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Uma nota teórica sobre pós-colonialismo

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 110-113)

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO PÓS-COLONIALISTA: DESCOLONIZANDO O ENSINO JURÍDICO GLOBAL

2. Uma nota teórica sobre pós-colonialismo

O objetivo do presente texto é ampliar a discussão realizada na Índia em 2009 para uma audiência de professores de direito brasileiros, fomentando a refl e- xão sobre as hierarquias existentes no ensino jurídico global contemporâneo e as estratégias para o posicionamento de acadêmicos dos países periféricos em relação aos principais centros acadêmicos. O ponto de partida para esta análise é a constatação de que os relacionamentos hierarquizados da política internacional podem ser reproduzidos no ensino jurídico globalizado. O insight de que, não raro, o ensino jurídico é um reprodutor das hierarquias sociais não é original, tendo sido desenvolvido pela literatura crítica.8 As refl exões sobre

estas hierarquias costumavam, contudo, se restringir a subordinação intelec- tual por conta de gênero, orientação sexual, raça e condição econômica, sem incluir os problemas decorrentes de hierarquização por conta de origem nacio- nal. Porém, da mesma maneira que eram raras as oportunidades para discussão intelectual nos grandes centros acadêmicos de temas de interesse de certas minorias, também eram limitadas as oportunidades para uma refl exão ampla de questões jurídicas de países periféricos. Não por acaso, uma das primeiras re- comendações recebidas por um futuro aluno de mestrado nos Estados Unidos é evitar explicar, em sala de aula, como determinado instituto jurídico funciona ‘em meu país’. Existem, claro, diversas exceções, como aulas de direito compa- rado, de direitos humanos e de direito e desenvolvimento, por exemplo. Porém, em regra, não existe espaço para um diálogo cosmopolita nas disciplinas bási- cas do currículo de uma escola de direito estadunidense, como direito consti- tucional, direito empresarial ou direito da propriedade. O acadêmico estrangei- ro, logo, deverá adotar um comportamento estratégico para estabelecer uma instância de diálogo cosmopolita. A estratégia, neste caso, passa pela escolha de um orientador que tenha interesse em trabalhar com estrangeiros, a seleção de um tema que permita o desenvolvimento de um projeto com o professor e, fi nalmente, a possibilidade de refl exão a partir de razões, objetivos e interesses comuns. No caso dos brasileiros, após a ascensão do país ao status de potência 8 Duncan Kennedy, Legal education and the reproduction of hierarchy: a polemic against the

emergente, tem sido cada vez mais fácil encontrar possibilidades de parceria acadêmica para realização de pesquisa jurídica no exterior.

Aliás, se for verdade que os relacionamentos hierarquizados da política internacional podem ser reproduzidos no ensino jurídico globalizado, haveria uma relativa presunção de que os acadêmicos provenientes das grandes po- tências seriam, a princípio, superiores aos oriundos dos países periféricos. Se for verdade, então, que o status hierárquico dos acadêmicos corresponde ao status de seus países conforme a organização geopolítica da ordem interna- cional, os Estados Unidos estaria como grande potência no topo da hierarquia. Em seguida, estariam os aliados estratégicos tradicionais da União Europeia (com destaque para Alemanha) e da Commonwealth (com destaque para In- glaterra). Em posição de destaque, estariam ainda aliados regionais importan- tes (com destaque para Israel) e as potências emergentes dos BRICS (com destaque para China). Os demais países viriam na sequência conforme sua po- sição hierárquica na comunidade internacional. Se isto for verdade, então nossa perspectiva sobre o status de um professor seria infl uenciada pela sua origem nacional. Neste caso, se tivéssemos que escolher entre professores, artigos acadêmicos ou instituições de ensino e soubéssemos apenas a informação re- lativa à origem nacional, iríamos escolher provavelmente conforme a seguinte ordem: Estados Unidos; Alemanha/Inglaterra (e demais líderes da União Euro- peia e Commonwealth, como Itália, França, Austrália e Canadá); Israel/BRICS; demais países, conforme sua hierarquia geopolítica. Caso esta hipótese seja verdadeira, nossa perspectiva sobre ensino jurídico globalizado é infl uenciada pelas hierarquias da política internacional. Signifi caria, então, que o poder po- lítico infl uencia nossa opinião sobre a qualidade do conhecimento produzido nas escolas de direito ao redor do globo?

No plano da teoria pós-colonialista, é extremamente importante a lição de Michel Foucault de que poder e conhecimento estão intrinsecamente ligados.9

Os países mais poderosos teriam construído referências culturais com relação aos outros, criando categorias que estabeleceram diferenças imaginárias entre ‘primeiro mundo’ e ‘terceiro mundo’; ‘norte’ e ‘sul’; ‘ocidente’ e ‘oriente’. Estes conceitos binários que separam o mundo entre ‘nós-e-eles’ são construções sociais, cujas representações culturais costumam eliminar a heterogeneidade dos ‘outros’ povos e, a serviço do imperialismo, apresentam o ‘terceiro mundo’, o ‘sul’ e o ‘oriente’ como inferior, atrasado, irracional e selvagem, em contraste com o ‘primeiro mundo’, o ‘norte’ e o ‘ocidente’, que são apresentados como superior, progressista, racional e civilizado10. No caso particular do ensino jurí-

