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SEGURANÇA PÚBLICA E CIDADANIA

IN THE AGE OF RIGHTS.

Isaac de Luna RIBEIRO230

Resumo

O presente ensaio discute a questão da segurança pública no Brasil, em especial a violência policial, a partir da repercussão do filme Tropa de

Elite. O objetivo é chamar a atenção da Academia e de toda a sociedade

para a maneira avassaladora como as teses repressoras tem se instalado no seio acadêmico e social sem encontrar maiores resistências. O flagrante desrespeito aos direitos humanos que vem a reboque de tais discursos precisa de um posicionamento claro em defesa dos direitos hu- manos e dos postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito, luta que tem em Norberto Bobbio um dos seus principais expoentes. Palavras-chave: Segurança Pública. Violência policial. Direitos Humanos

230 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Especilista em ciência

Política Pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor Universitário e Advoga- do Militante na área criminal.

Abstract

This essay discusses the issue of public security in Brazil, especially the police violence, from the repercussions of the film Elite Squad (Tropa

de Elite).The aim is to draw attention of the Academy and of the whole

society to how the repressive thesis has been installed within academic and social without encountering major resistance. The flagrant disre- gard to human rights that comes in the wake of such discourses needs a clear position in defence of human rights and of fundamental postulates of the democratic rule of law, struggle that has in Norberto Bobbio one of its main exponents.

Keywords: Public Safety. Police violence. Human Rights Introdução

“Chamem o Capitão Nascimento!”. Assim, eufórico e indignado, reagiu publicamente o apresentador de televisão Luciano Huck, em arti- go publicado no Jornal Folha de São Paulo em 1º de outubro de 2007, relatando e denunciando o roubo que sofrera alguns dias antes, no qual foi subtraído, à mão armada, o seu relógio Rolex.

O mérito da sua indignação, contudo, trouxe a reboque, e de ma- neira muito mais contundente, inclusive para o que se pretende discutir neste artigo, uma enxurrada de reações populares, artísticas e acadêmicas que tendem a provocar um amplo debate acerca da violência e dos direi- tos humanos no Brasil.

Emblemático o que ocorreu poucos dias após a exibição do filme, quando acionados para debelar a rebelião de detentos no Presídio Aníbal Bruno, em Recife, os soldados do grupamento especial chegaram à uni- dade cantando o hit de Tropa de Elite: “Tropa de elite osso duro de roer,

pega um pega geral, também vai pegar você...”. O som era tocado repe-

tidamente pela viatura da companhia especializada; “A música faz parte da nossa mística. Ela é nosso combustível, assim como a farda preta” (declaração do comandante do BPChoque a repórter do JC)231.

Em um único site de relacionamentos pela internet existem 577 comunidades de apologia ao Capitão Nascimento, 1.000 comunidades apologéticas sobre o filme Tropa de Elite e mais de 400 fóruns discutindo qual a melhor frase do Capitão Nascimento (“Bota na conta do Papa” foi a favorita na maioria dos fóruns).

O seu pedido de socorro, dirigido ao Capitão Nascimento, per- sonagem interpretado pelo ator Wagner Moura no filme Tropa de Elite, traz consigo, assim, o bojo de toda uma questão que, apesar de não ser exatamente “nova”, permaneceu, durante as duas últimas décadas, restri- ta a curtos círculos acadêmicos, qual seja: a criminalização da pobreza, com a conseqüente “permissão” ou legitimação da violência oficial con- tra certas camadas da população, respaldada, máxime, em um discurso de deslegitimação dos direitos humanos, que, no dizer dos seus delatores, servem, atualmente, apenas para defender bandidos, quando deveriam, enfim, defender os “humanos direitos” (sic). É como se a tese do Capitão Segura, apresentado no lúcido Do Nunca Mais ao Eterno Retorno, pelo professor Luciano Oliveira, vigorasse incólume, nos dias atuais (moder- nos, democráticos, racionais...) - ou seja, a sociedade está dividida em duas classes: “a dos torturáveis e dos não torturáveis”.

Se há alguma possibilidade de ser factual essa permanência, cons- ciente ou inconsciente, da dicotomia sugerida pelo capitão cubano dos tempos ditatoriais de Fulgencio Batista na atualidade, faz-se então neces-

231 Disponível no site Pernambuco body count: <http://www.pebodycount.com.br/post/

sário uma análise sobre as estruturas sociais que permitem a manutenção de tal percepção, bem como de em que medida a democratização e a am- pliação formal da cidadania, ou não, podem influenciar nessa realidade.

Da mesma forma é problemática a questão da aceitação - quando não do apoio ou clamor - pela solução violenta dos conflitos que emer- gem das condições objetivas dessa estrutura social, uma vez que, em tese, a consolidação da democracia, a ampliação dos espaços de cidadania e a racionalização das escolhas e decisões (públicas e individuais) tenderiam a apontar para soluções menos violentas (ou vingativas) e mais inclusivas (ou compreensivas) para os conflitos sociais.

Porém, se os estereótipos dos capitães Segura e Nascimento con- tinuam a transitar livremente na sociedade democrática, regida por uma “Constituição cidadã” (alicerçada nos valores do humanismo), ou até mesmo a serem aclamados e desejáveis, onde buscar as respostas para tal fato? Quais são as causas possíveis de tal incongruência? Para que tipos de condutas desviantes são chamados os “Capitães”? Há alguma relação possível entre a estrutura social objetiva, os tipos de comportamentos e condutas de cada grupo social e a “escolha” de criminalização de tais atos, bem como a permissão da resolução violenta gestada dessa tensão?

Esses são alguns problemas que provocam o debate, público e acadêmico, suscitando, dessa forma, a investigação científica da reali- dade, sob uma perspectiva para além do viés meramente normativo (que não perde, por isso, a sua importância), como forma de contribuição das academias jurídicas na discussão sóbria e objetiva do tema.

