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II. Revisão da literatura

1. Do Tempo

1.3. Do tempo livre ao lazer

Muitas vezes, os termos ou expressões lazer e tempo livre são utilizados com o mesmo sentido, o que pode não ser correto. O tempo livre é uma condição necessária para a existência do lazer mas não suficiente, pois tempo livre requer liberdade para gerir e organizar atividades que contribuam para a satisfação de necessidades pessoais e que sejam realizadas com prazer para o indivíduo que as pratica (Tojeira, 1999; Mota, 1997; Shivers, 1985).

A ideia de tempo livre está, assim, inelutavelmente associada ao conceito lazer, sendo este último mais recente, muito embora estes dois conceitos possam assumir valores diferentes conforme os países e as culturas e a ligação que se estabelece entre ambos. Todo o ser humano tem o desejo de utilizar o seu tempo livre de forma a divergir do seu trabalho de rotina. Para muitas pessoas, o tempo livre torna-se o interesse central das suas vidas (Homem, 2006).

Mesmo Marx, embora refletindo fundamentalmente sobre o trabalho, era partidário de um aumento do tempo livre de forma a permitir que o Homem, para além de descansar desenvolvesse plenamente todas as suas capacidades (Rovira & Trilla, 1996).

Assim, o tempo livre é entendido por Marx como o mais claro expoente do nível do progresso social de uma nação, levando a uma equilibrada distribuição de riqueza e também da necessidade de trabalho (Peñalba, 2001).

As sucessivas revoluções tecnológicas, dos últimos anos, trouxeram uma nova forma de ver o mundo, ou seja, vivendo agora numa sociedade pós- industrial, em que o trabalho sofreu alterações, ao nível da quantidade e da qualidade, onde a vida de qualidade não deve ser a de maior poder aquisitivo, mas aquela que oferece a possibilidade de viver mais, de poder dedicar mais tempo à própria vida.

À medida que o trabalho evoluiu de uma obrigação de escravos e pobres para um direito de cidadãos, o ócio, que antes tinha sobre si uma carga de algo reprovável e pecaminoso, foi sendo objeto de revalorização progressiva.

O nosso tempo – diz, entre outros, Fernando Savater – é o tempo da revolução do ócio, convertido em ideal e destino para a maioria das pessoas (Savater, 2005).

A descoberta do tempo livre é ainda relativamente recente e tem acompanhado o desenvolvimento e alargamento da sociedade industrial e pós- industrial, de tal forma que hoje a ocupação dos tempos livres é uma preocupação em qualquer espaço educativo. Segundo esta nova forma de organização social o Homem é obrigado a desempenhar atividades que lhe são... “necessárias ou socialmente impostas” (Herrero, 1995). Contudo, quando pode dispor de uma parcela de tempo para o qual não tem qualquer obrigação a cumprir, preenche-a de acordo com a sua vontade e gosto pessoais.

O tempo livre surge, neste sentido, muitas vezes associado ao tempo de lazer, que é definido por Dumazedier (1974) como um conjunto de ocupações às quais o indivíduo se pode dedicar livremente, para repouso, para divertimento, ou para desenvolver a sua informação ou a sua formação desinteressada, a sua participação social voluntária ou a sua livre capacidade criadora, depois de se ter libertado das suas obrigações profissionais, familiares e sociais.

Nesta perspetiva, Edgar Morin et al. (1998) afirmam que os novos valores que são exprimidos no tempo livre, como tempo de reflexão, de vida interior, de trocas e de convivência, fazem deste um tempo social forte, um fator de mudança que age sobre o conjunto do social, um tempo de enriquecimento pessoal que vai ter uma influência no tempo do trabalho.

Nos últimos 150 anos o tempo livre nasceu, aumentou e valorizou-se. Encontra-se em processo de expansão. É uma necessidade que cada vez mais se impõe, sobretudo entre as camadas juvenis (Dumazedier, 1962).