9 Michel Foucault. Power/knowledge: selected interviews and other writings. New York: Ran- dom House (1980).

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dico globalizado, existem discursos semelhantes que identifi cam como supe- rior a experiência jurídica de Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra e como inferior o direito positivo dos países periféricos. É necessário sempre cautela, equilíbrio e análise atenta das razões, objetivos e interesses jurídicos quando se compara sistemas jurídicos distintos. É possível que uma determinada solução jurídica adotada em um país seja, de fato, superior ao de outro. Porém, origem nacional não é pedigree da qualidade de uma norma jurídica. Ideias estrangei- ras não devem, portanto, ser adotadas por mera imitação, sem que antes haja uma análise profunda da conveniência de se transplantar uma norma alienígena ao direito de outro país. Por outro lado, se uma determinada solução jurídica for conveniente, tampouco deve ser rejeitada por conta da origem estrangeira.

A consciência pós-colonialista não se confunde, portanto, com uma ati- tude anti-imperialista. Um exemplo talvez esclareça a sutil diferença. Quando Michael Gerson, elaborador dos discursos do ex-presidente dos Estados Uni- dos, George W. Bush, fez uma palestra na Harvard Law School, foi interpelado por Sajjad Koshro, assessor do ex-presidente do Irã, Mohammad Khatami, com a seguinte pergunta: ‘Em que medida a expressão ‘eixo do mal’ cunhada por você para se referir a Irã, Síria e Coreia do Norte facilita o diálogo e as relações dos Estados Unidos com estes países?’ Antes de responder à pergunta, Gerson quis fazer um esclarecimento: ‘esta expressão ‘eixo do mal’ não se refere à so- ciedade civil iraniana, sendo utilizada apenas para se referir ao Estado’. Koshro o interrompeu para esclarecer que ‘quando os iranianos se referem aos Estados Unidos como o ‘grande satã’, eles também fazem esta distinção’. A intervenção arrancou algumas risadas nervosas na audiência, mas interrompeu a resposta do palestrante, que partiu para a próxima pergunta. Em resumo, ao questionar e buscar o diálogo, Koshro teve uma postura pós-colonialista; ao intervir de forma agressiva e anti-imperialista, porém, interrompeu este diálogo e a re- fl exão equilibrada sobre o tema. Tanto posturas imperialistas, quanto atitudes anti-imperialistas alienam interlocutores e impedem o diálogo construtivo, que poderia ser muito mais positivo e interessante para todos. Ao se defender das representações culturais estereotipadas do processo de orientalismo, não se deve adotar uma atitude diametralmente contraposta de ocidentalismo.

Outra questão importante para a teoria pós-colonialista consiste na exclu- são de vozes de certos grupos que poderiam ser considerados ‘subalternos’.11

O conceito de subalternidade não se confunde com a subordinação de certos grupos menos poderosos no cenário internacional, nem com a alienação eco-

11 Gayatri Chakravorty Spivak, Can the subaltern speak? in Rosalind Morris (ed) Can the su- baltern speak? Refl ections over the history of an idea. New York: Columbia University Press (2010).

nômica ou cultural descrita por teóricos comunistas.12 A rigor, ainda que certos

participantes dos diálogos globais possam estar eventualmente em posições assimétricas e relativamente inferiores com relação a outros mais poderosos, suas vozes estão sendo ouvidas. Ainda que o professor Hércules seja muito mais conhecido, lido e discutido do que o professor Hesperus, ambos estão inseridos no cenário internacional — mesmo que todos os doze trabalhos daquele aca- dêmico sejam festejados e a produção intelectual deste último tenha o brilho fugaz de uma estrela matinal. Por outro lado, a teoria da subalternidade critica o cenário da globalização por ser excludente e, particularmente, no caso do ensi- no jurídico, deveríamos refl etir sobre as vozes que não estão ecoando ao redor do globo. Particularmente no caso brasileiro, deveríamos refl etir se não existem experiências jurídicas interessantes, porém excluídas dos debates acadêmicos. Na África do Sul pós-apartheid, por exemplo, foi valorizado o conceito de ubun- tu como um princípio interpretativo típico africano, a partir da interdependência recíproca dos seres humanos e da maneira como é feita a justiça no cotidiano das tribos locais.13 Será que não possuímos conceitos indígenas igualmente in-

teressantes e simplesmente não estamos atentos a experiências locais? Enfi m, não estou sugerindo que sigamos o exemplo de Policarpo Quaresma, divertida personagem de Lima Barreto, que pretendia, dentre outras coisas, a substitui- ção da língua portuguesa pelo tupi-guarani.14 Por outro lado, não deveríamos

ignorar a diversidade cultural brasileira e seria interessante refl etir sobre nossa experiência jurídica de uma maneira mais ampla, de modo que nosso ensino jurídico pudesse incorporar vozes atualmente excluídas de nossas pesquisas, debates acadêmicos, materiais didáticos e discussões em sala de aula. Além das comunidades indígenas, será que não existem inovações jurídicas produzidas informalmente e longe dos tribunais que mereceriam ser compreendidas, estu- dadas e disseminadas pela academia brasileira? Estas são algumas das questões que a teoria pós-colonialista nos convida a refl etir.

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 110-113)

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