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Uma passagem pela Índia

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 106-110)

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO PÓS-COLONIALISTA: DESCOLONIZANDO O ENSINO JURÍDICO GLOBAL

1. Uma passagem pela Índia

Em agosto de 2009, durante temporada como professor visitante na West Bengal National University of Juridical Sciences em Calcutá, na Índia, fui convi- dado para apresentar um trabalho no workshop de pesquisa do diretor Mahen- dra Singh. Resolvi, então, fazer uma apresentação sobre como as dinâmicas de poder das relações internacionais seriam reproduzidas no contexto da globa- lização do ensino jurídico. Inicialmente, propus para a audiência de professo- res indianos que as posturas de Estados nacionais poderiam ser classifi cadas como ‘imperialistas’, ‘cosmopolitas’, ‘neutras’ e ‘isolacionistas’. Neste sentido, por exemplo, a relação assimétrica de uma grande potência com um país me- nos poderoso poderia ser classifi cada como ‘imperialista’ sempre que a infl u- ência fosse exercida em virtude de seu poder de império, mas não devido a razões, objetivos ou interesses comuns de ambos. Em contraste, uma relação simétrica entre Estados nacionais, pautada pelo diálogo, pela cooperação re- cíproca e por ações coordenadas em torno de razões, objetivos ou interesses comuns poderia ser classifi cada como uma postura ‘cosmopolita’. Além disso, certos Estados nacionais poderiam adotar uma postura de interação sem qual- quer intervenção em relação às questões sensíveis da política internacional, assumindo uma postura predominantemente ‘neutra’. Finalmente, a postura de ruptura da interação com a comunidade internacional adotada por certos Estados nacionais poderia ser classifi cada como ‘isolacionista’. É importante ressaltar que esta terminologia é proposta não para a classifi cação dos Estados nacionais em si, mas para a análise de suas posturas em relação à prática de determinados atos. Assim, por exemplo, um determinado Estado nacional pode 1 Pedro Rubim Borges Fortes é professor da FGV DIREITO RIO. É graduado em direito pela UFRJ, em administração pela PUC-Rio, LL.M. pela Harvard Law School, J.S.M. pela Stanford Law School e doutorando em direito por Oxford. Foi professor visitante na WB NUJS em Calcutá, na Índia, na Universidade Goethe, em Frankfurt, e pesquisador visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo, Alemanha. Dentre suas honras acadêmicas, foi professor home- nageado em 2004, 2005 e 2011 e foi selecionado para o IV International Junior Faculty Fo- rum em 2011. É ex-procurador do Banco Central e promotor de justiça no MPRJ desde 2000.

ter uma postura ‘imperialista’ em seus programas de investimentos internacio- nais, uma postura ‘cosmopolita’ em termos de intercâmbio cultural e artístico, uma postura ‘neutra’ em relação a programas de energia nuclear e uma postura ‘isolacionista’ em relação à aceitação de idiomas estrangeiros em seu cotidiano social. Em tese, portanto, nenhum Estado nacional seria ‘imperialista’, ‘cosmo- polita’, ‘neutro’ ou ‘isolacionista’, mas seus atos poderiam ser classifi cados con- forme esta terminologia.

Esta classifi cação foi proposta para que refl etíssemos se, dentro do con- texto da globalização do ensino jurídico, estas mesmas posturas não seriam reproduzidas no meio acadêmico em faculdades de direito ao redor do globo. Certos cursos jurídicos, materiais didáticos e discussões acadêmicas possuem um caráter exclusivamente ou predominantemente local e seu conteúdo seria blindado da infl uência da globalização de maneira ‘isolacionista’ ou ‘neutra’. Por sua vez, existem cursos jurídicos que propõem análises comparadas entre sistemas jurídicos diversos, com profundidade de análise da lógica das regras jurídicas de acordo com a coerência interna própria de cada um deles. Os ma- teriais didáticos de diversos cursos trazem trabalhos de autores de variados países, que são estudados de maneira simétrica e com foco nas razões, objeti- vos ou interesses que justifi cam a adoção de uma determinada solução jurídica em cada contexto nacional. Além disso, as discussões acadêmicas são conduzi- das de maneira coordenada, sem que haja a pressuposição de que o direito do país x seja, por conta de hierarquia, superior ao direito do país y. Ao revés, as análises críticas com relação a qualquer questão jurídica são formuladas com base em raciocínio feito de forma independente da origem nacional do direito analisado. Tais cursos jurídicos, materiais didáticos e discussões acadêmicas podem ser classifi cados como ‘cosmopolitas’. Por outro lado, há cursos jurídi- cos em que o direito de países centrais é apresentado como superior simples- mente por conta de sua origem nacional. Também existem diversos casos de materiais didáticos assimétricos em que o direito de países da periferia global é apresentado como uma caricatura, em contraste com o direito de uma grande potência. Ademais, certos debates acadêmicos são pautados pela premissa da superioridade de um direito em relação ao outro, havendo uma postura clara- mente ‘imperialista’ do debatedor.

