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Pommier (1993) defendeu a ideia de que a criança percorre o mesmo percurso que a humanidade percorreu para inventar o sistema de escrita, assim, há um caminho pessoal de construção simbólica [ontogênese] e, outro, que se relaciona com a própria história da humanidade [filogênese]. Para o autor, mesmo que a apropriação da língua seja um fato cultural e individual, a invenção da chave da escrita é resultado de um trabalho solitário, impossível de ser transmitido, relacionado com o percurso individual de cada sujeito. Ele salientou que a técnica aprendida na escola e o domínio do código não são fatores que favorecem a superação “da angústia diante de uma folha em branco” (1993, p.1), pois para traçar as letras o escritor deve atravessar a espessura do inconsciente.

Para o autor (ibid., passim) é possível estudar a gênese da escrita ao observarmos o modo pelo qual a criança se apodera dos signos do alfabeto. Ele ressaltou que a escrita está além da nossa vontade e que ignoramos a proveniência da marca de uma letra. Para ele, a

sacralidade da escrita reside no fato de que, embora a invenção da escrita tenha surgido da razão com a finalidade de servir como um instrumento de comunicação, primeiramente foi necessário falar com os deuses, sendo que, segundo o autor, não sabemos nomear o espaço que atravessamos ao escrever. Os sintomas que nos afetam e os deslizes que cometemos podem advir do recalcamento e a escrita pode ser considerada como o retorno do recalcado.

Segundo o conceito freudiano (FREUD, 1996), o recalcamento é a barra que impede que os conteúdos do inconsciente atravessem e passem para o pré-consciente, uma defesa devida à produção de desprazer. Essa regulação operada pelo recalcamento ocorre sem que o sujeito perceba. O mecanismo de defesa não é infalível e pode ocorrer o vazamento de conteúdos do inconsciente para o pré-consciente, ou consciente, em forma de palavras, imagens ou atos que surgem inesperadamente, sem que tenhamos a consciência dos mesmos: sonhos, afasias, parapraxias, chistes ou sintomas.

Pommier (1993) procurou relacionar a invenção da escrita com o evento histórico que levou ao recalcamento. A invenção do monoteísmo coincide com a invenção da escrita pela humanidade, pois tem um valor equivalente ao recalcamento que ocorre ao final do complexo de Édipo. Para explicar como a humanidade adotou o monoteísmo, o autor relacionou os fatos e acontecimentos do reinado de Akenaton com o do grego Édipo, destacando a coincidência encontrada na estrutura de mitos de várias civilizações, qual seja: o parricídio de um pai pelo próprio filho.

Segundo o mesmo autor (ibid., passim), os rituais egípcios tinham como objetivo o gerenciamento do tempo da vida e da morte, de acordo com uma geografia na qual a organização familiar é dada em tríade e cujo “esoterismo é mascarado pelo culto dos animais sagrados nos quais a alma de um deus encontrava asilo” (ibid., 1993, p. 49). A adoração do animal sagrado pode ser explicada pelo “amor pelo sem forma” (ibid., 1993, p. 49), pois os animais são possuidores de um espaço do qual os homens foram exilados, ou seja, eles regem seus próprios corpos, eles são.

Parafraseando Pommier (ibid., passim), habitamos um corpo que, primeiramente, foi objeto do desejo materno, não somos esse corpo, apenas o temos, e ele é um local de asilo ao qual estamos acostumados, sua aparência nos é dada pelo olhar do outro ou pelo espelho, que nos permite ver-lhe os contornos. Ele ressaltou que é a linguagem que define o local onde habitamos e o nosso habitat é simbólico, ou seja, o significante.