O que se propõe, portanto, é uma discussão acerca da violação dos direitos humanos como vetor de propulsão da violência urbana, so- bretudo a decorrente dos crimes cometidos por indivíduos alocados nos estratos inferiores da sociedade, o que se buscará por meio de uma pes-

quisa sociojurídica232 orientada para as relações observáveis entre a es-

trutura social, criminalidade e direitos humanos, máxime no que tange as suas causas, conseqüências e legitimação.

Estruturas sociais e comportamentos desviantes: uma perspectiva sobre a gestação social do crime

O sociólogo norte americano Robert King Merton apresenta-se como um dos principais releitores da tradição funcionalista, que tem como o seu ícone maior o francês Émile Durkheim, sobretudo no que se refere à idéia de anomia (que será mais bem exposta mais adiante).

Ao estabelecer relações entre as estruturas culturais e sociais com a determinação dos comportamentos desviantes observados na socie- dade, o americano acabou por oferecer um substrato teórico para o de- senvolvimento de uma moderna teoria social (ou sociológica) do crime, além de aproximar, teoricamente, a análise funcionalista de uma perspec- tiva materialista da sociedade.

Na segunda parte da sua obra mais conhecida Teoría y Estruc-

turas Sociales, (publicada em 1949), busca definir o propósito da sua

investigação:

Nuestro primer propósito es descubrir cómo algunas estructuras sociales ejercen una presión definida sobre ciertas personas de la sociedad, para que sigan una conducta inconformista y no una conducta conformista. Si podernos localizar grupos peculiarmente sometidos a esas presiones,

232 Ao lado das orientações de Oliveira (2004, p. 137-167 e [s.d], p.122-127), atentar-se-

-á também para os cuidados e delimitações metodológicas atinadas por Baratta. In: BA- RATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002 (Coleção Pensamento

esperaríamos encontrar proporciones bastante altas de conductas diver- gente em dichos grupos, no porque los seres humanos que los forman estén compuestos de tendencias biológicas diferentes, sino porque ra- ciocinan de manera normal a la situación en que se encuentran 233.

Com esse enfoque, Merton retira a discussão acerca dos compor- tamentos desviantes do campo das análises biológicas e psicológicas e o traz para esfera da sociologia, abrindo o caminho para a moderna socio- logia criminal e para a moderna criminologia234.

A análise proposta pelo sociólogo tem início com a definição en- tre os diferentes elementos da estrutura social, estando os primeiros no campo dos objetivos ou metas culturais, que são propósitos e interesses culturalmente definidos, desejados e sustentados como legítimos por toda a sociedade de maneira mais ou menos uniforme: “Los objetivos están

más o menos unificados – El grado es cuestión de hecho empírico – y toscamente ordenados en una jerarquía de valores”235.

Ainda referente à estrutura cultural, encontram-se definidos os comportamentos institucionalizados, que são os meios legítimos, social- mente aceitos e aprovados para se atingir as metas socialmente definidas:

“En todos los casos, la elección de expedientes para esforzarse hacia objetivos culturales está limitada por normas institucionalizadas”236.

Dessa conformação, tem-se a base da estrutura social - ou seja, metas definidas e aceitas por todos os indivíduos como desejáveis para

233 MERTON, Robert King. Teoría y Estructura Sociales. 4ª. Ed. México: Fondo de

Cultura Económica, 2002. p. 209-210).

234 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Intro-

dução à Sociologia do Direito Penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002 (Coleção

Pensamento Criminológico, n. 1). p. 62-64.

235 MERTON, Robert King. Teoría y Estructura Sociales. p. 210. 236 Idem; Ibidem, p. 211.

se alcançar na sociedade - e a definição dos meios socialmente aceitos, permitidos ou legitimados pela sociedade para que cada indivíduo atinja as metas sociais definidas.

Por fim, há a estrutura econômico-social, que estabelece as relações objetivas na sociedade, ou seja, que determina as possibilida- des e oportunidades reais disponibilizadas ou acessíveis efetivamen- te às pessoas para a realização das metas sociais por intermédio dos meios institucionalizados.

Da tensão resultante dos componentes da estrutura sociocul- tural - que pode ser representada pela seqüência objetivos/metas/fins  normas/meios institucionalizados/aceitos  oportunidades/possi- bilidades reais de acesso - surge, na perspectiva de Robert Merton, a anomia:

La distribución de situaciones sociales mediante la competencia debe estar organizada de manera que cada posición comprendida em el orden distributivo tenga incentivos positivos para adherirse a las obligaciones de la situación social. De otra manera, como no tardará em verse con claridad, se producen conductas anómalas. Em realidad, mi hipótesis central es que la conducta anómala puede considerarse desde el punto de vista sociológico como un síntoma de disociación entre las aspiraciones culturalmente prescritas y los caminos socialmente estructurales para llegar a ellas (grifos nossos)237.

Isso significa que, para Merton, a anomia se apresenta no momen- to em que a estrutura socioeconômica da sociedade não oferece, possi- bilita ou disponibiliza para a maioria dos indivíduos associados o acesso aos meios institucionalizados para se atingir ou alcançar as metas cultu- rais definidas como desejáveis para todos.

Dessa tensão, enfim, emergem os comportamentos desviantes (que nem sempre são comportamentos criminosos).

Aqui surge, portanto, a necessidade de adaptação do indivíduo alijado dos meios institucionalizados à realidade social, denominadas pelo sociólogo em tela como conformidade, inovação, ritualismo, retrai- mento, ou rebeldia, conforme ilustradas no famoso gráfico demonstrati- vo criado pelo próprio Merton238: