• Nenhum resultado encontrado

O uso de bolinhas para representar os colegas

4.1 O PERCURSO DOS SIGNIFICANTES E SUA RELAÇÃO COM O

4.1.1 O uso de bolinhas para representar os colegas

A primeira gravação foi realizada no ambiente do parque, no dia nove de março de 2009. Os informantes estavam brincando e eu os chamava para realizar a atividade, assim, eles podiam visualizar seus colegas brincando enquanto estavam sendo gravados.

Nesta primeira produção, Guilherme grafou várias figuras que se assemelham a bolas. Ele utilizou o espaço da folha linearmente e organizou seus traços horizontalmente, da esquerda para a direita. Arrisco a hipótese de que ele possuía certo saber a respeito da orientação da escrita no espaço do papel, provavelmente, por já ter observado adultos escrevendo, embora em outras atividades ele não tenha seguido essa mesma orientação linear. Na figura 4, página 91, apresento a reprodução gráfica da primeira produção escrita pelo informante Guilherme.

Figura 4 - Produção de Guilherme realizada em 09/03/2009 – idade 3a:4m:10d

Na caixa 1, na parte superior esquerda, visualiza-se a primeira marca grafada com formato de um semicírculo. Em seguida, Guilherme passou a grafar formas semelhantes a bolas, na parte inferior da folha, com movimentos da esquerda para a direita, como é possível verificar na caixa 2. Não há nenhuma semelhança entre as figuras que ele grafou com as letras do seu nome. Seus desenhos, provavelmente, não representam coisas, e, sim, Letras.

Vejamos como se deu o percurso do informante Guilherme na primeira gravação. Tomando da transcrição 1, disponível para consulta no apêndice F, Guilherme, primeiramente, nega-se a escrever seu nome, talvez por julgar não sabê-lo. É possível conferir sua negação nas linhas de 2 a 11:

2 G. num consigo ... ((faz gesto com a mão))

4 G. porque ... não consigo faze o nome de Bia ... ((olha para o lado movimentando o corpo))

7 G. ah não ... ((faz um traço na parte superior esquerda da folha))

9 G. porque não consigo ...((olha para cima com a caneta próximo ao rosto))

11 G. não consigo ... ((mexe com a cabeça))

Na linha 4, ele diz que não consegue escrever o nome de Bia, provavelmente uma colega que ele tenha focalizado, pois, nesse momento da gravação, olhou para o lado em que alguns colegas estavam brincando. Posso inferir que ao olhar para a colega, ele traz o nome dela para a cadeia significante, estabelecendo uma conexão. Na linha 7, o informante

responde negativamente e grafa a primeira marca na folha, que pode ser vista na caixa 1, no canto superior da reprodução.

Posso deduzir que Guilherme já possuísse um imaginário do sistema de escrita, pois ele diz que não consegue escrever seu nome, o qual já deve ter visto em imagem grafada pelos pais, ou na escola. Mas, ao lhe perguntar se ele nunca viu seu nome escrito, ele responde negativamente, como pode ser conferido nas linhas 12 e 13: Essa resposta pode levar à suposição de que o informante não tinha, ainda, memorizado a forma das letras de seu nome próprio.

12 P. você nunca viu seu nome escrito em lugar nenhum? 13 G. não ... aqui ó ... ela chama ...

As duas marcas visualizadas nas caixas de número 2, indicam uma grafia rápida, em que ele risca a primeira bola nomeando-a por Pietra, e, logo em seguida, outra bola dizendo

o meu nome?, o que pode ser verificado nas linhas 15 e 18, a seguir:

15 G. ela chama Pietra ... 18 G. O meu nome? ...

Após, Guilherme grafou quatro bolas durante o tempo em que fala seu nome,

Guilherme e, ao ser questionado a respeito do que está escrito, ele cantarola um versinho,

mas continua grafando duas bolas, o que podemos ler na sequência, entre as linhas 19 e 25 da transcrição:

20 G. Guilherme ...

21 P. uhn... o que que está escrito aí? 22 G. caí sentada e não chorei ...

23 P. fala um pouquinho mais alto ... o que está escrito aí? 24 G. ( ) caí sentada e não chorei ... aqui é o coegador ... 25 P. é o que?

26 G. coegador ... sentada e não chorei ... que é pecado ... no morro ... o namorado

Para buscar entender os motivos da recusa do informante em escrever seu nome, recorri à hipótese de que ele não compreendeu o enunciado da professora, escreve pra mim

o seu nome.Na idade de Guilherme, o significante nome pode ainda não possuir o valor de identificação, até mesmo por conta do uso, pelos familiares, de diminutivos e apelidos carinhosos. O informante é chamado de Gui, tanto por seus pais quanto pelos colegas e

adultos da escola. Contudo, essa hipótese foi refutada pelo fato de a criança ter respondido seu nome corretamente, na linha 20.

Entre as linhas 22 e 26, apresentadas anteriormente, Guilherme cantarolou uma música22 trabalhada em aula. Pela maneira como recitou e pela expressão facial, Guilherme parecia dizer: não estou nem aí para o que você quer que eu faça. Ele troca de caneta, aponta as bolas que grafou com o dedo, ri e grafa outras bolas. Ou seja, nesse momento da produção, ele fez aquilo que deseja fazer, satisfazendo a sua pulsão, independente do que foi solicitado.