Nesta perspetiva, o lazer é, efetivamente, uma necessidade do Homem. De uma forma ou de outra, a literatura enfatiza a existência do lazer como uma evidência intimamente associada ao ser humano e uma das necessidades básicas fundamentais.

O conceito mais aceite a respeito do lazer é do sociólogo francês Joffre Dumazedier (1971; 1974) que o caracteriza como: um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver a sua informação ou formação desinteressada, a sua participação social voluntária ou

a sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. Definiu-o, também, como aquela parcela de tempo liberta do trabalho produtivo, salientando que é basicamente um tempo "social", propício à criação de novas relações sociais e de novos valores. Elias (1992) confere ao lazer, ainda, um significado específico e uma existência autónoma. Ou seja, lazer define-se pelo tipo de atividades realizadas mediante o tempo social em que se efetua e o envolvimento pessoal do sujeito (Pacheco & Araújo, 2009; Morin, et al., 1998; Rovira & Trilla, 1996).

Fica, portanto clara a ideia de que tempo livre é o tempo de não trabalho e lazer é o tempo, dentro do tempo livre, que o indivíduo dedica a atividades por ele escolhidas livremente e que lhe proporcionem prazer.

Nesta perspetiva, Gómez (1998) refere que só poderemos compreender estes dois conceitos sob as seguintes perspetivas: (i) a primeira contempla o lazer e o tempo livre como uma dimensão básica da vida quotidiana das pessoas, tendo em consideração os hábitos e os comportamentos socioculturais de uma comunidade; (ii) a segunda considera o lazer como um fator de desenvolvimento integral do ser humano, promovendo experiências com finalidades formativas e também terapêuticas; (iii) finalmente, a terceira situa esta análise, no campo dos problemas sociais, como algo que deve ser garantido, pelas políticas educativas, com o fim de evitar a passividade e a alienação das pessoas, e por vezes evitar condutas antissociais.

Segundo Peñalba (2001), no chamado tempo do não trabalho existem dois tempos: um que é dedicado ao cumprimento das obrigações cívicas, familiares, fisiológicas e o tempo restante que corresponde ao tempo liberto, tempo de ócio.

Um tempo de ócio, assim, entendido revela, segundo Dumazedier (2000), aspetos práticos provenientes da ação resultante dos três d(s) – diversão, descanso e desenvolvimento, os quais induzem uma participação criativa, recreativa e comprometida com os processos formativos do indivíduo. A componente lúdica do ócio está desta forma relacionada com a diversão, recreação distração e o jogo (Lopes, 2008).

Com base nesta classificação, Peñalba (2001) refere, por um lado, um nível superior de ócio, associado à formação, entretenimento e descanso e, por outro lado, um nível inferior ligado ao aborrecimento e ao consumismo. Dentro

desta perspetiva há a considerar as seguintes formas de ócio: (i) ócio formação – ligado às práticas de atividade desportivas, culturais, artísticas, contemplação e à educação permanente; (ii) ócio entretenimento - associado a um modelo simples de distração com atividades espontâneas; (iii) ócio descanso – tempo de recuperação de forças físicas e psíquicas; (iv) aborrecimento e ociosidade – mau aproveitamento do tempo livre, apatia, inatividade, frustração e impotência; (v) consumo/ociosidade – delegar o tempo livre à indústria do lazer, preparando assim uma ocupação despersonalizada do tempo.

Edgar Morin (1998) e Ander-Egg (2001) definem tempo livre, como um tempo de participação em projetos de libertação pessoal, é um tempo criativo, que nos permite lutar contra as imprecisões causadas pela vida em sociedade, é um tempo para o lazer, como uma reação ao tempo de trabalho, é um tempo atemporal, tempo de comunicação interpessoal, grupal e com o ambiente físico, é um tempo de compromisso social que envolve a participação voluntária em atividades de integração social e cultural.

