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II. Revisão da literatura

1. Do Tempo

1.2. Do tempo livre, o ser tempo

O tempo livre tem sido propalado desde os tempos mais recuados da História. Foi, inicialmente, definido como o tempo fora do trabalho e das obrigações ou atividades nas quais o sujeito se envolve durante o tempo discricionário, fornecendo tempo e espaço para relaxamento e recuperação do trabalho ou para o seu próprio usufruto (Shivers, 1997).

Desta forma, verifica-se que é difícil explicar a noção de tempo livre em si mesma sem articular com outras noções temporais, como seja o tempo de trabalho, o tempo de ócio ou o tempo de lazer (Lopes, 2008). Existe, de facto, alguma dificuldade em definir com exatidão os conceitos de tempo livre, porque as opiniões são diversas e por vezes contraditórias o que tem tornado mais difícil a tarefa dos investigadores interessados nesta área (Rovira & Trilla, 1996).

Assim, o significado de tempo livre (tempo – duração limitada e livre – desimpedido) parece, de facto, traduzir o espaço desimpedido do dia, que pode ser utilizado subjetivamente, ficando portanto clara a ideia de que tempo livre é o tempo de não trabalho.

A descoberta de múltiplos traços da existência de grupos humanos mostra que as atividades desenvolvidas no espaço de tempo livre sempre constituíram uma parte integrante da vida dos homens. A satisfação das necessidades elementares e as práticas religiosas formavam uma unidade coerente, tornando- se difícil separar o trabalho, a religião e o divertimento (Crespo, 1987).

Neste sentido, os jogos e as danças eram cerimónias ricas de significação religiosa, executadas com respeito pelas tradições e cumprindo com as exigências rituais, num esforço de comunicação com os Deuses. Os movimentos do corpo exprimiam os sentimentos mais profundos e, ao mesmo tempo, constituíam um meio privilegiado de apresentar as novas gerações à história da comunidade (Crespo, 1987).

Desde as civilizações da Mesopotânia e Egipto, até à cultura da Grécia Clássica, condenou-se o trabalho e dignificou-se o ócio (Redon, 1998). Em todas

as sociedades existiu o tempo livre, embora com sentidos diferentes. Os conceitos de ócio e tempo livre evoluíram ao longo da história.

Assim, para os gregos o ócio era a atividade dos homens livres, oposto ao trabalho, exclusivo dos escravos que, pela sua quantidade, realizavam todas as atividades necessárias à sobrevivência dos ditos homens livres (Rovira & Trilla, 1996).

Em Aristóteles, o Homem só é verdadeiramente Homem quando livre de todos os tipos de constrangimentos exteriores, dando a esta condição a designação de skolê. Normalmente, este termo é traduzido por lazer que significa um tempo livre cuja atividade contém em si mesma o seu próprio fim. Para o filósofo grego, skolê é o tempo da vida dedicado à formação da essência de uma ciência, ou seja, a racionalidade, sendo esta, na sua opinião, o que de melhor há no Homem (Graft, 1997).

Aristóteles defendia ainda que a contemplação, a reflexão intelectual e a música eram atividades a que qualquer Homem livre deveria aspirar pois não via nelas qualquer fim utilitário, servindo apenas para formar a mente. Nesta perspetiva a educação grega é fundamentalmente uma educação para o ócio e para a virtude (Rovina e Trilla, 1996). Este termo, virtude, surge do vocábulo grego arete, cujo significado é a excelência ou a busca da excelência. Em contrapartida, Sócrates defendia que a virtude não era mais do que cada Homem procurar em si próprio o que é enquanto Homem, tomando consciência daquilo que de facto é (Graf, 1997).

O ócio, na sociedade romana assume um significado diferente relativamente ao dos gregos. Para os romanos Otium (ócio) é um tempo de descanso e divertimento do espírito, necessário para fundamentar um regresso mais equilibrado ao “negotium” (trabalho). Neste sentido, o ócio tem por finalidade o trabalho, servindo como recuperador físico e espiritual. Em Roma, o estado tinha um conceito instrumental de ócio, era ele que o controlava e para além de o utilizar como recuperação para o trabalho, fazia-o, também, como meio de controlo político. Organizava festas, mantendo o povo em atividades coletivas de ócio como objetivo de o manter dominado e conformado (Rovira & Trilla, 1996).

Os romanos contribuem, assim, para a história dos tempos livres com quatro instituições originais: (i) o circo; (ii) os combates de gladiadores; (iii) a

pantomima e (iv) as termas, deixando para épocas posteriores a expressão mens

sana in corpore sano (Hourdin, 1970).

