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Hugo Belarmino de MORAIS43

Resumo

O presente artigo busca suscitar um debate acerca das concepções de liberalismo levantadas por dois pensadores italianos: Norberto Bobbio e Domenico Losurdo. Estuda-se Bobbio através de um recorte de textos sobre o liberalismo – retirados, sobretudo do seu livro “Liberalismo e democracia” – identificando em sua obra um liberalismo crítico, de grande valia para a teoria política atual no que tange ao debate demo- crático. Já em Domenico Losurdo, pode-se observar uma “Crítica do liberalismo” que parte das contradições existentes entre as promessas do discurso liberal e a sua concretização. Busca-se, com isso, fortale- cer o debate contemporâneo acerca do pensamento político com base nesses dois autores, que são de tradições teóricas distintas e que partem de pressupostos metodológicos diferentes. Conclui-se pela necessidade

43 Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), área

de concentração em Direitos Humanos.

de complementar uma análise “teorético-crítica” com uma abordagem “histórico-social”, para não incorrer no erro de remeter ao liberalismo determinadas conquistas que só se realizaram historicamente de forma bastante contraditória, sobretudo no debate acerca da relação entre li- beralismo ético-político e a liberdade econômica.

Palavras-chave: Liberalismo. Democracia. Abordagem Crítica.

Abstract

This article seeks to stimulate a debate about the conceptions of libe- ralism raised by two Italian thinkers: Norberto Bobbio and Domenico Losurdo. Bobbio is studied through a crop of texts on liberalism, taken mainly from his book “Liberalism and democracy”. In his work he pro- poses a critical liberalism of great value to the current political theory regarding the democratic debate. On the contrary, in Domenico Losurdo it can be observed a “critique of liberalism”, that start from the contra- dictions between the promises of liberal discourse and its implementa- tion. The aim of this paper is thereby to strengthen the contemporary debate about political thought based on these two authors, who belong to different theoretical traditions that start from different methodological assumption. The result of analysis is the recognition of the need to com- plement a “theoretical-critical” approach with a “history-social” appro- ach, to do not make the mistake of referring to liberalism only in certain achievements that took place historically in a very contradictory way, es- pecially in the debate about the relationship between ethical and political liberalism and economic freedom.

Introdução

O objetivo do presente trabalho é aproximar duas abordagens di- ferentes acerca do liberalismo, através de dois pensadores italianos: Nor- berto Bobbio e Domenico Losurdo. Tratando de um texto apresentado num Seminário que homenageia o “pensiero bobbiano” nas suas diversas facetas – teoria política, direitos humanos, relações internacionais – tor- na-se oportuno não somente um momento “celebratório”44, mas também

uma avaliação crítica, para construir um diálogo honesto entre aqueles que refletem sobre o mundo contemporâneo com base nas lições dos que nos antecederam. Nesse mister, a discussão sobre a teoria política liberal, que, como sabemos, é alvo de profundas divergências – não somente do ponto de vista conceitual, mas de sua realização prática – parece ser um bom espaço para o debate.

Entre Bobbio e Losurdo há pressupostos metodológicos distintos e compreensões diferentes sobre o tema do Liberalismo, embora possam aparecer timidamente algumas convergências, que tentaremos apresentar.

O ensaio se inicia com uma breve reflexão sobre o pensamento político bobbiano e seu interesse no tema do liberalismo, baseado so- bretudo na obra “Liberalismo e Democracia” (BOBBIO, 2000). Neste livro, o autor, com sua habitual clareza de exposição e didatismo – que, por isso, acaba às vezes por simplificar e dicotomizar alguns assuntos, como veremos – trata de conceituar o liberalismo, buscando as lições

44 Aqui recordamos uma inteligente discussão que Boaventura Santos realiza acerca da

“pós-modernidade celebratória” e a “pós-modernidade de oposição” no livro “A gramá- tica do tempo: para uma nova cultura política” (2006). Embora discordando de algumas posições teóricas do autor no que tange à “pós-modernidade”, a noção de “celebração” é interessante para demonstrar alguns caminhos acríticos no debate contemporâneo.

dos clássicos45, as relações com o tema do poder, da democracia, dos

direitos do homem, entre outros. Compreende-se que, à primeira vista, com base nos textos estudados, poder-se-ia posicionar o filósofo de Tu- rim dentro da tradição liberal, embora numa posição teorético-crítica, ou seja, num “liberalismo crítico”.

