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O lugar do professor na relação com a criança

1.4 A TRANSFORMAÇÃO PELO FUNCIONAMENTO SIMBÓLICO

1.4.2 O lugar do professor na relação com a criança

No meu entendimento, o professor ocupa um papel privilegiado na relação com a criança. Sua função é a de intervir no processo de aprendizagem com a finalidade de provocar uma mudança de posição por parte da criança. Essa mudança de posição a que me refiro, pauta-se na relação sujeito-objeto e refletir-se-á na sua produção escrita. Segundo Lacan (1963, p.33), “para que uma relação assuma seu valor simbólico é preciso haver a mediação de um terceiro personagem que realize, em relação ao sujeito, o elemento transcendente graças ao qual sua relação com o objeto pode ser sustentada a certa distância”. Na escola, o professor é o terceiro personagem que poderá favorecer a mediação entre o sujeito e a linguagem, de maneira que a relação sujeito-objeto possa ser refeita, permitindo que a criança ressignifique.

Riolfi (2002), ao tratar de um acontecimento vivenciado durante o curso de uma disciplina ministrada por ela em uma universidade pública, conceitua a ressignificação da seguinte maneira:

Significantes, os carregamos: em nosso corpo, em nossa história, em nossos preconceitos. Aliviarmo-nos do peso que eventualmente nos causam exige

que os ressignifiquemos, ou seja, que os isolemos e os coloquemos numa nova discursividade.(RIOLFI, 2002, p.37)

Considero que a intervenção do professor pode levar a criança a passar da representação da coisa (desenho) à representação da palavra (escrita), ou seja, da imagem para o símbolo. Ressalto que na escrita inicial de crianças pequenas o signo (letra) possui o valor de imagem, passando a ter valor de símbolo a partir do momento em que elas compreendem o valor das letras no sistema de escrita alfabético12.

Para explicar a passagem do imaginário para o simbólico, Lacan (1954) utiliza, como exemplo, o diálogo entre Sócrates e o escravo. Por meio da figura de um quadrado traçado na areia, Sócrates procura despertar, no escravo, o conhecimento. Ele opera uma passagem do imaginário para o simbólico fornecendo ao escravo uma demonstração que o leva a perceber a solução para o problema.

Tomando do exemplo fornecido por Lacan, considero que ao intervir e atribuir sentido ao que a criança fala ou escreve o professor pode levar a criança a rever sua relação com a linguagem. Assim sendo, a criança pode passar a ver o que não via, por exemplo, as letras que compõem seu nome, passando da representação da coisa (desenho) à representação da palavra (escrita), mesmo que essa escrita ainda não atenda aos padrões convencionais.

Durante a reelaboração do meu projeto de pesquisa, ao decidir pela atividade e planejar como se daria a coleta de dados, a minha primeira hipótese foi a de que a tarefa seria simples, sem complexidade. Ou seja, eu solicitaria para que a criança escrevesse seu nome e, em seguida, pediria para que interpretasse sua escrita. Em minha imaginação, a criança faria um rabisco qualquer e daria seu nome ao que grafou, assim como ocorre, por exemplo, quando ela desenha uma bola e a nomeia por jacaré. Pela experiência na docência com essa faixa etária, acreditava que sabia exatamente o que a criança faria.

Na escola, habitualmente a criança faz produções que não estão escritas do modo convencional. Depois de passado algum tempo do ato da escrita, é solicitado que a criança fale o que escreveu/desenhou, o que pode fazer com que ela fale qualquer coisa com a finalidade de atender ao desejo do professor ou pode ocorrer dela repetir a fala do colega. Em uma roda de crianças pequenas, quando é perguntado algo para no grupo, a primeira resposta dada é repetida pelos colegas.

Por outro lado, as atividades podem ter a finalidade de preencher um tempo vazio da rotina, sem um objetivo específico, o que fará com que seja arquivada sem maiores

12 É importante deixar claro que este trabalho não possui a intenção de incentivar a alfabetização na educação

observações. Com crianças pequenas, solicita-se para que ela fale sobre o que grafou e o professor escreve, ao lado da figura, a nomeação dada pela criança. Ou seja, a escrita inicial não possui um objetivo pedagógico claro e específico que leve à investigação do processo de aquisição da linguagem.