Em minha opinião, o principal desafi o para acadêmicos da periferia global é estabelecer instâncias de diálogo cosmopolita. Em muitos casos, o ensino jurídico possui um caráter provinciano, contendo exclusivamente questões do- mésticas de direito positivo local sem análises comparadas, materiais interna- cionais ou discussões de autores estrangeiros. Em outros casos, o ensino jurí- dico possui um caráter imperialista, com a desconsideração do direito de um país periférico, materiais predominantemente das grandes potências e argu-

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mentos de autoridade com base em autores estrangeiros. É importante, aliás, que os acadêmicos estejam atentos ao fato de certas experiências acadêmicas internacionais poderem contribuir para internalizar uma postura imperialista. É possível, por exemplo, que um professor de um país periférico seja estudante de pós-graduação no exterior e escolha orientador, cursos, materiais e debates caracterizados pela hierarquização e pela relação de superioridade entre os países centrais e os países periféricos, vindo a incorporar em seu pensamento a premissa de que o direito de seu país de origem é inferior ao do país em que es- tudou. Após seu retorno ao país de origem, este professor poderá ter internali- zado esta postura e reproduzir esta mesma hierarquização em sua sala de aula, agenda de pesquisa e discussões acadêmicas.2 Não é, obviamente, necessário

que um professor tenha estudado no exterior para que venha a desenvolver uma visão idealizada do direito estrangeiro e uma visão caricata do direito local. Ao contrário, aliás, a falta de uma experiência internacional pode condu- zir a uma postura de elogio exagerado do direito estrangeiro justamente pela ilusão de que, nos países centrais, o ‘direito nos livros’ seja exatamente igual ao ‘direito em ação’. A estes acadêmicos, é recomendada a leitura dos estudos sócio-jurídicos3 e da literatura crítica4 que desfaz esta ilusão de que apenas

em nosso país o direito não funciona conforme a letra da lei ou é contaminado por dinâmicas de poder. Também não considero que a postura ‘isolacionista’ ou ‘neutra’ sejam as mais interessantes diante das inúmeras oportunidades de trocas de experiência e de cooperação recíproca que a globalização do ensino jurídico oferece.

Minha sugestão aos professores indianos foi a formação de uma consci- ência pós-colonialista. Deveríamos estar sempre atentos a qualquer postura reprodutora da colonização política típica do passado recente do Brasil e da Índia e adotar estratégias para desconstruir práticas de colonização intelectual. Esta postura crítica e equilibrada não signifi caria nem a rejeição absoluta nem a aceitação incondicional de ideias estrangeiras. Deveríamos construir nossa relação com professores, materiais e os diálogos globais de maneira simétrica, pautada pelo diálogo construtivo e por programas coordenados em torno de 2 Veja, a respeito desta dinâmica, o texto seminal da literatura pós-colonialista: Fanon, Frantz.

Black skin, White masks: the experiences of a Black man in a White world. New York: Grove Press (2008).

3 Lawrence Friedman, Stewart Macaulay, and John Stookey (eds). Law and society reader: readings on the social study of law. New York: W W Norton & Co (1995); Stewart Macaulay, Lawrence Friedman, and Elisabeth Mertz, Law in action: a socio-legal reader. New York, Foundation press (2007); Denis Galligan, Law in modern society. Oxford: Oxford University Press (2006).

