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RANK TÍTULO UF MÉDIA DE CIRCULAÇÃO IMPRESSO

3. A IMAGEM, UM CAPÍTULO À PARTE NOS ESTUDOS DO DISCURSO

3.3 S IGNOS FOTOGRÁFICOS : ENTRE A REPRODUÇÃO E A PRODUÇÃO DA REALIDADE

3.3.1 O duplo testemunho fotográfico

Dada a sua origem e sua evidente função referencial, comum às formas figurativas, a fotografia (em especial, a jornalística) afirma a existência de um objeto, podendo servir como prova de um fato noticiado e, nessa relação, sugerir uma conexão direta entre a imagem fotográfica e o objeto representado. No entanto, pela observação de seus próprios aspectos morfoestruturais, como a perda da terceira dimensão, o limite dado pela moldura e a estaticidade, a imagem fotográfica deve ser compreendida como um recorte do real, “uma espécie de miniatura, uma pequena fração sobre o pano de fundo vasto do tempo e do espaço”, ou ainda como uma reconstrução: “a fotografia não só representa a realidade, como também a cria e, finalmente, é capaz de distorcer nossa imagem do mundo representado” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 127; 109).

Qualquer fotografia, podendo ser ícone e até tornar-se símbolo é, antes de mais nada, um indício ou índice da realidade, já que dá pistas para a realidade em que foi obtida e para a realidade que representa. É de realçar que o emprego da palavra “representa” é intencional, pois uma fotografia não é nunca o espelho da realidade. Pode representar a realidade, mas não espelhá-la. (SOUSA 2002, p. 76)

Base para tais postulados, Barthes (1990) explicita que a imagem não pode ser compreendida como um mero espelho da realidade. Partindo do pressuposto de que a estrutura e a significação da fotografia estão sempre correlacionadas a enunciados verbais, caracteriza a imagem fotográfica como uma construção enfática, organizada sob três principais mensagens: a mensagem linguística, a mensagem icônica não codificada e a mensagem icônica codificada. Nesses termos, à mensagem linguística são atribuídas duas funções: fixação (ou ancoragem), delimitando a

significação da imagem, ou seja, os sentidos possíveis dados por seu caráter polissêmico, e relais (ou revezamento), a relação de complementaridade entre o verbal e o não verbal, que convergem para um todo, uma mesma narrativa (BARTHES, 1990, p. 32-34). Por sua vez, a expressão imagética – mesmo a fotografia, que, em geral, possui maior proximidade com o objeto que representa – comporta duas mensagens: “uma mensagem denotada [não codificada], que é o próprio analogon, e uma mensagem conotada [codificada], que é a maneira pela qual a sociedade oferece à leitura, dentro de uma certa medida, o que ela pensa” (BARTHES, 1990, p. 13, grifo do autor). Em outras palavras, a imagem reúne em si duas mensagens: uma reprodução (literal, analógica) do real; e uma produção (simbólica, cultural e discursiva) do real.

Nesses termos, o autor descreve os procedimentos de conotação, que contribuem para a atribuição de um segundo sentido à mensagem (BARTHES, 1990, p. 15-19). São eles:

i. a trucagem, que se caracteriza pela introdução, pela modificação ou pela supressão de elementos em uma fotografia sem que se faça qualquer advertência acerca da manipulação da imagem, pode ser observada na capa a seguir. Pela inclusão de um peru – clara representação fálica, disposta próxima à mulher seminua, sobre um palco de pole dance e de costas para a câmera (e o leitor), empinando suas grandes nádegas, que rompem os limites da paginação –, atribui-se conotação sexual à disputa esportiva. Tal procedimento consiste, pois, em um truque fotográfico “para apresentar como simplesmente denotada uma mensagem que, na verdade, é fortemente conotada” (BARTHES, 1990, p. 16).

Figura 55: Capa do jornal Meia Hora de 14 de junho de 2019.

ii. a pose, que compreende os gestos e as expressões significativas do ser humano e, na capa seguinte, com a identificação dos abraços entre os companheiros de time e os braços erguidos dos jogadores rubro-negros, intensifica o sentimento de alegria pelas vitórias dos times cariocas.

iii. os objetos, dispostos em uma imagem fotográfica como meio de construir relações simbólicas, atribuem, por exemplo, um sentido conotado à fotografia da capa abaixo. Isso porque, na captura da cena fotografada, as bandeiras do Vasco e do Fluminense foram dispostas sobre as covas abertas20, sugerindo, dessa forma, o provável sepultamento iminente dos times cariocas, isto é, a possibilidade de rebaixamento à série B.

Figura 57: Capa do jornal Meia Hora de 02 de dezembro de 2018.

iv. a fotogenia, que consiste no “embelezamento” da fotografia pelo emprego de técnicas de iluminação, de impressão e de tiragem, pode ser observada em (quase) todas as imagens do fotojornalismo atual, que, em sendo produzidas e manipuladas digitalmente, sofrem diferentes formas de “retoque”. Na impossibilidade de acessarmos a fotografia original e confrontá-la às “tratadas”, propomos, como breve exemplificação, uma comparação da imagem da cantora Anitta em duas diferentes mídias. Na entrevista da revista Híbrida, pode-se observar não só o corpo de Anitta mais bronzeado que na capa do jornal Meia Hora, como também o espelhamento da fotografia, isto é, sua inversão para a direção contrária (tendo em vista a postura da cantora e, sobretudo, o cenário ao fundo) –

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Em consulta por email, o fotógrafo Luciano Belford confirmou-nos que, para “essa brincadeira”, levou, junto à equipe do jornal, as duas bandeiras ao cemitério, simulando o enterro dos clubes cariocas. Na composição dessa fotografia, portanto, as bandeiras não foram incluídas digitalmente – caso o fossem, comporiam uma trucagem.

indícios do tratamento a que a fotografia é comumente submetida em peças jornalísticas.

Figura 58: Capa do jornal Meia Hora de 31 de dezembro de 2017 (e de 1º de janeiro de 2018).

Figura 59: Fotografia de divulgação do clip Vai Malandra

Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2017/12/22/marcelo-seba-entrevista-vai- malandra/. Acesso em: 10 nov. 2019.

v. o esteticismo, a exploração estética da fotografia ao ponto de ela se assemelhar a uma pintura, é observado, por exemplo, na capa do jornal Extra. Apesar de os dois periódicos reportarem o gol de bicicleta do jogador rubro-negro Arrascaeta a partir de uma “mesma” fotografia (de mesmo plano, ângulo, linha, ênfase), a segunda capa confere à imagem fotográfica não só moldura e referência comuns a obras plásticas consagradas, como também efeitos artísticos que a aproximam de pinturas impressionistas – inserções que sobressaltam o “toque de arte” do gol, enfatizando, tal como as obras daquele movimento artístico, não a cena representada, mas a maneira como se realiza ao pintor/torcedor.

Figura 60: Manchete principal do jornal

Meia Hora de 26 de agosto de 2019.

Figura 61: Manchete principal do jornal

Extra de 26 de agosto de 2019.

vi. a sintaxe, por fim, é a disposição orientada e significante de duas ou mais fotografias (conforme detalharemos na última seção deste capítulo). No exemplo a seguir, na construção de uma metáfora verbo-visual, as fotografias (em close) dos “milicianos-figurinhas” são apresentadas enfileiradas, reforçando a “coleção” a ser (a)batida no “álbum da Civil”.

Figura 62: Capa do jornal Meia Hora de 04 de julho de 2019.

Tais pressupostos acerca das diferentes mensagens que podem emergir do signo fotográfico dialogam, portanto, com a diferenciação entre os sentidos de “língua X discurso” e os processos de “compreensão X interpretação”, proposta por Charaudeau (1995b)21. Se, de um lado, o sentido de língua equivale à significação descontextualizada das expressões verbais e visuais, apontando “instruções de sentido”; de outro lado, o sentido de discurso emerge de um processo inferencial que produz “deslizamentos de sentido”, condicionados, dentre outros fatores, pelo contrato de comunicação, pela intencionalidade do enunciador, pela relação entre as expressões constituintes do texto e o contexto situacional em que se insere o ato comunicativo. Paralelamente, a compreensão limitar-se-ia ao reconhecimento do sentido de língua, explícito em um texto a partir das funções morfológico-sintático- semântico-coesivas dos mecanismos linguísticos; e a interpretação, por sua vez, consistiria em estabelecer relações entre o sentido denotado das expressões e as condições sócio-pragmático-discursivas nas quais se realiza o ato linguageiro. Sumariza Feres (2006, p. 04): “O primeiro plano é percebido em um esforço de compreensão textual, e o segundo é apreendido em um movimento trans-textual, que ultrapassa o limite do concreto, do aparente; é o plano da interpretação.”.

21Em recente publicação, Charaudeau (2018) propõe uma revisão dos termos “compreensão”, que

passa a se referir ao resultado global da apreensão dos sentidos de um texto, e “interpretação”, que passa a indicar o conjunto das atividades de decifração anteriores à construção da compreensão. Optamos, no entanto, pela proposta anterior, que melhor se relaciona aos demais itens bibliográficos desta pesquisa.

Compreendemos, portanto, que, embora tenham traços estáveis e recorrentes, os signos (verbais e visuais) não são uma unidade autônoma cujo sentido possa amplamente ser definido fora do ato de linguagem. Logo:

Para se fazer compreender, ou para compreender o outro, é necessário saber selecionar e combinar os signos, de maneira a construir uma trama sígnica aparente, que representa o mundo (ou um mundo). Essa trama, ou texto, no entanto, mostra-se repleta de marcas, indícios de uma orientação externa a ela, do nível da interpretação, que a conforma: são as orientações vindas do que é discursivo, apoiado no social, no imaginário e no ideológico; ou oriundas do que é situacional, referente aos papéis desempenhados pelos sujeitos, à sua simetria (ou assimetria) na interação, ao momento/espaço da enunciação. (FERES, 2006, p. 04)

Nessa perspectiva, para além da mera identificação da cena ou dos objetos representados em um signo fotográfico, a interpretação, como um cálculo de sentido que parte da materialidade linguística e a relaciona a diferentes circunstâncias enunciativas, realiza-se também pelo levantamento de hipóteses acerca dos efeitos visados pela instância de produção (CHARAUDEAU, 2009, p. 31). Dessa forma, na comparação entre as duas fotografias seguintes (que ilustram a tragédia em Brumadinho, quando, pelo rompimento da barragem da Vale do Rio Doce, fomos tomados pela morte de centenas de pessoas e pela devastação da cidade), uma das questões que pode emergir é: Qual o efeito na seleção de imagens distintas?

Observamos, nesse sentido, que a fotografia do jornal Meia Hora, em plano aberto e ângulo picado (de cima para baixo), evidencia a dimensão do desastre, ao passo que a fotografia do jornal Extra, em plano médio e ângulo normal, destaca a figura (heroica) do bombeiro, que, coberto por lama, lança-se na tentativa de resgate de vítimas. Paralelamente, a parcela verbal de cada manchete aponta efeitos igualmente distintos. Se no jornal Meia Hora, destaca-se, sintaticamente, um sujeito agente (“a lama da Vale”) e a ação que (possivelmente) exerce (“pode ter matado mais de 300”), no jornal Extra, ao contrário, o título “Brasil chora Brumadinho” suscita, sobretudo, a empatia/sensibilização do público-leitor em relação às vítimas e aos militares que se arriscam nas buscas. Dessa forma, pela análise das imagens fotográficas – em especial, pela ancoragem das expressões linguísticas –, um questionamento interpretativo que poderia surgir seria: Do ponto de vista mercadológico e político, a que interessa ao jornal enfatizar (ou não) a responsabilidade da empresa milionária na morte de centenas de pessoas e na devastação da cidade de Brumadinho?

Figura 63: Fotografia na manchete do jornal Meia

Horade 27 de janeiro de 2019.

Figura 64: Fotografia na manchete do jornal Extrade 27 de janeiro de 2019.

A correspondência do significante fotográfico com o objeto que representa é, portanto, dual: de um lado, pela similaridade com traços constituintes do objeto, corresponde ao mundo por natureza icônica; de outro, pelas relações de contiguidade e causalidade com o objeto, como na reflexão da luz no momento de sua produção, corresponde ao mundo também por sua natureza indicial. Retomando essas premissas da semiótica peirciana, Santaella e Nöth (1998, p. 144) defendem ser indexical a função referencial de fotografias, visto que esse signo imagético mostra um objeto singular e existente na realidade, afirmando sua existência. Há, todavia, segundo os pesquisadores, graus de indexicalidade: a imagem fotográfica, afastando-se de sua secundidade, pode deslocar-se em direção à primeiridade ou à terceiridade.

Como exemplificação da possibilidade de os signos fotográficos aproximarem-se do nível da iconicidade ou da simbolicidade, exploramos as duas obras seguintes (tal como SILVA, 2015, p. 80-82). Em primeiro, a fotografia A bailarina, embora construída a partir de cliques sobre a copa de uma araucária, perde, sob a intervenção do artista, seu estatuto figurativo e, como um signo degenerado, apenas sugere algo, como o movimento, um traço do real. Em segundo, o registro fotográfico do protesto contra os cortes orçamentários nas instituições públicas de ensino aproxima-se, pela crucificação da educação, de uma generalização: trata-se, pois, de uma imagem-símbolo, que alude a uma categoria geral (o martírio de todo o sistema educacional brasileiro), consistindo, por

codificações e convenções sociais, em um legi-signo, uma transformação do próprio real.

Figura 65: Fotografia A bailarina, de German Lorca (1965).

Figura 66: Fotografia do protesto no RJ contra cortes na Educação.

Disponível em:

https://web.facebook.com/itaucultural/po sts/10157100508739369/?_rdc=1&_rdr. Acesso em: 10 nov. 2019.

Disponível em:

https://exame.abril.com.br/brasil/veja-fotos-dos-protestos- de-30m-pela-educacao-em-sao-paulo-e-rj/. Acesso em: 10 nov. 2019.

De forma muito semelhante, opõem-se as duas fotografias abaixo. A primeira, integrante da fotografia modernista brasileira, como um signo degenerado, constitui-se por linhas que, sem estatuto figurativo, apenas sugerem o movimento, a dinamicidade, a fugacidade. A segunda, por seu turno, ao apresentar uma figura feminina recolhendo projéteis ao chão, pode, metonimicamente, representar os inúmeros confrontos armados a que a população carioca – especialmente, a mais carente – é submetida; esta fotografia apontaria, pois, uma generalidade, que, ultrapassando os limites da cena ilustrada, fundamentaria um símbolo.

Figura 67: Fotografia Composição L (1960), de Georges Radó.

Figura 68: Fotografia de Mauro Pimentel (2018)

Disponível em:

http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obr a64935/composicao-l. Acesso em: 10 nov. 2019.

Disponível em:

https://theintercept.com/2018/12/05/disque-denuncia- adiantou-invasoes-rocinha/.Acesso em: 10 nov. 2019.

Nesse sentido, sumarizando a relação tecida por Silva (2015, p. 80 - 82) entre as perspectivas fotográficas propostas por Dubois (2012) e as categorias sígnicas de Peirce (2008), propomos este quadro:

Perspectiva sobre a fotografia (DUBOIS, 2012)

Correlação com a classificação dos signos

(PEIRCE, 2008) Fotografia como mimese: reprodução fiel e objetiva do real;

espelho do mundo, uma verdadeira mensagem sem código.

ÍCONE Semelhança Fotografia como traço do real: compreensão de que existe na

fotografia a marca indelével da presença do referente que, como um lastro, registra sua existência na superfície fotossensível.

ÍNDICE

Contiguidade (um rastro do real)

Fotografia como transformação do real: defesa de que a fotografia opera mudanças de toda a sorte sobre o real enquadrado na imagem (a partir de aspectos técnicos, ideológicos e antropológicos)

SÍMBOLO Codificação, Convenção

Tabela 05: Perspectivas fotográficas e categorias sígnica – do autor.

Dessa forma, conclui a pesquisadora que “a fotografia é um duplo testemunho, ou seja, ela revela não só o fragmento congelado do momento passado e eternizado pela imagem, como também informa sobre as perspectivas discursivas e ideológicas do seu tempo” (SILVA, 2015, p. 83). Na investigação criteriosa dessas perspectivas reveladas pela fotografia, é de fundamental importância a observação de seus aspectos estruturais e respectivos efeitos de sentido, como resumimos a seguir.