Já de Domenico Losurdo, pensador italiano do campo mar- xista, com influência gramsciana, buscar-se-á apontar os elementos principais do seu livro “Contra-história do liberalismo” (LOSURDO, 2006), onde realiza uma construção teórica bastante interessante so- bre o tema, apresentando algumas contradições entre o discurso libe- ral e as práticas concretas das sociedades e dos pensadores liberais. Nesse caso, não se trataria de um “liberalismo crítico”, mas de uma “crítica dialética ao liberalismo”.

Por fim, e tendo em vista a multiplicidade de possibilidades que esse confronto pode oferecer para o campo do pensamento político atual, tenta-se captar desse “diálogo incômodo” algumas contribuições para o debate, indicando, através de perguntas, algumas sugestões para outros estudos mais aprofundados para o futuro.

O pensamento bobbiano acerca do liberalismo: um “liberalismo crítico”

Não há como desconhecer ou simplesmente desdenhar da contribui- ção de Bobbio no campo da Filosofia Política, que é ampla e demanda algu- mas leituras obrigatórias, tanto para os que concordam com suas conclusões quanto para os que delas discordam. No presente estudo, privilegiamos a

45 A este propósito, uma interessante exposição sobre o estudo de Bobbio sobre os

clássicos da política encontra-se na Apresentação de José Fernández Santillán no livro “Norberto Bobbio: o filósofo e a política – Antologia”.

leitura do livro “Liberalismo e democracia”, conjunto de textos que oferece um panorama geral interessante sobre sua compreensão do tema.

Nesse sentido, é importante destacar a primeira frase do autor no livro supracitado: “A existência atual de regimes denominados li- beral-democráticos ou de democracia liberal leva a crer que liberalis- mo e democracia sejam interdependentes. No entanto, o problema das relações entre eles é extremamente complexo, e tudo menos linear” (BOBBIO, 2000, p. 7).

Dessa afirmação se depreendem duas questões importantes. De um lado, a vasta leitura dos clássicos, a proximidade política de Bobbio (conflituosa, é verdade) com correntes da esquerda, o debate que reali- za acerca da igualdade e do socialismo e sua tradicional característica de rigor metodológico e refinamento conceitual46 não permitem situar o

pensamento bobbiano numa visão “tradicional” do liberalismo.

De outro lado, a contrario sensu, não é possível situar o pensador italiano “fora” da tradição liberal, tendo em vista a presença freqüente de suas considerações acerca do Estado de Direito e do Estado mínimo, do individualismo, dos direitos do homem (BOBBIO, 2004, p. 41), enfim, do tratamento sempre presente em sua obra (às vezes até redundante) da dicotomia Liberdade/Indivíduo X Poder/Estado, tratando de afirmar a utilidade e a força da relação existente entre uma doutrina que busca li- mitar o poder do Estado (liberal) e outra que busca distribuí-lo (democrá- tica) (BOBBIO, 2000, p. 8): “No pensamento liberal, teoria do controle do poder e teoria da limitação das tarefas do Estado procedem no mesmo passo: pode-se até mesmo dizer que a segunda é a conditio sina qua non da primeira” (BOBBIO, 2000, 21).

46 Como diria Celso Lafer na Apresentação da “Era dos Direitos” (2004), há uma marca

de Bobbio ao escrever: rigor analítico, inexcedível clareza, a capacidade de contextua- lização histórica, o sábio uso da “lição dos clássicos” e o discernimento do relevante.

O pensamento bobbiano acerca do liberalismo toma como pressu- posto metodológico a tradição dos teóricos liberais e um conceito “mínimo” de liberalismo47. Este conceito conjuga certa tradição filosófico-especulativa

(individualismo ontológico e metodológico), pressupostos jurídico-políticos (contratualismo, jusnaturalismo) e uma dimensão econômica (livre-cam- bismo, acumulação, propriedade privada)48. Todos esses elementos, expli-

citamente ou não, fazem parte de um “núcleo duro” do liberalismo, que é estudado, classificado e explicado por Bobbio na obra em comento, sob a dicotomia liberdade versus poder. Em síntese Bobbio afirma:

Enquanto o curso histórico procede de um estado inicial de servidão a estados sucessivos de conquista de espaços de liberdade por parte dos sujeitos, através de um processo de gradual liberalização, a doutrina percorre o caminho inverso, na medida em que parte da hipótese de um

estado inicial de liberdade, e apenas enquanto concebe o homem como naturalmente livre é que consegue construir a sociedade política como

uma sociedade com soberania limitada. Em substância, a doutrina, es- pecialmente a doutrina dos direitos naturais, inverte o andamento do curso histórico, colocando no início como fundamento, e portanto como

prius, aquilo que é historicamente o resultado, o posterius (grifo nosso).

(BOBBIO, 2000, p. 14-15)

Com efeito, para Bobbio, este conceito mínimo de liberalismo estaria tentando conjugar conceitualmente uma multiplicidade de con-

47 Fala-se em conceito mínimo com base na “definição mínima” de democracia, defen-

dida na obra “O futuro da democracia” (1986). A democracia para Bobbio é vista como a conjugação de dois esforços: de um lado, a defesa de regras de procedimento minimos que delimitem quem pode tomar legitimamente as decisões coletivas, e de outro, que sejam garantidas certas liberdades (direitos individuais), como prerrequisitos para as “regras do jogo” (1986, p. 20).

48 A relação entre liberdade ético-política e liberdade econômica não é consensual, como

cepções de mundo e de aspirações políticas próprias da modernidade. E nisso o autor não poupa elogios à tradição individualista e contratualista moderna (BOBBIO, 2000, p. 16):

O contratualismo moderno representa uma verdadeira reviravolta na história do pensamento político dominado pelo organicismo na medida em que, subvertendo as relações entre indivíduo e sociedade, faz da sociedade não mais um fato natural, a existir independentemente da vontade dos indivíduos, mas um corpo artificial, criado pelos indivídu- os à sua imagem e semelhança e para a satisfação de seus interesses e carência e o mais amplo exercício de seus direitos. [...] Sem individua- lismo não há liberalismo.

Há outras relações bastante importantes para compreender o li- beralismo em Bobbio. É a relação entre liberalismo, Estado Mínimo e Estado de Direito.

Para caracterizar a relação entre o pensamento liberal e Estado de Direito, utiliza novamente o conceito “mínimo”, onde Estado de Di- reito representa “não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, [...] mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais con- siderados constitucionalmente” (BOBBIO, 2000, p. 18-19). E quanto ao Estado mínimo, caracteriza-o como o Estado com funções limitadas, contrapondo-se ao “Estado Máximo”49.

49 Bobbio não sistematiza muito bem a discussão sobre Estado Mínimo e Estado Máxi- mo. Só diz que o Estado liberal se afirma num duplo movimento: afirma o Estado de Di- reito contra o Estado absoluto, e o Estado mínimo contra o Estado máximo (BOBBIO, 2000, p. 20), mas que pode haver Estado Liberal com funções ampliadas, como no caso do Estado Social. Na obra “O futuro da democracia”, quando o pensador vai discutir os ataques feitos pelos “novos liberais”, ele indica somente a relação mais ampla que o Estado Máximo congrega, para além do Estado Totalitário (BOBBIO, 1986, p. 120).

Neste sentido, parece óbvia a relação entre a concepção de Estado de Direito em Bobbio e o pensador italiano Danilo Zolo, que conceitua o Estado de Direito através da exposição de três tradições diferentes – mas análogas – sobre o Estado de direito numa concepção liberal: o Rechtss-

taat (alemão), o Rule of Law (inglês e norte-americano) e o État de Droit

(francês). Para Zolo, o Estado de Direito pode ser entendido como “um Estado moderno no qual ao ordenamento jurídico – não a outros subsiste- mas funcionais – é atribuída a tarefa de ‘garantir’ os direitos individuais, refreando a natural tendência do poder político a expandir-se e a operar de maneira arbitrária” (ZOLO, 2006, p. 11).

Desta forma, o pensamento bobbiano sobre o Estado de direito conecta-se sem maiores polêmicas aos pressupostos político-filosófi- cos apresentados por Danilo Zolo na introdução do “Estado de Direi- to”: o “pessimismo potestativo” e o “otimismo normativo” (ZOLO, 2006, p. 30).

O pessimismo potestativo representa a tese clássica do liberalis- mo europeu na qual todo poder é “funcionalmente necessário e social- mente perigoso” e que, por isso, necessita sempre de limitação (ZOLO, 2006, p. 31). O otimismo normativo determina a confiança na utilização do instrumento do direito, que teria a “força” suficiente para, por um lado, vincular os poderes ao respeito das regras gerais e afirmar os direi- tos individuais indispensáveis à ordem, coesão e estabilidade do corpo político (ZOLO, 2006, p. 32-34).

