• Nenhum resultado encontrado

T RAJETÓRIAS DOS PSICÓLOGOS SOCIAIS : CARÊNCIAS SOCIAIS E INTELECTUAIS

Alfred Fouillée e Emile Boutmy comungaram com Tarde e Le Bon uma mesma geração intelectual e mesmo biológica  todos nasceram entre 1835 e 1943  e escreveram suas “psicologias” num mesmo momento da trajetória intelectual, entre 55 e 60 anos de idade, ou seja, numa mesma década, entre 1895 e 1902. Tiveram destinos cruzados: Tarde foi professor da École Libre des Sciences Politiques, fundada por Boutmy; Fouillée foi patrono de Tarde na eleição deste para a Académie des Sciences Morales et Politiques, em 1899, instituição que reuniu Boutmy, Fouillée e Tarde; Tarde foi freqüentador dos salões de Le Bon, desde 1894, recém chegado a Paris. Além disso, eram homens já formados na década de 90, seus valores filosóficos e políticos maduros demais para acompanhar as inovações intelectuais

37 CHARLE, Christophe, Paris fin-de-siècle: culture et politique, Paris, Seuil, 1998; LEPENIES, W., As três

do fim do século, o que lhes encorajava a avaliar essas mudanças antes como ameaças do que como progressos na produção do conhecimento em geral e das ciências sociais em particular. A sociabilidade desses circuitos, ou seja, a necessária aquisição de capital social que implicava a ascensão na carreira aproximou esses dois grupos em certos momentos e minimizou a tensão proveniente de interesses conflitantes.

O valor heurístico das trajetórias está em que elas marcam posições, ou melhor, uma seqüência de posições às quais estão associadas tomadas de posição. Se considerarmos apenas os quatro autores citados acima, é possível observar que os psicólogos sociais são de famílias provenientes da média burguesia profissional ameaçadas de decadência social38. As dificuldades financeiras e a instabilidade na formação escolar marcaram as trajetórias de Le Bon, Tarde, Fouillée e Boutmy. O que há de comum nessas quatro famílias é o fato dos chefes terem falecido cedo ou terem tido problemas financeiros quando os filhos ainda estavam em idade escolar. O pai de Le Bon, segundo consta, era um “agente de hipotecas” (receveur

d’enregistrement), o que parece ter sido uma função letrada, mas subalterna, numa cidade

pobre e de feições rurais, Nogent-le-Rotrou (Vale do Loire). Le Bon nasceu e fez a escola comunal nessa cidade, posteriormente migrando para Tours para fazer o liceu39. Segundo um amigo e pertencente ao seu círculo, foi um aluno medíocre40. Em seu primeiro emprego, na administração de contribuições indiretas, tentou seguir a tradição profissional da família, mas numa posição ainda mais inferior, como surnuméraire, funcionário sem titulação e estabilidade. Le Bon parece não ter obtido o baccalauréat, mas foi aceito no curso prático de medicina (officier de santé) da Faculdade de Medicina de Paris, um curso mais rápido e de menor prestígio do que o de medicina e que seria extinto na década de 90. Depois de cursar apenas dois anos, ou seja, metade do curso, ele solicitou o diploma ao Dr. Piorry 41 e, a partir de então, ingressou na carreira de vulgarizador científico com o título de “Dr. Le Bon”, escrevendo sobre higienismo, antropologia, história das civilizações e psicologia.

O pai de Tarde era magistrado na região de Dordogne, mas morreu quando ele tinha sete anos. Tarde foi educado num colégio interno, jesuíta, o que influenciou fortemente sua visão do mundo, a ponto de ter matriculado seus filhos, muitos anos depois, já em Paris, também num colégio religioso. Pretendia fazer a École Polytechnique, mas as dificuldades de

38 Cf. o Anexo 10  Origem Social e Formação Escolar  Pólos do Poder Social e Intelectual.

39 Le Bon vem de uma família cujo trabalho exigia a escrita, o que o diferenciava num meio rural: “Ele [o

pai de Le Bon] é mais facilmente sensível ao discurso originário das elites sobre o saber livresco. Ao mesmo tempo, o nível de renda exclui uma educação no modelo dos dominantes, ou seja, freqüentemente em domicílio com um preceptor”, MARPEAU, Benoît, Gustave Le Bon: parcours d’un intellectuel, op. cit., p. 23.

40 PICARD, Edmond, Gustave Le Bon et son œuvre, Paris, Mercure de France, 1909. 41 Pierre Adolphe Piorry (1794-1879), um grande nome da medicina francesa da época.

saúde e a situação financeira impuseram uma escolha mais realista: seguir a carreira do pai. Seu problema de visão (sofria de uma espécie de conjuntivite crônica) o tirou da escola por muitos anos e é de maneira solitária e com dificuldade que conseguiu acumular algum capital intelectual quando estudante.

