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O nome próprio e sua relação com a identificação

1.1 A SIGNIFICAÇÃO DO NOME PRÓPRIO PARA O SUJEITO

1.1.2 O nome próprio e sua relação com a identificação

Se é verdade que todo mundo ganha um nome, não é menos verdade que, para torná-lo seu, precisa se identificar a ele imaginária e simbolicamente.

Para entender como se dá o processo de identificação, recorro à Psicanálise lacaniana, segundo a qual, o mais importante no processo de identificação é a relação do sujeito com o significante. O que se entende por identificação é a “identificação de significante” (LACAN, 1961, p. 25). Ao tratar desse processo, imagina-se, primeiramente, que nos identificamos ao outro. Por isso, Lacan insistiu em ressaltar a diferença entre o pequeno outro e o grande Outro.

Em Lacan, a primeira forma de identificação é aquela que incorpora e pode produzir algo no corpo como se fosse uma “identidade de corpo”, com algo do pai transmitido aos seus descendentes (1962, p. 224-225). É na identificação imaginária, relacionada com a imagem especular, que se dá a origem do eu.

A segunda forma de identificação está relacionada com a apreensão do significante puro, a identificação do sujeito na medida em que ele faz surgir no mundo o traço unário. Pode-se dizer que essa identificação marca a história do sujeito, pois é simbólica e origina o sujeito do inconsciente. O processo de identificação imaginária e simbólica perpassa toda a vida do sujeito, em todas as situações que ele vivencia.

Considerando a idade de meus informantes, me deterei no estádio do espelho e no complexo de Édipo. Tendo em vista que a identificação no complexo de Édipo está relacionada com o processo de simbolização, farei um aprofundamento desse conceito em um momento posterior, na segunda parte deste capítulo.

No que segue tratarei da identificação imaginária que ocorre no período nomeado por Lacan (1949) como estádio do espelho.

1.1.2.1 A matriz do simbólico na identificação imaginária

A imagem que a criança constrói de si é formada a partir dos modelos e do modo como ela introjeta e se identifica com características e comportamentos das pessoas com os

quais mantém relações na infância. Essa imagem será primeiramente construída em um processo de identificação (eu-outro) e, posteriormente, na diferenciação (eu não sou o outro/eu sou diferente do outro). Na convivência social a criança recalcará seu corpo físico criando uma imagem de si mesma. O corpo pulsional é aquele recortado pela linguagem.

No texto O estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan (1949) trata dos primórdios da identificação imaginária. Essa identificação é aquela que, a partir da imagem do outro, constitui a imagem do corpo próprio no registro do imaginário, dando origem ao eu.

O conceito de estádio do espelho está relacionado à constituição do sujeito com a prevalência do imaginário. Neste período, há uma matriz do simbólico na identificação imaginária. Essa matriz do simbólico é resultante da história que antecede o nascimento do bebê, algo que está antes dele e que produzirá marcas responsáveis por inseri-lo em um determinado lugar na cultura, na família, no simbólico. O representante do simbólico, o outro real, encarnado na função materna, é aquele que, por meio da linguagem e do enunciado, fará a inserção do bebê na cadeia significante familiar. Os mecanismos identificatórios, advindos da imagem do corpo de um outro real em sua totalidade, levam à origem do primeiro momento de constituição do eu pela identificação com o objeto.

Segundo Lacan (ibid., p.100), a função do estádio do espelho é “estabelecer uma relação do organismo com sua realidade”. Ao nascer, a criança entra em contato com aqueles que dela cuidam, percebendo fragmentos da imagem dessas pessoas, o rosto, as mãos, enfim, pedaços do corpo os quais consegue visualizar. Neste período, pode-se dizer que há uma espécie de fusão entre a mãe e o bebê. Nas ocasiões de contato entre ambos, durante a amamentação ou higiene, o bebê vê o rosto do adulto e corresponde às expressões faciais que este rosto reflete [um sorriso, um bocejo, ou uma careta].

O vínculo mãe-bebê, existente no interesse e nos cuidados que a mãe dedica ao seu filho, é único e estruturante. Por conseguinte, o primeiro espelho que se oferece ao bebê é o rosto da mãe, assim, ao olhar para a mãe o bebê vê a si mesmo e percebe-se visto por ela. A mãe imprime seu estado de ânimo e seus sentimentos no rosto e no olhar que dirige ao bebê. Pode-se afirmar que as primeiras trocas significativas com o mundo, as primeiras leituras da realidade, se dão por meio do espelhamento do rosto da mãe. É na relação com o outro materno que a criança será inserida na cultura. Nesse momento inicial de sua vida, o bebê ainda não se reconhece como um ser único e diferente do outro e, mesmo que ainda não fale, já está inserido na linguagem, através da fala materna [ou do cuidador], pela nomeação.

Lacan pontuou que o estágio de infans apresenta um exemplar da manifestação da matriz simbólica. É o momento em que “o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de

se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (1949, p. 99). A forma primordial pode ser nomeada por [eu] ideal, originando as identificações secundárias, situando a instância do eu. Em suas palavras,

[...] o ato de inteligência [...], longe de se esgotar [...] logo repercute, na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações. (LACAN, 1949, p.96).

Nas brincadeiras com objetos que fazem parte do seu universo infantil, ao movimentar-se para tocar nos móbiles, ao segurar os mordedores ou outros objetos, aos poucos o bebê começa a perceber fragmentos de seu próprio corpo, as mãos e os pés, ou seja, um corpo despedaçado. Nesse período, o bebê costuma ficar olhando para essas partes do seu corpo, experimentando-as até mesmo com a boca.

Aos poucos, o bebê vai enrijecendo seus movimentos e visualiza o corpo do outro por inteiro. Pela imagem que a criança vê do corpo do outro, ela antecipa a impressão de unidade do seu próprio corpo, embora ainda o veja aos pedaços. O outro materno, por meio do olhar e das palavras, confirma a imagem especular que o bebê tem de si mesmo, atribuindo-lhe significantes. Esse processo estabelece a fundação da imagem do corpo próprio e a constituição do eu. O corpo despedaçado aparecerá nos sonhos sob a forma de membros disjuntos, órgãos que criam asas e se envolvem em perseguições. Para Lacan,

A imagem especular parece ser o limiar do mundo visível, a nos fiarmos na disposição especular apresentada na alucinação e no sonho pela imago do corpo próprio, quer se trate de seus traços individuais, quer de suas faltas de firmeza ou suas projeções objetais, ou ao observarmos o papel do aparelho especular nas aparições do duplo em que se manifestam realidades psíquicas de outro modo heterogêneas. (LACAN, 1949, p. 99)

Quando o bebê é capaz de colocar-se ereto ele pode visualizar-se por completo. Ele já tem capacidade neurológica de compreender a informação, fornecida pelo adulto, de que a imagem que ele vê refletida no espelho é a dele, passando a reconhecer a si próprio como um ser separado de sua mãe. Então, a criança assume sua imagem e se transforma, ou seja, percebe-se como um corpo uno, nomeado por Lacan (ibid., p. 100) de ortopédico, rompendo com a imagem do corpo despedaçado. O autor considera o estádio do espelho como um drama para o sujeito, pois, em suas palavras,

o impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde a imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade

ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (LACAN, 1949, p. 100)

Nas escolas de educação infantil, o espelho é objeto fundamental na organização dos espaços. Desde bebê, a criança pode visualizar a si mesma e ao outro [adultos ou crianças], percebendo-se como semelhante e diferente. Ela imita gestos, expressões faciais, movimentos e escolhe atributos com os quais se identificará. Ao nomear o bebê e mostrar a sua imagem refletida no espelho, o professor ou o cuidador favorece a identificação imaginária. No ambiente da creche, pode-se dizer que existe uma função de maternagem exercida por aqueles que são os responsáveis pelos cuidados da criança, além do professor. Deste modo, as crianças que frequentam a creche entre zero e três anos, além do rosto da mãe, terão outros tantos rostos para se espelharem, permeados por sentimentos e ânimos diversos.

O momento de conclusão do estádio do espelho inaugura para o sujeito a passagem dialética do [eu] especular para o [eu] social, por meio da identificação com a imago do semelhante. O nascimento do eu como imagem completa se dá pela confirmação do Outro. No momento em que ocorre o reconhecimento de sua imagem no espelho, o sujeito é capturado pela imagem e algo se perde.

Assim, finalizando, Lacan pontua que,

esse momento leva todo o saber humano a bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho para o qual qualquer impulso dos instintos será um perigo, ainda que corresponda a uma maturação natural – passando desde então a própria normatização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural, tal como se vê, no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo. (LACAN, 1949, p.101-102)

Após a identificação imaginária que se dá no estádio do espelho, a criança passará por outro processo de identificação. Em seguida, abordarei a identificação que ocorre no complexo de Édipo.

Como foi especificado no início deste capítulo, a segunda parte destina-se a apresentar o conceito de processo de simbolização, norteador desta investigação. No meu entendimento, esse processo é indispensável à compreensão da passagem que se dá do imaginário para o simbólico. Ele está enlaçado com a identificação simbólica que dá origem ao sujeito do inconsciente. Passo, então, à continuação deste capítulo.