Neste sentido, o conceito de lazer não nega o conceito de tempo livre, simplesmente associa-lhe a perspetiva do prazer. Segundo Aristóteles, o lazer é o objetivo natural de todas as pessoas que pensam isto porque está associado com a atividade que dá mais prazer – contemplação. Lazer fornece tempo para pensar. Assim, pensar e lazer estão interligados, uma vez que nada pode ter maior valor para um pensador que pensar, as conclusões a que Aristóteles chegou são lógicas. De certa maneira, a teoria de lazer como prazer ainda é hoje defendida. No entanto, lazer não pode ser definido apenas como prazer. O ato contemplativo, que Aristóteles pensava que poderia ocorrer apenas durante o lazer, é uma atividade específica que alguns dizem que pode ocorrer em qualquer altura. Cada vez mais, pensar é uma atividade e não um período de tempo. Desta forma, uma atividade particular não deve ser equacionada com o que é claramente um período de tempo (Shivers, 1997).

Pelas perspetivas expostas neste ponto, parece-nos que o tempo livre é verdadeiramente um tempo de ócio, que poderá ter incluído diferentes formas de o indivíduo se dedicar, expressar ou desfrutar, podendo-se confundir o nível superior de ócio com o lazer; contudo, para Edgar Morin (2003), o tempo livre só tem sentido quando a pessoa se forma interiormente, através da libertação pessoal ou através do prazer de criar algo.

Não obstante, o conceito de lazer ainda se encontrar bastante difuso, permitindo conceptualizações que, apresentadas por diferentes autores, ainda não conseguem estabelecer um consenso sobre a questão, sobretudo no que diz respeito aos seus objetivos. É possível afirmar, que este facto se deve, fundamentalmente, às análises subjetivas com que este tema vem sendo tratado, causando uma amálgama de definições que dificultam o entendimento sobre lazer.

Por sua vez, para Glyptis (1992), o lazer é definido a partir de três pressupostos: (i) relacionando o tempo, ou seja, o tempo livre do sujeito após o trabalho ou após as outras necessidades básicas do indivíduo terem sido alcançadas; (ii) como a forma particular de atividade que pode fornecer descanso, recuperação, diversão, excitação pessoal e satisfação quer física quer mental. Defende-se, aqui, que tempo livre é aquele que é totalmente liberto das atividades profissionais, dos afazeres domésticos e das atividades sociopolíticas e religiosas e só o tempo livre se pode transformar em tempo de lazer; (iii) contém os elementos constitutivos dos pontos anteriores, mas inclui uma componente subjetiva que não pode ser descurada.

Neste sentido, Cuenca (1995) aponta as seguintes dimensões do lazer: (i) componente lúdica, entendida como diversão, distração e jogo, num necessário equilíbrio entre o físico e o psíquico; (ii) atividade desenvolvida dentro de um contexto social e ecológico; (iii) desenvolvimento criativo, possibilitando a prática de ações motivadoras e gratificante; (iv) construção de espaços recreativos de carácter social, a partir de experiências coletivas; (v) carácter solidário de lazer, que promove a necessidade humana de comunicar e de partilhar experiências.

Deste modo, o tempo de lazer é considerado como um tempo próprio na vida de cada sujeito, conferindo-lhe a capacidade de crescimento e desenvolvimento como um todo (Sharma, 1994). Este é determinado pelo tempo que, de facto, cada indivíduo dispõe para si próprio após as solicitações e os compromissos.

O conceito de lazer está, essencialmente, baseado em fatores relativos a experiências individuais, tais como atitudes, valores, predisposições físicas, características emocionais e atividades de grupo (Umbelino, 1999). O lazer, para

Jorge Mota (1997, 2001) deriva, assim, do significado da atividade para o sujeito e não da atividade em si própria.

