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E LITISMO PSICOLÓGICO E SUBORDINAÇÃO INTELECTUAL

O centro das teses da psicologia social, em vários de seus “gêneros”  a psicologia das multidões, a psicologia dos povos, a psicologia política etc. , se baseia na crença no

indivíduo como origem da criatividade artística, da inovação científica e da transformação

política e, por oposição, na depreciação do coletivo, do mediano e da massa. Levando-se em consideração essa crença, entende-se melhor a indignação que as teses da sociologia durkheimiana geraram, pois as “massas” entravam para a história supostamente através das médias estatísticas e da “consciência coletiva”. O horror ao medíocre e a deificação do “gênio” individual (como expressão do coletivo) estão de tal forma arraigados no pensamento desses autores e de tal modo independem da teoria mais geral que os recobre  evolucionista, raciológica, climática etc.  que podem ser considerados parte de uma disposição geral ligada a toda ciência mental do período. Nas próprias práticas da psiquiatria clínica e hospitalar do fim do século, essa crença gerou dois tipos de profilaxia: o tratamento da histeria deveria basear-se na “vontade” racional ou discursiva dos pacientes “esclarecidos”, clientes das clínicas privadas, e, por oposição, utilizar a hipnose ou a “crença” dos internos, provenientes das classes populares, atendidos em hospitais públicos como a Salpêtrière. Se, ao longo do século XIX, o elitismo foi um traço permanente da cultura intelectual francesa, científica ou literária, na última década do século novos significados foram acrescentados a essa disposição. O elitismo fin-de-siècle resultou do processo de mudança estrutural do campo intelectual em razão das reformas educacionais republicanas que democratizaram o acesso à educação primária, secundária e superior, o que permitiu a ascensão de setores da média

36 KALUSZYNSKI, Martine, “Identités professionnelles, idéntités politiques: médecins et juristes face au

burguesia a postos universitários e tornou a competição no campo mais acirrada. Em segundo lugar, à mudança do campo editorial, de modo que os novos públicos escolarizados tornaram- se alvo de coleções e revistas científicas, políticas ou literárias. Esses processos produziram uma mudança na linguagem e no estilo textual das teorias científicas voltadas para o “grande público”, o que pode ser demonstrado pelo discurso da psicologia das multidões, que não é erudito ou aristocrático nem muito menos científico ou racional; ele se expressa através de um estilo extravagante, caricato, em suma, “popular”, resultado da abertura das posições heterônomas do campo intelectual aos campos político e jornalístico. É possível esboçar o “espírito da psicologia social” a partir dos seguintes traços ideal-típicos: 1) o elitismo; 2) o ecletismo teórico (materialista e idealista); 3) o tema da “mentalidade coletiva”; 4) a opção pelo público amplo; e 5) o engajamento político através da obra.

Se se considera, por exemplo, os arquivos pessoais de Gabriel Tarde, nota-se a obsessão com que ele catalogou e arquivou todos os jornais da pequena, média e grande imprensa nos quais seu nome foi citado, bem como a importância que deu às notícias cotidianas (crimes, debates parlamentares, greves, questões internacionais) para a ilustração de sua teoria social. Um processo de trabalho que nivela fontes diversas e se deixa nivelar pela opinião jornalística, mas que, ao mesmo tempo, apresenta uma grande preocupação com sua imagem pública e com a distinção intelectual. Teme-se a queda na vala comum do jornalismo, o que exige investimento em títulos acadêmicos, que por outro lado encontram a barreira da titulação universitária oficial. Ora, uma vez nessa posição intermediária, a de um “intelectual livre” que não pretende ser um simples publicista e não pode ser um universitário, torna-se fundamental investir numa rede de relações sociais que dê acesso aos meios de circulação e de reconhecimento intelectual (sociedades científicas, escolas livres, centros de conferência, congressos). Os cartões de apresentação e, principalmente, as publicações em revistas e em editoras diversas espelham o ímpeto do acúmulo de títulos dos “intelectuais livres”, que parecem valer mais pela quantidade do que pela qualidade. Pois a essa necessidade premente dos psicólogos corresponde o surgimento, nos anos 90, de várias instituições novas que ainda não têm valor simbólico no campo, bem como de novas funções, operadas por “intermediários culturais”, que se diversificam para atender a um mercado de leitores ampliado. Os cartões de visita dos “intelectuais livres” são repletos de títulos supostamente enobrecedores provenientes da participação em instituições pouco nobres, uma característica típica dos meios intermediários e que revela a ambigüidade dessa posição no que diz respeito à distinção intelectual.

