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Segunda proposta: reconhecer os limites da especialização

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 124-126)

ENSINO JURÍDICO E PESQUISA EM DIREITO NAS AMÉRICAS:

3. Segunda proposta: reconhecer os limites da especialização

Na minha primeira semana de aulas nos Estados Unidos, um professor de di- reito comparado deu uma palestra para os mestrandos, na qual elaborou uma explicação magistral sobre as diferenças entre o sistema europeu (civil law) e o sistema norte-americano (common law). Basicamente, ele comparou o siste- ma europeu a uma cômoda, onde havia uma gaveta específi ca para cada peça de roupa. Há uma gaveta para direito privado (camisetas), outra para direito público (calças) e uma distinta para direito penal (pijamas). O aluno que vem do direito continental europeu, portanto, tende a defi nir sua pesquisa e sua identidade como pesquisador a partir de uma determinada área de pesquisa. Seguindo essa tradição, as faculdades de direito mais antigas do Brasil tendem a ter departamentos, e a abertura de vagas concentra-se na busca por candi- datos especializados em uma determinada área de pesquisa.

Na América do Norte, segundo o professor, ao invés de uma cômoda, o sistema jurídico era mais próximo de um baú. As roupas estavam jogadas den- tro de um mesmo recipiente, sem qualquer organização ou critério. Podia-se diferenciar leis (camisetas) de atos administrativos (bermudas), mas a ideia de sair para o mundo sem escandalizar ninguém com sua nudez basicamente exigia o esforço de juntar algumas peças de forma coerente, quaisquer que fossem elas. Ou seja, não havia qualquer apego a classifi cações com disciplinas ou áreas do direito. O objetivo era sair vestido. Portanto, o desafi o era resolver

questões concretas, com o instrumental que parecesse mais adequado para tal tarefa. O refl exo mais imediato disso é a ausência de divisões departamentais nas faculdades de direito norte-americanas e o fato de que os professores po- dem mudar (e com frequência mudam)suas áreas de pesquisa. Basicamente, o que guia a investigação científi ca nessas instituições é a curiosidade e a possi- bilidade de se dizer algo novo, não a tentativa de se afi rmar como um especia- lista em determinado assunto.

Um bom exemplo de como essas diferenças se manifestam no ensino do direito é a escolha de professores para ministrar determinadas matérias. Um professor de Yale, na primeira aula, disse que basicamente estava dando aquele seminário porque ele queria aprender mais sobre o assunto. E arrema- tou: “A forma mais rápida de aprender algo é dar um curso sobre o assunto”. Essa abertura e fl exibilidade são exatamente o que a concepção do orde- namento jurídico como uma “cômoda” não permite. Cada um na sua gaveta é, em geral, a ordem do dia. A lógica por trás disso é a da especialização. E essa lógica tem seu valor. Há inúmeras vantagens em se fazer um curso com uma pessoa que tem vasta experiência no assunto, em contraste com um novato. Percebi isso claramente ao comparar a primeira vez que dei um curso de direito contratual canadense em Toronto e o curso que dou hoje em dia. Por outro lado, grande parte do que traz inovação e areja o debate em determinadas áreas é exatamente o ingresso de pessoas novas, que tendem a olhar para o que está lá de forma distinta daqueles que já se acostumaram com as coisas “como elas são”. Ou seja, abertura e fl exibilidade também têm seu valor.

A interdisciplinaridade não precisa entrar em choque ou se contrapor a essa organização disciplinar. Enquanto uns podem usar um método interdisci- plinar, como Direito e Economia, para explorar questões de direito societário, outros podem usar o mesmo método para explorar questões de direito penal. O grande problema ocorre quando a adesão a um determinado método passa a ser exigida com a mesma veemência com a qual se exige a adesão a uma de- terminada área do direito. E esse processo torna-se especialmente problemáti- co quando essas duas exigências são simultâneas. Ou seja, ao se exigir que um pesquisador se especialize em direito penal ou direito civil, exige-se também que ele se especialize em um método específi co de abordar essa área, como por exemplo Direito e Economia.

O grande problema dessa exigência é que há métodos que são mais úteis para tratar de determinados assuntos, enquanto outros métodos parecem mais adequados para outros assuntos. Por exemplo, a metodologia empregada pelo Direito e Economia parece bastante útil para descrever as decisões de inves- tidores e administradores no contexto corporativo, mas parece signifi cativa-

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mente mais limitada para explicar índices gerais de criminalidade e explorar reformas no direito penal que se traduzam em políticas efetivas de combate ao crime. Isso ocorre porque a decisão de cometer um crime tende a ser mais complexa, e por vezes mais irracional (do ponto de vista econômico), do que a decisão de alocar recursos dos acionistas de maneira efi ciente em uma em- presa para gerar lucro.

O resultado disso é que os pesquisadores na América do Norte se espe- cializam em um tema (o que no Brasil seria considerada uma área do direito), sem subscrever a uma metodologia específi ca. Por exemplo, um determinado pesquisador pode se especializar em direito societário, utilizando-se, por ve- zes, da metodologia de Direito e Economia. Tal metodologia, todavia, pode ser abandonada quando ela não parecer adequada para analisar o problema em questão. Em contrapartida, alguns pesquisadores norte-americanos tendem a se especializar em uma metodologia, e passam a tentar aplicar aquele método de análise para diversas áreas nas quais o mesmo parece útil. O critério aqui é explicar o fenômeno observado e formular propostas de reformas. Essa fl exibi- lidade existe exatamente porque tirar duas camisetas de dentro do baú ainda vai deixar a pessoa sair nua da cintura para baixo. Portanto, há que se adequar ao que é necessário para compor o visual completo. Isso, por vezes, exige mu- dar o enfoque, ou mudar a metodologia.

Minha proposta, portanto, é que se abandone a divisão das universidades em departamentos (o que algumas faculdades privadas já fi zeram) e se dê mais liberdade para os pesquisadores transitarem entre áreas e metodologias distin- tas. Os alunos de direito apenas vão incorporar essa mentalidade se eles virem que seus próprios professores operam dentro de um sistema que proporciona esse tipo de fl exibilidade.

4. Terceira proposta: adequar a metodologia ao objeto

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 124-126)

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