• Nenhum resultado encontrado

Dois perfi s predominantes de jurista

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 87-91)

JURISTA CRIATIVO

II. Dois perfi s predominantes de jurista

O século XX foi marcado por dois perfi s predominantes de jurista: o jurista clás- sico e o jurista crítico.3 Cada um deles se caracteriza por uma forma peculiar

de lidar com os desafi os do seu tempo, por uma ideia sobre o desenvolvimento, e por um ideal de excelência. Por forma de lidar com os desafi os do seu tempo, 3 As sociedades avançam à medida que enfrentam e superam seus desafi os coletivamente. Em distintos momentos da história, diferentes padrões de colaboração ganharam pree- minência. Sobre o tema, ver Boltanski e Thévenot, De la justifi cation. Les économies de la grandeur, Paris, Gallimard, 1991.

JURISTA CRIATIVO 87

refi ro-me à atitude do jurista e ao caminho por ele percorrido ao se deparar com um problema social — sua visão de método. Por ideia sobre desenvolvi- mento, refi ro-me à visão do jurista sobre o objetivo fi nal da transformação da sociedade — sua visão de sucesso. Por ideal de excelência, refi ro-me ao tipo de profi ssional, cujas circunstâncias e forma de ação tornam-no referência para ação dos demais juristas. O jurista clássico e o jurista crítico são tipos de jurista que adotam distintas noções de método, de sucesso e de excelência.

a. Jurista clássico

i. Visão de sucesso

O jurista clássico é um ofi cialista. O ponto de partida para compreender sua prática social é o direito positivo. O jurista clássico se vê como agente do in- teresse público e, no desempenho de suas funções, busca atuar nos limites estritos da sua competência, estabelecida, em última análise, pela constituição e pelas leis aprovadas pelo Congresso. Ao aplicar a lei para dirimir confl ito em caso concreto, o jurista clássico não cria, apenas traduz vontade popular, pre- viamente disciplinada em nível abstrato. E ao desempenhar seu papel de forma consistente, o jurista clássico entende contribuir para realizar a vontade do povo e os ideais de justiça nos quatro cantos do país.

ii. Visão de método

O risco reconhecido pelo jurista clássico está em extrapolar os limites de sua competência. Se o juiz avança o sinal e viola os limites de sua competência, se legisla em vez de aplicar a lei, usurpa poder dos representantes eleitos pelo povo e coloca em risco a democracia. Para conter a atuação judicial dentro dos limites da lei, o pensamento jurídico, ao longo do último século, construiu dife- rentes métodos de interpretação (literal, gramatical, sistemática, originalista, in- terpretativista etc.) e justifi cação (positivismo, liberalismo, law and economics) da prática judicial, bem como examinou os limites da dinâmica entre os poderes. iii. Visão de excelência

A casa da atuação do jurista clássico é a corte judicial e o protagonista desse processo é o magistrado. O jurista exemplar é aquele magistrado que melhor executa o método na aplicação do direito ao caso concreto. Advogados, pro- motores, procuradores e defensores públicos, ao atuarem, levam em conside- ração a forma de pensar e de decidir do juiz. A vitória, para eles, em última análise, consiste em conquistar o apoio do juiz para seu ponto de vista. É nes- se contexto que um dos maiores juristas do mundo anglo-saxão da primeira metade do século XX, O. W. Holmes, identifi ca o juiz de tribunal de apelação

como o paradigma para a ação jurídica. Ou que John Rawls, um dos fi lósofos de infl uência da segunda metade do século passado, eleva o magistrado cons- titucional ao centro da cultura democrática: a forma de argumentar do jurista constitucional seria o paradigma para toda atuação dos agentes ofi ciais e da sociedade, ao deliberar sobre questões de interesse público. Em resumo, o he- rói, para o jurista clássico, é o juiz.

iv. Jeito de ser

A centralidade do juiz na cultura jurídica revela e fortalece o estilo aristocrático da cultura jurídica ocidental. Sua linguagem rebuscada, forma de pensar en- clausurada em limites formais, e modo de expressão não raras vezes críptico, são frequentemente vistos pela população como excêntricos. Se, por um lado, essa excentricidade cria uma aura de autoridade em torno de sua função, por outro, afasta o jurista clássico da população. O simbolismo do cargo requer uma sobriedade quase fria, moderação na fala, assim como na vestimenta ou nos gostos. Em último grau, o jurista clássico tende a purifi car a razão e, para manter sua grandeza, afasta de seu comportamento qualquer traço de pai- xão, vontade, infl uência do contexto. Nos casos mais puros, o jurista clássico se aproxima de um personagem autista, incapaz de interagir emocionalmente com os demais membros da sociedade. Uma fi gura que busca encarnar, na forma e nos gestos, assim como em todas as dimensões de sua vida, um ideal transcendental de justiça.