4 Duncan Kennedy, A critique of adjudication: fi n de siècle. Cambridge: Harvard University Press (1998); Roberto Mangabeira Unger, The critical legal studies movement. 96 Harvard Law Review (1983) p 561; Mark Kelman, A guide to critical legal studies. Cambridge: Harvard University Press (1987).

razões, objetivos ou interesses tanto dos acadêmicos dos países periféricos quanto dos países centrais. Tanto o Brasil quanto a Índia possuem acadêmicos com produção intelectual que transcendeu a miopia do provincianismo local e a estereotipia do imperialismo global, e os exemplos pródigos de Roberto Mangabeira Unger e Amartya Sen, entre outros, devem servir de inspiração para a construção desta consciência pós-colonialista.5 O desafi o consiste em

justamente transformar o exemplo individual em prática coletiva, institucio- nalizando a postura crítica dentro do ensino jurídico por meio de discussões mais amplas e aprofundadas sobre o direito. Caso não seja possível construir uma ampla consciência pós-colonialista e desenvolver posturas cosmopolitas de maneira consistente, o cenário do ensino jurídico será dividido entre as duas posições extremas de aceitação incondicional ou rejeição absoluta das infl uên- cias estrangeiras.

Ao fi nal da exposição, tivemos uma hora e meia de debates e foi bas- tante interessante perceber que os docentes da WB NUJS concordavam, em linhas gerais, com a terminologia e consideravam importante tanto a constru- ção de uma consciência pós-colonialista quanto a postura cosmopolita em um ambiente acadêmico. O diretor Mahendra Singh compartilhou sua experiência como professor visitante de direito constitucional na China, explicando que sempre procura entender dos alunos provenientes de outros países como uma determinada norma jurídica é compreendida naquele contexto social e na cir- cunstância histórica particular daquele Estado nacional. O professor Sudhir Krishnaswami mencionou, como exemplo, um artigo em que o professor cana- dense Marc Galanter teria tido uma postura imperialista ao apresentar os advo- gados indianos como uma caricatura profi ssional perto dos super advogados estadunidenses, sendo que o próprio Galanter possui uma crítica contundente quanto à racionalidade do sistema jurídico norte-americano, calibrado em favor dos poderosos.6 Pritam Baruah questionou se certas disciplinas aparentemen-

te neutras como ‘análise econômica do direito’ e ‘direito e desenvolvimento’ não poderiam recomendar, não raro, posturas imperialistas, ao preconizar re- ceitas rígidas neoliberais como soluções para problemas jurídicos complexos.7

5 Roberto Unger, What should legal analysis become? London: Verso (1996); Roberto Unger, The self awakened: pragmatism unbound. Cambridge: Harvard University Press (2007); Amartya Sen, Development as freedom. New York: Alfred Knopf (1999); Amartya Sen, An idea of justice. Cambridge: Harvard University Press (2009).

6 Compare e contraste, então, Marc Galanter. When legal worlds collide: refl ections on Bho- pal, the good lawyer, and the American law school. 36 Journal of legal education (1986); e Marc Galanter. Why the ‘haves’ come out ahead: speculations on the limits of legal change. 9 Law and society review (1974).

7 Esta crítica encontra eco nas obras de David Trubek and Alvaro Santos (eds.), The new law and economic development: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press (2006); e David Kennedy and Joseph Stiglitz (eds.), Law and economics with Chinese cha- racteristics. Oxford: Oxford University Press (2013).

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Além disso, um professor educado em Oxford confessou ter adotado posturas predominantemente imperialistas ao longo de sua carreira acadêmica, tendo sempre presumido a superioridade do direito britânico em relação ao indiano e, por sua vez, do indiano em relação ao direito dos países vizinhos da região. Enfi m, a recepção favorável da plateia indiana sugere que a terminologia é vá- lida e que seria um ponto de partida interessante para um debate mais amplo sobre a globalização do ensino jurídico em uma perspectiva pós-colonialista.

No documento Globalização do ensino jurídico (páginas 106-110)

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