Durante a primeira gravação, pelas diferentes reações que as crianças demonstravam, pude perceber que a tarefa não seria tão simples quanto supunha, sendo que minha hipótese foi invalidada. No decorrer das gravações, na medida em que as crianças interpretavam suas escritas dos modos mais inusitados, foi necessário rever o saber a respeito da escrita infantil que eu supunha possuir e o papel que exerceria na realização da atividade. A minha experiência docente entrou em choque com as possibilidades de investigação que se abriam diante da gravação do ato da escrita e da interpretação realizada pela criança. Ou seja, apresentou-se um conflito entre a pesquisadora e a professora. Esses dois papéis deveriam estar enlaçados para que pudesse obter um melhor material para análise. Era necessário lidar com a própria falta em relação ao conhecimento que supunha possuir e com o outro, no caso a criança.

Tendo em vista a reação apresentada pelas crianças diante da solicitação da tarefa, necessitei rever a minha atuação durante a realização da gravação e optei por uma postura mais ativa e instigante, que levasse a criança a escrever e interpretar seu escrito.

A postura ativa a qual me refiro, constituiu-se pela insistência na realização da atividade e pelo diálogo que se travou, entre professor e aluno. Embora o enunciado “Escreva seu nome. O que você escreveu” tenha sido a base para a realização da tarefa, não foi possível manter a proposta da atividade limitada a ele, de modo que houve necessidade de ampliá-lo por meio de perguntas feitas a partir daquilo que a criança falava ou grafava. As perguntas possuíam a intenção de levá-la a interpretar o que havia grafado, mas chegaram, por vezes, a causar inquietação ou irritação em alguns informantes.

Durante as gravações houve, por vezes, surpresas com as reações apresentadas pelas crianças diante da solicitação de escrever seus nomes. Essas reações variaram desde a completa falta de envolvimento com a atividade até a demonstração de insatisfação e irritação por parte de algumas crianças. Alguns informantes chegaram a recusar-se a escrever o seu nome, fato que chamou a atenção. Minha hipótese inicial era a de que o sentido do enunciado não estava sendo compreendido, mas essa ideia foi refutada pelo fato de que ao serem questionadas a respeito de como se chamavam terem respondido falando seu nome próprio.

Pude perceber que algumas crianças não se mobilizavam diante da atividade proposta. Alguns informantes sentavam-se, realizavam a atividade e nada falavam a respeito dessa

produção. Algumas hipóteses foram levantadas para interpretar esse silêncio: a inibição diante da câmera; a falta de vínculo das crianças mais novas com a professora; a não compreensão do enunciado e até mesmo a falta de fluência verbal por parte de algumas crianças. Pude observar que algumas crianças apresentavam reações de incômodo e irritação diante da minha insistência na realização da atividade.

Diante das observações realizadas durante o processo de gravação e, depois, na revisão das mesmas para realizar as transcrições, posso comparar a minha atitude enquanto professora, na relação direta com a criança, de duas maneiras: por vezes adotei uma atitude que pode ser comparada com a do pequeno outro, de maternagem, incentivando a criança a prosseguir na escrita, elogiando os traçados que fazia, conversando e embalando as divagações criativas, quando se propunham a me contar fatos corriqueiros da vida familiar. Entretanto, em outros momentos, necessitei adotar uma postura mais firme e impositiva, levando a criança a perceber que não era aquilo que eu queria que fizesse, interditando suas pulsões e o fluxo de associações. Considerando que, por vezes, foi necessário adotar uma atitude insistente, incômoda e provocadora, posso compará-la com uma “chatice” do professor, atrevo-me a estabelecer uma relação na qual a função do professor pode ser tomada como sendo representante do grande Outro. Em outras palavras, a aprendizagem nem sempre ocorre de maneira prazerosa e a atitude daquele que se encontra na posição de inserir a criança na sociedade regrada e na cultura, por vezes, pode causar desprazer.

Tendo delineado a perspectiva de Lemos a respeito da aquisição da escrita e quanto ao papel do Outro, passo ao próximo segmento, no qual abordarei as reflexões de Bosco (1999), que teve como objeto de estudo a produção inicial da escrita do nome próprio por parte de crianças pequenas.