O pai de Fouillée era administrador de uma empresa de extração de ardósia, em La Pouëze, pequena cidade do Pays de Loire, mas foi à falência quando ele ainda estava em idade escolar, o que o levou a trabalhar cedo, tornando-se professor do ensino primário (maître d’études) em Laval, onde também fez o liceu. Apesar de autodidata 42, conquistou o primeiro lugar no concurso de agregação em filosofia, em 1864, o que abriu as portas para a docência nos liceus de Douai e Montpellier e, em seguida, na Faculdade de Letras de Bordeaux, até chegar a maître de conférences na École Normale Supérieure. Teve sua carreira fortemente marcada pelas relações políticas, tornando-se inspirador da doutrina “solidarista” de Léon Bourgeois (1851-1925)43. Deixou a carreira na École Normale Supérieure, em 1879, após quatro anos de docência, por motivo de saúde, para se dedicar à publicação de manuais escolares de filosofia. Tornou-se parte, portanto, da vertente publicista dos normalistas.

O pai de Boutmy foi ligado aos negócios, mas segundo consta não num posto estável e sim como amigo de gente importante, como é o caso de Émile Girardin, dono do jornal La Presse. Morreu arruinado quando Boutmy tinha 13 anos, deixando-lhe a tarefa de educar dois outros irmãos, objetivo que lhe impôs o abandono dos estudos e o ingresso no mercado de trabalho44. Sua formação intelectual, portanto, ficou comprometida por dificuldades financeiras familiares e foi instabilizada pela necessidade de prover cedo o sustento familiar. Contudo, o capital social deixado por seu pai lhe garantiria um futuro promissor, pois através dele conquistou os salões e o mundo das letras, ou seja, a aristocracia e a alta burguesia parisiense. Apadrinhado por Girardin, trabalhou como publicista em vários jornais editados por ele; tornou-se amigo íntimo de Taine, que foi seu professor no Liceu Henri IV e foi indicado por ele para o curso de “história das civilizações” na École Spéciale d’Architecture, uma escola “livre” em que Girardin era da comissão diretora. Ao fundar uma escola privada para formar novas elites, Boutmy tinha um capital de relações sociais considerável, mas

42 A questão é controversa. O verbete dedicado ao autor em La Grande Encyclopédie afirma que ele foi

aluno da École Normale Supérieure, mas W. Logue afirma que ele estudou solitariamente (com a ajuda de seus professores) para o concurso de agregação, cf. LOGUE, William, From Philosophy to Sociology: The Evolution of French Liberalism, 1870-1914, Illinois, Northern Illinois University Press, 1983.

43 Deputado radical e ministro da Instrução Pública entre 1890 e 1898, presidente do Conselho (1895-96),

promotor da solidariedade internacional, prêmio Nobel da Paz de 1920.

também uma confiança na “iniciativa privada” que herdara desses meios e do modo como se deu sua profissionalização.

Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, conhecidos como psicólogos das multidões, são os autores que mais sofreram os constrangimentos de um campo intelectual em processo de profissionalização: sem as credenciais universitárias de Fouillée e sem o capital de relações sociais de Boutmy, sua permanência no campo exigiu esforços brutais. Tarde seguiu o percurso de Fouillée e se aproximou da ala “filosófica” e das instituições de reconhecimento intelectual em que ela tinha peso, como a Académie des Sciences Morales et Politiques, mas essa opção lhe custou a perda de prestígio entre os intelectuais do pólo científico. Le Bon seguirá o percurso do segundo, tornando-se, em 1902, aos 61 anos, um “intermediário cultural”, ou seja, diretor da coleção Bibliothèque de Philosophie Scientifique, uma estratégia coerente com sua longa trajetória de autor de vulgarização científica.

É possível identificar na trajetória desses autores disposições associadas ao que se poderia denominar o “espírito da psicologia social”. Todos os quatro autores são originários da classe média em risco de decadência e passaram por um processo de formação escolar instável, pois acelerado pelas necessidades práticas da vida, o que deve ter influenciado esquemas de percepção que produziram uma visão “ética” ou “pragmática” das ciências sociais. Ao mesmo tempo, vieram de famílias sem cultivo intelectual e romperam com a tradição profissional dos pais, o que deve ter gerado uma mistura sui generis de ambição e de insegurança que permeou a escolha de uma disciplina aparentemente inovadora, mas essencialmente conservadora: a psicologia social.