Somos objetivados na língua por nossos pais e, ao falarmos, nossa aparência é levada a um lugar que nos escapa, dissolvendo nossa própria imagem “antes carregada e desejada por uma Outra fala”(POMMIER, 1993, p. 102). Só nos apropriamos da língua ao nos perdermos

como corpo, quando ao falarmos desaparece a nossa aparência. Assim, “um desenho despertará a inquietude do homem face a sua própria figuração”. Nas palavras de Pommier,

No papel branco onde escrevo, eu me vejo emergir. Não sei de onde me vem, na letra que acabo de traçar, o desvio minúsculo, a firmeza do pleno, o nervosismo deste traço vertical que tornam uma escrita inimitável. A singularidade de meu corpo me foi imposta, mas com o recalcamento, esqueci dela. E é agora, em contrapartida, de meu ato de representar que depende a particularidade de minhas letras. E, no entanto, o que mais me é próprio nestas formas escapa a meu poder. (POMMIER, 1993, p. 102)

Segundo o autor (ibid.) os desenhos da criança são as representações de seus sonhos, que serão recalcados. Os sonhos são a encenação do nosso prazer que permanecem ocultos pelo recalcamento e quase sempre são esquecidos. Ele comparou as figuras polimórficas de deuses com cabeças de animais com as entidades que apavoram as crianças ao anoitecer. A criança luta contra o sono e cria amigos imaginários para sentir-se protegida. Na angústia, os monstros são irmãos oníricos dos múltiplos deuses do panteão egípcio e seus antagonistas diurnos são as forças que inventamos para nos proteger - os totens ou amuletos - do mesmo modo que as crianças usam paninhos e ursinhos.

Para os egípcios, a ausência ou presença da luz gerava a angustia do desaparecimento do corpo na escuridão e sua visibilidade dependia da luz do dia, emanada pelo deus-sol. A angústia proveniente do desaparecimento do corpo na escuridão necessitava ser solucionada e, para tanto, criavam imagens para defendê-los. Por conta dessa crença, os egípcios procuravam fixar a presença divina nas estátuas, pois delas dependeria a visibilidade do corpo.

Pommier (ibid., 53) salientou que a primeira fonte de angústia do ser humano é o recalcamento da imagem. Esquecemos da singularidade do nosso corpo, que nos foi imposta por meio do recalque, e a representação desse corpo ressurge, atravessando o espaço do recalcamento, em forma de letras, que testemunham a existência desse corpo. É possível considerar que existimos no texto que escrevemos e o recalcado é o singular de nós mesmos.

Para o autor (ibid., p.103), o recalcamento é o “vínculo temporal entre o instante de se começar a dizer e o de ter dito” e é nesse período que nos escapamos e onde as letras procuram se instalar. Ele considerou que a escrita é do domínio do sagrado, pois toda marca gráfica produzida pelo homem é um representante de sua imagem que foi recalcada e o lugar de origem da letra é o recalcamento. Ao pensarmos que o recalcamento ocasiona a perda da representação do nosso corpo e que ao vermos nossa imagem podemos nos apropriar novamente dela, podemos concluir que a imagem é investida do poder de fazer com que existamos.

Pommier (1993, passim) retomou estudos fonológicos para caracterizar a diferença entre vogais e consoantes. Ele ressalta que as consoantes não são pronunciadas isoladamente, necessitando das vogais para se articularem, contrariamente, as vogais podem ser isoladas. Ele comparou as vogais com a expressão de um gozo, limitado pelas consoantes. Para ele, a vogal “é gozo sonoro, da mesma maneira que uma imagem no ponto auge do sonho é gozo visual (ou seja, realização do desejo do sonho)” (ibid., p. 124). Ele ressaltou, ainda, que “o ato de falar comporta uma certa modulação de prazer e de desprazer” (ibid., p. 123) e a constituição das palavras e sua utilização nas frases constituem um aparelho de gozo.

Segundo o autor, a Psicanálise lacaniana distingue uma “instância da letra no inconsciente” (ibid., p. 4) e a letra pode ser decifrada na fala. Do mesmo modo, na abordagem freudiana a imagem do sonho pode ser lida como um rebus, como letras. Nas palavras do autor, “o recalque é a condição de nossa liberdade” (ibid., p. 313). Para ele, aquilo que retorna no sonho e que nos traz a memória do nosso corpo antes do recalque pode ser nomeado por “letra”. Nesse sentido, para Pommier (ibid., passim), a instância da letra no inconsciente testemunha um recalcamento cuja lembrança foi esvanecida, ou seja, o gozo do corpo.