b. Jurista crítico

i. Visão de sucesso

O jurista crítico é antiofi cialista. O ponto de partida para compreender sua prática social são as demandas de grupos sociais minoritários reprimidos pelas regras do Estado. O jurista crítico entende que as leis, na verdade, não são en- carnações de um ideal de justiça ou representações do interesse geral, como pensam os juristas clássicos. Ao contrário, as leis expressam valores e interes- ses de um grupo social dominante — ao mesmo tempo que as leis benefi ciam estes grupos, também acabam por oprimir grupos sociais minoritários. O papel do jurista crítico, neste caso, consiste em desafi ar o status do jurista clássico, ao apontar seus limites e contradições e revelar as iniquidades que resultam de sua prática. Na impossibilidade de se levar a cabo verdadeira revolução social, que desafi e e reconstrua, em sua integralidade, o direito existente, o jurista crí- tico busca aliar-se aos movimentos sociais, e criticar e desconstruir os cânones do pensamento e da prática jurídica vigente, bem como resguardar os interes- ses de grupos marginalizados.

JURISTA CRIATIVO 89

ii. Visão de método

O desafi o permanente do jurista crítico é não subestimar os interesses escu- sos e ocultos nos andares de baixo da cultura jurídica. Por isso, o pensamento crítico busca treinar a mente para identifi car as contradições, o jogo de inte- resse disfarçado de objetividade, as consequências danosas e inesperadas da suposta aplicação imparcial da lei. Sob essa lógica, o jurista crítico é um des- construtivista, um intelectual e ativista que sempre irá desconfi ar dos métodos ideais, das autoridades mais preparadas, mais ‘racionais’ e mais bem-vestidas. Seu ceticismo esconde, na verdade, uma fé paradoxal na ‘crítica’, não apenas como uma arte argumentativa, mas também como meio exemplar de ação em sociedade. A crítica, para o jurista crítico, exprime ideal genuíno de vida em um mundo corrompido. Da desconstrução dos arranjos existentes e da cura das consciências do veneno das ideologias, o jurista crítico acredita que emergirá espontaneamente o novo mundo social.

iii. Visão de excelência

O jurista crítico é um denuncista incansável que luta pela legitimidade dos interesses de grupos minoritários na sociedade, utilizando como ferramenta central de ação o discurso crítico e o protesto. O campo de ação do jurista crítico não é apenas o judiciário, mas as ruas. Na democracia, o jurista aponta a exclusão de grupos minoritários e o papel exemplar de grandes líderes, como Mahatma Gandhi e Martin Luther King no aprimoramento da democracia. Na economia, o jurista crítico joga luz sobre a distância entre o ideal de efi ciência e seus efeitos em um caso concreto. Ao mesmo tempo, ressalta a capacidade dos grupos sociais de sacudir o mercado e incluir novos ideais no jogo econô- mico. No direito, aponta a inevitabilidade de zonas cinzentas na interpretação judicial e das contradições permanentes na aplicação do direito.

iv. Jeito de ser

O jurista crítico é um revolucionário nas ideias e na atitude perante a vida. Seu perfi l antiofi cialista e antielitista o leva a questionar a forma de se apresentar do jurista clássico. Terno e grava não combinam com ele, assim como não soa bem a linguagem recheada de palavras em latim. A vestimenta simples e a lin- guagem popular facilitam sua aproximação com os grupos da periferia social. É menos cerimonioso e mais direto que o jurista clássico, mas também mais desconfi ado e, por vezes, recluso.

Vê o mundo partido em dois — elite v. povo — e trata diferenças mínimas de estilo ou de pontos de vista como raízes profundas que podem afastar pes- soas de maneira quase incontornável. Se, por um lado, o jurista crítico quer ser mais ‘povo’ que o jurista clássico, por outro lado, não hesita em denunciar o

gosto popular, quando identifi ca a contaminação ideológica do seu compor- tamento. Ao elevar seu ponto de vista ao mais alto degrau de autoridade, e ao rotular o diferente como inimigo, arrisca isolar-se nos cantos da academia, ou nas periferias da sociedade. Torna-se, com frequência e infelizmente, uma pes- soa menor, machucada pela desconfi ança e pelo medo sem limites.

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 87-91)

Documentos relacionados