/2009 - Idade: 3a:10m:7d

De modo contrário ao de Guilherme, durante a primeira gravação a informante Thaís, demonstrou o mais completo silêncio. O que pensar da falta de resposta por parte de uma criança? Teria entendido a proposta? O que poderia representar esse silêncio? Procurei a resposta para o silêncio de Thaís no seu comportamento retraído e tímido. O silêncio da

criança me incomodou, pois não consegui ter acesso ao que estava se passando com ela. É difícil lidar com o silêncio do outro e Thaís não convocava outros elementos para a cadeia significante, parecia não entrar no jogo. Na figura 16, apresento a produção de Thaís. A transcrição 18 está disponível no apêndice W.

Figura 16 – Produção de Thaís realizada em: 09/03/2009 - Idade: 3a:2m:2d

Não é possível nomear os traços que Thaís grafou, pois ela não os interpretou. Ela fez pontinhos, riscos e uma grafia semelhante a letra /T/, na caixa 3. A minha interpretação para tal silêncio está relacionado com a ideia de Pommier (1993), segundo a qual, a técnica e o domínio do código não levam o sujeito a superar a angustia que sente ao se deparar com uma folha em branco. Se alguém que domina a técnica e o código sofre a tormenta da angustia, folha em branco pode ser comparada com um monstro devorador. A minha ideia é a de que existe certa dificuldade em corresponder ao desejo e à exigência de alguém que pode ser comparado a um ente que sufoca, diante do qual sente-se impotente.

A próxima produção de Thaís, realizada em 3 de setembro, apresentou um salto em relação à grafia, pois ela passou a usar sinais como se fossem pequenas letras, semelhantes com ao traçado das letras convencionais. Na figura 17, na página 118, é possível conferir o uso que a informante fez dos sinais. Por meio de bolas, tracinhos e alguns borrões, Thaís tentou imitar a escrita. Ela interpretou o que escreveu dizendo que fez desenho e furinho. O

saber que está além do texto manifesto é guardado pela informante, que o deixa velado, escondido dos olhos alheios. Como decifrar a mensagem dessa carta que se apresenta de modo tão lacrado?

Em vista do silêncio da informante, para que esse processo de reorganização e ressignificação ocorra, é necessário que ela se sinta evocada a participar do jogo, que se envolva e que deixe transparecer, ou melhor, que deixe a mensagem chegar ao destinatário.

Figura 17 - Produção de Thaís realizada em: 03/09/2009 - Idade: 3a:7m:27d

Ao leitor, cabe jogar com o significante na tentativa de recriar o sentido. É possível ver mudanças no escrito de Thaís, o que prova que ela está realizando reflexões sobre a linguagem, mas não há como saber que tipo de reflexões ela já operou.

As três últimas atividades realizadas por Thaís, respectivamente nos meses de outubro, novembro e dezembro, podem ser conferidas na figura 18, página 119. As transcrições estão disponíveis nos apêndices AC, AD e AE.

A informante insistia em afirmar que não sabia escrever. Ela grafava os riscos e esperava pela minha confirmação ou aceitação, sempre mostrando-se insegura. Comparando as três produções, verificamos que elas apresentam traçados semelhantes às letras que compõem o nome de Thaís [T, H, I, S, embora estejam soltos na superfície da folha.

Figura 18 – Produções de Thaís, realizadas nos dias 06/10/2009, 03/11/2009 e 11/12/2009

Na atividade de dezembro, a letra /S/ grafada em azul foi feita por mim, pois Thaís pediu-me para que a escrevesse. Quando realizei a grafia, ela fez duas tentativas de escrevê-la, mas não obteve sucesso. Nas três gravações, ela nomeou a letra /T/ por Thaís. Tendo apresentado fragmentos dos dados da informante Thaís, passo aos de Letícia.

No início das gravações, Letícia apresentou um comportamento alheio à demanda da professora. Nos apêndices AF e AG, é possível conferir as transcrições completa das gravações realizadas nos dias 03 e 30 de março de 2009. Na figura 19, apresento as duas produções de Letícia.

Figura 19- Produções de Letícia realizadas em: 03/03 e 30/03 de 2009

Durante a gravação realizada no dia 3, a informante permaneceu fitando-me e não olhou para o papel. Sua grafia é circular, espiralada e o traçado foi aumentando até se tornar

uma forma maior. Na caixa 3, Letícia diz ter escrito bolona e, quando perguntei a respeito do seu nome, ela fez o traçado que pode ser visto na caixa 4. Em seguida, na caixa 5, diz que escreveu cachorro, com um traçado semelhante a letra /E/. É perceptível que o foco da informante não estava na realização da atividade.

Na produção feita no dia 30 de março, confere-se alguns traçados diferentes dos que foram grafados na atividade anterior. Embora Letícia tenha feito tentativas de usar outros traços, é possível afirmar que ela não se implicou na realização da atividade. No fragmento da transcrição, entre as linhas 7 e 13, pode-se conferir como ela interpretou seu escrito:

7 L. uma bolona …

10 P. escreve pra mim o seu nome … 12 P. O que você escreveu?

13 L. cachorro e meu nome

Nas primeiras gravações realizadas com Thaís e Letícia, parece-me que elas esperavam de minha parte elogios e aceitação daquilo que me ofereciam como escrita. A minha hipótese é a de que isso pode ter ocorrido por conta de estarem diante de uma figura feminina, de quem elas esperam por ações semelhantes às da mãe.

A professora interpretou, forneceu significantes e ressignificou os enunciados da criança. O silêncio e o não envolvimento da criança podem levar a pensar que ela não se implicou com a tarefa e que não houve avanço em sua construção simbólica. Porém, ao comparar as produções escritas, percebe-se a diferença entre elas, o que remeter ao entendimento que a criança, ao escutar e produzir enunciados, assim como afirmado por Lemos (1992), reorganiza e estabelece novas relações entre os significantes de uma cadeia.

Para que ocorra a simbolização é necessário que a criança se envolva na atividade e se dê a perceber. Neste subitem da dissertação, por meio de fragmentos do corpus, busquei demonstrar que o discurso da professora nem sempre foi capaz de evocar a criança para que ela se envolvesse na atividade, para fazer com que ela entrasse no jogo e fosse além. Em suma, se não há desejo, a função da linguagem pode não ocorrer e as intervenções podem não levar à mudança de posição do sujeito em relação ao objeto do conhecimento.

No próximo subitem, passo a demonstrar a mudança de posição dos informantes, ocorridas a partir das insistentes intervenções da professora.

4.2.2 O discurso que provoca mudança de posição do sujeito – a