Outra não é a conclusão que se pode retirar dos trechos acerca da di- cotomia – para Bobbio, fundante – entre liberdade e Poder: “Há uma acepção de liberdade – que é a acepção prevalecente na tradição liberal – segundo a qual “liberdade” e “poder” são dois termos antitéticos, que denotam duas realidades em contraste entre si” (BOBBIO, 1986, p. 20). E ainda:

[...] uma vez definida a liberdade no sentido predominante da doutrina liberal como liberdade em relação ao Estado, o processo de formação do Estado liberal pode ser identificado com o progressivo alargamento da esfera de liberdade do indivíduo, diante dos poderes públicos [...], com a progressiva emancipação da sociedade ou da sociedade civil, no sentido hegeliano e marxiano, em relação ao Estado (BOBBIO, 1986, p. 22). Vê-se portanto, que o principal mérito do autor para o pensamen- to liberal é aperfeiçoar a lição (dos clássicos e dos modernos) acerca da dicotomia entre liberdade e poder, entre indivíduo e Estado, o que, ade- mais, não deixa de ter um conteúdo heurístico importante. A discussão teórica que Bobbio realiza, buscando uma avaliação crítica do liberalis- mo entre os clássicos e os modernos, revela o que, em cada caso, pode ser retirado como lição para a teoria política liberal.

No entanto, é possível discutir nessa altura do presente ensaio uma passagem bastante esclarecedora sobre a opção teórico-metodoló- gica (e também política) do pensador de Turim. Nesta passagem o autor discute elementos históricos sobre o surgimento do Estado liberal:

[...] é um fato que a história do Estado liberal coincide, de um lado, com o fim dos Estados confessionais [...] e, de outro lado, com o fim dos privilégios e dos vínculos feudais e com a exigência de livre disposiçao dos bens e da liberdade de troca, que assinala o nascimento e o desen-

volvimento da sociedade mercantil burguesa (BOBBIO, 1986, p. 22).

Esta passagem oferece uma chave de leitura sobre a relação de Bob- bio com o tema do liberalismo. Para o autor, é nesse movimento de “busca” de um “conceito refinado” de liberalismo em suas relações com outros temas (como democracia, individualismo, utilitarismo, etc.) que será possível aper- feiçoar a doutrina liberal para relacioná-la sobretudo com a democracia.

No livro “O futuro da democracia”, esta relação complexa apare- ce de forma límpida

[...] o liberalismo é um movimento de idéias que passa através de di- versos autores diferentes entre si, com Locke, Montesquieu, Kant, Adam Smith, Humboldt, Constant, John Stuart Mill, Tocqueville, para lembrar o nome de autores elevados ao céu dos clássicos. Porém, por mais numerosos que possam ser os aspectos sob os quais se apresenta a doutrina liberal passando de autor a autor, já que é boa regra não multiplicar os entes, considero que, mesmo ao término do discurso que estou fazendo, os aspectos fundamentais são o econômico e o político,

e por isso merecem estar sempre presentes. O liberalismo é, como te-

oria econômica, fautor da economia de mercado; como teoria política, é fautor do estado que governe o menos possível ou, como se diz hoje, do estado mínimo (isto é, reduzido ao mínimo necessário) (grifo nosso). (BOBBIO, 1986, p. 111)

E mais à frente no texto, vai afirmar que, embora as relações en- tre o político e o econômico sejam muito próximas no que tange ao li- beralismo, é possível e convém separa-lás: “Porém, as duas teorias são independentes uma da outra e é melhor considerá-las separadamente. São independentes porque a teoria dos limites do poder do estado não se re- fere apenas à intervenção na esfera econômica, mas se estende à esfera espiritual ou ético-religiosa.” (BOBBIO, 1986, p. 111).

Acredita-se que esta afirmação de Bobbio demandaria talvez uma explicação mais detalhada, sobretudo num tema de tanto fôlego quanto à relação entre liberalismo político e o surgimento da sociedade mercantil burguesa – temas, obviamente, importantes para um debate crítico sobre a pensamento político na modernidade.