No decorrer da gravação, Guilherme passou a falar de imagens que estão no seu contexto, apontando e nomeando os colegas que estavam brincando no parque, incorporando-os em sua produção. Nas linhas 15, 29, 49 e 61 é possível conferir que ele procurou grafá-los e nomeá-los [Lolô, Bia, Pietra]. Isso pode levar a uma interpretação em que ele pensa que é possível representar uma palavra por meio de bolas, que funcionam como significantes. Guilherme nomeia as formas que grafa na sequencia de nomes de colegas: Pietra, Lolô, Bia, Letícia, Júlia, Letícia, Júlia, e Danilo:

15 G. ela chama Pietra ...

29 G. esse nome é a Lolô ... Bia ... Pietra ... Pietra ... 49 G. aqui o nome ... eu preciso vê ... Letícia ... Júlia ... 61 G. e o Danilo ...

O deslizamento metonímico é composto por substantivos que Guilherme falou para corresponder ao significante nome. Entendo que ocorreu um deslizamento do significante

nome até o momento em que ele respondeu com seu nome próprio, seguido do nome da

família, Guilherme Vertoan. Guilherme Vertoan é um significante que, ao nomear o sujeito falante, designa um corpo e o inscreve em um lugar de filiação.

Na linha 49, Guilherme parece dizer “deixe-me pensar, pois eu preciso ver”, ou seja, é o olhar de Guilherme que convoca outros significantes, pois ele grafou as imagens que estavam visíveis, neste caso, seus colegas. Arrisco uma interpretação na qual a criança primeiramente fala e grafa o nome dos colegas que estão sendo vistos de corpo inteiro, buscando uma diferenciação entre si e o outro. Uma espécie de espelhamento, pois a imagem do outro é visível para ele.

22Música do repertório popular infantil: “Borboletinha está na cozinha, fazendo chocolate para a madrinha, poti

Procurei levar o informante à compreensão de que era o seu nome próprio que ele deveria grafar, e não outro. Para atender à solicitação ele fez uso de uma série de nomes culminando no seu nome próprio: Pietra, Lolô, Letícia, Júlia, Letícia, Júlia, Júlia e

Letícia, Danilo, eu, o nome eu, Guilherme, Guilherme Vertoan.

No quadro 9, exemplifico o deslizamento metonímico realizado por Guilherme.

Como foi salientado, o significante nome, solicitado desde o início da atividade, deu origem a várias repostas que não o nome do informante. Geralmente, apareceu um substantivo que nomeava algum colega, na maior parte das vezes [9] do sexo oposto ao seu e, apenas uma vez, falou o nome de um colega do mesmo sexo. Ele só usa um nome próprio do gênero masculino, Danilo, ao final da atividade, na linha 61, pouco antes de responder com seu nome próprio. Nesse ponto, procuro na diferenciação o entendimento da razão pela qual Guilherme usou sempre nomes femininos, pois como afirmado anteriormente, o sujeito se constitui na identificação e na diferenciação. É notável o fato de Guilherme não usar nomes de bichos ou de outros objetos, a não ser quando cantarola a música da “borboletinha”.

Entre o que solicitei por seu nome e os significantes que ele usou na busca de corresponder ao que lhe foi solicitado, Guilherme percorreu um processo de construção imaginária. Identificando-se inicialmente com a imagem dos colegas, para posteriormente

Ste nome nome nome nome nome nome nome

s Bia Pietra Meu nome Guilherme Lolô Bia Pietra

Ste nome nome nome nome nome nome nome

s EU Letícia Julia Guilherme Julia Letícia Danilo

Ste nome nome nome

s EU Guilherme Guilherme Vertoan

diferenciar-se deles, ele realizou um trajeto que, paulatinamente, levará à simbolização. Nas últimas elaborações, verifica-se o deslizamento metonímico ocorrido nas respostas de Guilherme:

MEU NOME → EU → GUILHERME → GUILHERME VERTOAN.

Pode-se inferir que Guilherme possuía alguns saberes, por exemplo, o uso que faz dos substantivos próprios para indicar as bolas que grafou com os nomes de colegas. Considero que esse saber da criança está relacionado com aquilo que ele escuta do nome, com a sonoridade, o que pode ser explicado pela afirmação de Gardiner (GARDINER, 1954 apud LEITE, 2004), de que o nome é um som distintivo reconhecido pelos sentidos. Embora Guilherme tenha feito uso dos substantivos, ele não demonstrou conhecer a grafia das letras do alfabeto, pois não usou nenhum traço semelhante com as letras que compõem o seu nome, ou o dos colegas.

Na idade de Guilherme, o corpo humano é representado por meio de uma figura oval e chama a atenção o fato de ele não grafar o seu nome próprio do mesmo modo que fez com o nome dos colegas. Faço uma interpretação na qual ele procurou corresponder ao que lhe foi solicitado. Ao nomear a grafia em forma de bola com o nome de um colega, ele transformou a bola em um significante, que passou a ter valor de letra, pois para Guilherme ali estava escrito o nome Pietra, Lolô, Letícia, Júlia ou Danilo. Lacan (1957) postulou que o sentido insiste na cadeia significante. O significante representa um sujeito para outro significante. Quando aceitei essa grafia como sendo um nome próprio, Guilherme pode ter passado a ver a sua escrita como escrita.

No que segue apresento a terceira gravação do informante Guilherme.