Nesse sentido, o que chamo de “individualismo psicológico” deve ser compreendido como uma representação invertida da posição que os psicólogos sociais ocuparam no campo e no espaço social: em primeiro lugar, porque ela naturaliza a vocação intelectual, através do conceito de “gênio individual”, quando sua própria sobrevivência no campo exige grande capital de relações sociais e, em segundo lugar, porque ela desqualifica o “grande número” (na forma da multidão) quando sua sobrevivência no campo depende da capacidade de ter leitores fora do âmbito especializado da universidade. O complemento necessário dessa rede de dependência é a disposição “moderada”, típica entre os psicólogos, o que explicaria a ausência da psicologia social entre os signatários do Manifesto dos Intelectuais, em 1898, em defesa de Dreyfus. O manifesto chamado Apelo à União era mais condizente com a posição que ocupavam no campo ou, então, a opção pelo silêncio, como é o caso de Le Bon (apesar de suas convicções anti-dreyfusards), que revela a fragilidade extrema de sua posição e a grande dependência de capital de relações sociais.

Ainda que alguns psicólogos sociais tenham alcançado maior prestígio intelectual em relação à sua posição original, alguns deles, como é o caso de Le Bon, expressaram certo ressentimento em relação ao prestígio proveniente dos títulos universitários ou acadêmicos. Ele permaneceu um outsider durante toda a vida e não foi incluído nem mesmo no pólo das instituições socialmente dominantes, tais como o Instituto. Outros, como é o caso de Gabriel Tarde, ascenderam aos mais altos postos para um intelectual sem credenciais acadêmicas (Collège de France e Académie des Sciences Morales et Politiques), resultado da maneira como soube, uma vez em Paris, aumentar seu capital social. Ambos, contudo, fizeram ataques à especialização universitária, ainda que por motivações distintas: para Le Bon os professores universitários eram favorecidos pelo poder político, pois do ponto de vista de um “intelectual livre” e que vivia da própria pena as reformas universitárias privilegiavam os graduados em detrimento dos “autônomos”. Para Tarde o ataque à especialização foi devido à sua proximidade com o pólo filosófico cuja legitimidade estava sendo supostamente ameaçada pelas disciplinas cientificas, em particular a economia e a sociologia. Ambos intentaram inverter no discurso a distribuição de prestígio no campo: Tarde exaltou a “era da opinião pública” e Le Bon seus records de vendagem em detrimento do público restrito da sala de aula.

Essas disposições contrárias à universidade são provenientes de uma cultura intelectual, forjada nos anos 70, especificamente através da Revue Philosophique, em que a posição do “intelectual livre”, ou seja, não universitário, exprimia um significado subversivo em relação à ordem filosófica e psicológica vigente na universidade. Os sorbonnards, como

foram chamados os filósofos espiritualistas como Elme Caro e Paul Janet, representavam o discurso oficial, contra o qual a nova psicologia experimental e fisiológica lutava. Nos anos 90, contudo, a filosofia e a psicologia universitárias passaram a ser ocupadas pelos psicólogos experimentais ou sociólogos evolucionistas, como Théodule Ribot e Alfred Espinas, mas o mesmo não ocorreu com os psicólogos sociais em razão da falta de credenciais acadêmicas.

A crítica à especialização e a valorização de um público mais amplo pode ser associada, além da posição da psicologia social em relação às outras ciências sociais, ao modo como se deu a formação e a profissionalização dos psicólogos. Uma formação relativamente autodidata é possivelmente um fator importante dos autores “ecléticos”, caracterizados pelo ímpeto de aliar teorias sociais diversas. O repertório típico desses autores mistura teorias raciológicas, climáticas e culturalistas. O estilo de Taine, de Les origines de la France

contemporaine, pleno de referências literárias e de dramatização histórica, impregna essas

obras e as situam numa posição intermediária entre o pólo científico e o pólo literário, num período em que eles se opunham e que a figura do grand homme que Taine encarnava estava em extinção37. Os psicólogos sociais atingiam mais de 50 anos na década de 90 e, alheios aos centros de inovação controlada, traziam na bagagem o capital intelectual requerido pelo público não especialista; ao mesmo tempo, sobrevivendo como escritores de manuais escolares, de best-sellers, de artigos de jornal ou revista literária ou como professores em instituições privadas, seu destino estava determinado por esse mesmo público.