Os primeiros desenhos da criança apresentam uma repetição figurativa que continuam sendo traçadas no percurso de sua vida e, de acordo com Pommier (ibid., p. 200), essas figuras podem representar aquilo que se pode chamar de “corpo psíquico” [grifo do autor]. Nas palavras do autor,

esboçar uma representação desse corpo psíquico coloca em cena uma presença que não existiu jamais a não ser graças ao desejo. Desenhar é um ato de fé. Executar um graffiti, por mais modesto que ele seja, não visa, a princípio, comunicar uma mensagem, mas exprimir apenas a esperança de que o corpo exista a despeito do recalque. (POMMIER, 1993, p. 200)

Pommier (1993) enfatizou que a instância da letra no inconsciente pode ser ouvida naquilo que falamos através do lapso, pois a fala exprime uma significação qualquer e a cada vez que falamos recalcamos nosso gozo. Na escrita, aquilo que pode ser lido em uma frase composta por letras é suscetível da ocorrência de um lapso, o que pode ser lido está ligado, está recalcado. Assim, “o ato de ler ou de escrever depende do complexo de castração” (POMMIER, 1993, p. 294). Para traçar as letras o escritor deve atravessar a espessura do inconsciente, ou seja, o caminho para a escrita não está relacionado apenas com a aprendizagem da técnica e apropriação do código, mas com o recalcamento da própria

imagem. Para o autor (1993), o traço da letra sobre uma superfície pode encontrar-se na origem de uma angústia, por deter o mesmo valor dos sonhos.

Ao aprender a falar, o gozo de sons isolados é apagado e o valor corporal de cada letra será recalcado atrás do sentido das palavras. A letra resulta de um recalque, é do sujeito, é um rébus, enquanto o significante é do Outro. A castração efetuada pelo Outro [pai] e o nome herdado, permitem que a criança se aproprie da língua e se torne sujeito de suas frases.

Segundo o mesmo autor, os primeiros desenhos apresentam traçados repetitivos que são comandados pela figuração do corpo psíquico. As primeiras letras serão grafadas para serem lidas pelo outro que está próximo, do outro lado do papel, assim, a criança escreve de modo que os caracteres possam ser “decifrados por um leitor situado antes do escrito”(ibid. p. 342), ou seja, a letra será traçada para o Outro.

Neste momento, procuro relacionar essa ideia de Pommier com os informantes desta investigação. As atividades escritas de crianças na idade de três anos apresentam imagens que não correspondem ao padrão convencional. As formas semelhantes a bolas, riscos ou borrões, são traços comandados pelo corpo pulsional.

Nas primeiras representações feitas pelas crianças não surgem figuras ameaçadoras, pois o papel é a ilha de salvação desse corpo. Quando as letras surgem, há uma espécie de desmame [separação] e os desenhos passam a apresentar formas de casas, árvores ou animais. A criança busca a salvação da angústia em um pai que salva e, ao mesmo tempo, castra. Essa contradição surgirá nas representações em que aparecem os totens paternos que ela inventará para se proteger. Segundo Pommier (ibid., p. 347), na resolução do complexo de Édipo ocorre a segunda castração, o assassinato fantasmático do pai. As representações serão acompanhadas dos vilões e heróis do mal, com os quais a criança pode se identificar, e apenas o amor ao pai a impedirá de vê-los vencer.

Tendo em vista as reflexões de Pommier, é possível depreender que, para se apropriar do sistema alfabético de escrita, a criança atravessa um caminho que se relaciona com a história da humanidade, embora seja, ao mesmo tempo, um percurso pessoal de construção simbólica. É por meio do recalcamento que a instância da letra se situa no inconsciente e, para escrever, é necessário que a criança recalque seu corpo pulsional. Suas primeiras representações trarão à superfície do papel um combate entre as forças diurnas e noturnas, ou seja, a criança representará no papel imagens que possam garantir a salvação desse corpo.

Ao surgirem as primeiras letras, elas serão apenas imagens que transitam no corpo fálico, guiado pela pulsão, as letras não possuem valor e são apenas desenhos. Para que a

criança deixe de grafar apenas imagens e passe à simbolização é necessário que ela atravesse o espaço da fobia e se perca como corpo pulsional, o que ocorrerá ao término da resolução do complexo de Édipo, quando a criança passa a internalizar o pai como símbolo, como ideal e não mais como um rival.

Posto isto, no próximo segmento passarei às reflexões de Lemos. Em seus trabalhos, a autora defende que a interação é condição fundamental para a aquisição da linguagem.