Já na discussão que realiza sobre democracia e liberalismo e sobre liberdade e igualdade, essa opção permanece. Afirma o autor que existe

não só uma relação de compatibilidade entre democracia e liberalismo, mas também de prolongamento “quase natural” do liberalismo para a de- mocracia: “[..] a democracia pode ser considerada como o natural desen- volvimento do Estado liberal apenas se tomada não pelo lado de seu ideal igualitário, mas pelo lado da sua fórmula política, que é, como se viu, a soberania popular”. E finaliza: “Hoje, Estados liberais não-democráticos não seriam mais concebíveis, nem Estados democráticos que não fossem também liberais” (BOBBIO, 1986, p. 42-43).

Bobbio assume, portanto, uma postura de confiança acerca do liberalismo, chegando ao apogeu de elencar o Estado liberal como um “critério de interpretação histórica” (BOBBIO, 1986, p. 30). Ou seja, embora reconheça que a relação entre o político e o econômico é fun- damental para a discussão sobre o liberalismo50 sua opção teórico-me-

todológica privilegia inteiramente a discussão no campo da “história do pensamento político liberal”.

Desta forma, percebe-se que a relação estabelecida predominan- temente nas reflexões de Bobbio acerca do liberalismo é de adesão e de crítica, de admiração e de reavaliação. Mas sempre privilegiando o “pen- samento liberal” e a discussão no campo da teoria política. Se isto faz dele um dos maiores teóricos do liberalismo do século XX, não resta dúvidas. Mas também demonstra que o autor nunca saiu deste campo teórico, mes- mo quando reivindicou para si um “socialismo liberal”51 (BOBBIO, 1986,

p. 79). O que parece bastante plausível é que Bobbio opta metodologica- mente por uma abordagem “teorético-crítica” do liberalismo descolando a

50 A tradição italiana distingue liberalismo (ético-político) e liberismo (econômico). No

caso de Bobbio há uma relação predominantemente crítica em relação ao liberismo.

51 A definição de Bobbio como um “liberal social” ou como um “socialista liberal” pa-

rece um campo interessante para estudo, mas seria amplo demais para os objetivos do presente artigo.

discussão do liberalismo econômico e do liberalismo político, o que, mes- mo respeitando sua opção metodológica, pode ser passível de críticas.

Para deixar mais nítida esta noção, o próprio Bobbio nos fornece uma segunda chave de leitura. Apesar de reconhecer que o grande proble- ma da relação entre liberais e socialistas é sobre a questão “econômica” e não “política”: “O pomo da discórdia foi a liberdade econômica, que pressupõe a defesa ilimitada da propriedade privada” (BOBBIO, 1986, p. 80), o filósofo ainda insiste em reclamar da falta de “integração” entre os ideais liberais (limitação dos poderes, afirmação de direitos individuais contra o Estado) e o ideais socialistas (igualização, justiça social, afirma- ção de direitos sociais, etc.).

Embora hoje, em regra, seja óbvia a relação de complementari- dade entre os chamados direitos individuais e os direitos sociais52, esta

noção não contorna o problema (político e econômico) entre liberalismo e socialismo, sobretudo nessa versão bobbiana. Veja-se o que Bobbio afirma quanto ao socialismo:

Por mais definições que se possam dar do socialismo do século passado (e foram dadas centenas), há ao menos um critério distintivo constante e determinado para distinguir uma doutrina socialista de todas as outras: a crítica da propriedade privada como fonte principal da “desigualdade entre os homens” (para retomar o conhecido discurso de Rousseau) e a sua eliminação total ou parcial como projeto da sociedade futura (BO- BBIO, 2000, p. 80).

Desta forma, essa noção de socialismo torna-se difícil de compa- tibilizar com o liberalismo (democrático), mesmo teoricamente.

52 Embora, para Bobbio, essa relação não seja tão simples, pois considera, na “Era dos

direitos” que a afirmação de uns pode representar a negação de outros (BOBBIO, 2004, p. 85-86).

Se democracia e liberalismo político são compatíveis e, além dis- so, “interdependentes”, então as noções trazidas no início do capítulo so- bre o conceito mínimo de democracia e o conceito mínimo de liberalismo são também compatíveis. Ora, a noção procedimental de democracia, em Bobbio, pressupõe um leque de direitos individuais anteriores às “regras do jogo” (BOBBIO, 1986, p. 12 e ss) e no rol destes direitos individuais do pensamento liberal, em regra, está o direito de propriedade privada.