É fundamental que o tempo livre seja ocupado e ganhe sentido, porque quando este tempo não se relaciona com coisa nenhuma, pode tornar-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo (Pereira & Neto, 1999; Silva, 1994).Por isso, Rui Garcia (2000) quando refere que o tempo livre é um valor do nosso tempo, diz também claramente, que é um direito de todos podermos disfrutá-lo da melhor forma possível numa rotura com aquilo que se passava há algumas décadas onde apenas uma pequena franja social, a elite económica, tinha a real possibilidade de o viver com dignidade e qualidade.

Apesar dos neoliberais e dos economistas insistirem em combater a crise económica com a solução de nos forçarem a cada vez mais horas e anos de trabalho, a restringirmos o usufruto do ócio criativo, este mesmo assim, afirma- se como fiador de qualidade e dignidade da vida e como uma marca inapagável de uma sociedade de pendor humanista e cultural. De resto, entre os mandamentos que Moisés anunciou como sendo obra de Deus, o terceiro (Guardarás os dias santificados…) tem um traço profundamente hedonista nas relações que estabelece com o trabalho, com o ócio e com o sentido da vida (Savater, 2010). Não contém apenas imposições, fardos e ameaças de castigos; subentende que se trabalhe para viver decentemente e ordena que não se viva exclusivamente para trabalhar, mas também para causas nobres, para os outros e para o próprio indivíduo enquanto ser lúdico que necessita de descanso e recreação, para ser mais humano e para aproveitar as aptidões de fruição de que é dotado. É por isso, como afirma Fernando Savater, (2000) o mandamento do lazer, da diversão, da prática desportiva e de tudo quanto se liga à fruição dos domínios culturais contribuintes para a concretização e exaltação do sentido da vida.

Sendo o Homem produto e produtor de cultura e o tempo livre um valor fundamental do nosso tempo, é fundamental que este seja um momento e espaço de formação e criação. Ao nascer, o animal humano é prematuro, cujas potencialidades, ainda que geneticamente programadas, só se revelarão num ambiente material, afetivo e cultural adequado, e isto à custa de um esforço contínuo. Compete-nos criar, assim, as condições favoráveis e estimular este

esforço para que cada Homem que traga em si o génio de Mozart ou de Rafael possa desenvolvê-lo plenamente, como Marx referia (Pelt, 1991).

De facto, o Homem tem necessidade de espaços e momentos para desenvolver as suas múltiplas virtudes, onde a liberdade se converte em aptidão, lentamente amadurecida, para recodificar valores, retroceder, deixar de se situar relativamente a qualquer sistema.

O Homem deve e tem que nascer para o humano, mas só chega a sê-lo plenamente quando os demais o contagiam com a sua humanidade e com a cumplicidade de todos. A condição humana é, assim, em parte, espontaneidade natural, mas também deliberação artificial, de facto chegar a ser humano completamente é uma arte (Savater, 1997).

Neste sentido, o Homem é o ser que se constrói no tempo e no espaço, pelo que não nos é difícil aceitá-lo como um ser situado temporal e topograficamente. Ou seja, realiza-se num dado tempo, o seu e não qualquer outro. Topográfico, porque se concretiza num lugar próprio, que lhe imprime determinadas características, mesmo morfológicas (Garcia, 2004).

Na opinião de Herrero (1995), a redescoberta do tempo livre, relativamente recente, poderá ser um dos espaços onde o Homem se encontra, porque é, também, um tempo fundamentalmente educativo.

Neste sentido, o Homem tem de satisfazer as suas necessidades biológicas sociais, culturais e espirituais, para isso é obrigado a inter-relacionar- se de forma produtiva com a sociedade e a natureza. Esta inter-relação pode garantir a sua integração e continuidade como pessoa na sociedade.

Edgar Morin et al. (1998) referem que o tempo livre agora disponível possibilitou ao Homem o reencontro com os seus próprios ritmos, sacrificados que foram ao tempo mecânico, programado, cronometrado, acelerado, breve, enfim submetido à lógica da máquina infernal. Este novo tempo é, assim, também, um tempo de reflexão, de expressão de uma vida interior e, acima de tudo, um reencontro com a criatividade.