Com o despontar do cristianismo, no seio do império romano, o conceito de ócio não sofre grandes alterações, continuando como forma de recuperação para o trabalho, passa a ser também um tempo de reflexão e contemplação de Deus, que visa a conquista da salvação.

Na moral judaico-cristã, o trabalho passou a ser visto como um castigo de Deus, por isso os cristãos teriam que se resignar e cumpri-lo com muita paciência e humildade. Esta nova condição influencia a forma de encarar o ócio no mundo ocidental. As atividades de ócio passaram a ser menosprezadas e condenadas socialmente, sendo o trabalho identificado como valor positivo e dignificante para o Homem (Redon, 1998). Todo o ser humano, deveria consagrar a maior parte do seu tempo aos trabalhos quotidianos, não se deixando envolver pelos prazeres e vícios do passado (Crespo, 1987).

Como se verifica, a conceção grega do ócio, como atividade contemplativa, foi desaparecendo ao longo da História e, no séc. XVII, encontramos plenamente formada uma conceção quase oposta, pois deixa-se de contemplar a ordem harmónica e eterna do universo, a natureza e a vida, para ver o trabalho como a sua expressão máxima na vida do Homem (Rovira & Trilla, 1996).

Durante a Idade Média e Renascimento as atividades dominantes eram a agricultura e o artesanato, onde os indivíduos se organizavam em grémios, sendo controlados pelo sol e pela Igreja. No inverno, o tempo de ócio era maior que o tempo de trabalho, e no verão sucedia o inverso. A Igreja por sua vez encarregava-se de organizar e determinar as festas religiosas. Nos dias em que não havia festa, o ócio era o prolongamento do trabalho, pois as atividades eram desenvolvidas em conjunto com os colegas de trabalho nas tabernas ou em jogos ao ar livre. Contudo, os indivíduos das classes altas, até pelo menos à Revolução Francesa, ocupavam os seus tempos livres com atividades de puro divertimento e manifestações de ostentação de luxo e de riqueza (Peñalba, 2001).

Com esta nova forma de entender a relação do Homem com o mundo surgem novos valores éticos e religiosos que consideram o trabalho como uma virtude suprema e o ócio como um vício indesejável (Rovira & Trilla,1996). Em

consequência destas ideias, o ritmo de trabalho dos indivíduos torna-se cada vez mais duro. A classe burguesa dava o exemplo de trabalho e dedicava as suas horas de ócio à formação intelectual, enquanto a aristocracia continuava a usufruir do seu ócio ostentatório. Segundo Peñalba (2001), com a Revolução Francesa, a Igreja vai perdendo influência na regulação do tempo, lançando os alicerces para o desabrochar da sociedade capitalista e com ela as conceções modernas de trabalho, tempo livre e ócio.

Contudo, o tempo livre ou, mais propriamente, o tempo fora dos constrangimentos do trabalho, é um terreno ainda de lutas e conflitos, contribuindo para a origem de certas modificações das estruturas sociais, de novas normas, de novas regras e de novas relações sociais. Suscita, igualmente, novos valores que contribuem para orientar e sustentar as aspirações e as escolhas dos indivíduos e dos grupos sociais, a propósito da utilização do tempo, influenciando, assim, a mudança social. Com propriedade, não podemos analisar este período como um tempo de lazer (Gomes, 1992).

De facto, o sentido de tempo livre está intimamente relacionado com a organização das sociedades, pois nas sociedades primitivas existem padrões diversos que se afastam daqueles típicos da nossa sociedade. Assim, para as sociedades primitivas não se coloca com tanta ênfase a dicotomia trabalho/recreação e mesmo o tempo sério/tempo não sério.

Desta forma, as sociedades organizam-se em torno da sua conceção temporal dando mais importância a uma ou a outra dimensão. A sociedade ocidental atual organizou-se, tendo como referência o tempo pobre em contexto existencial. Organizou-se em torno do tempo de trabalho, tempo esse sem uma expressão ontológica apreciável (Garcia, s/d).

Assim, perceber a organização social dos povos que enfatizam o tempo que para nós se assume como de não trabalho, estamos, provavelmente, a perceber a nossa organização social dos princípios do século XXI, talvez o século do lazer, contudo a sociedade ocidental revela grandes laivos capitalistas que dão mais valor ao ter do que ao ser, correndo-se o risco de não se dar valor a um tempo necessariamente livre.

De facto, a qualificação do tempo é-nos, então, dada pela tradição cultural a que nos submetemos, isto é, como uma construção cultural contextualizada,

por outro lado, a análise das formas do tempo livre só é compreensível através da análise das condições económicas e sociais que as produzem.