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Ao longo do século XIX, o modo de reprodução das elites francesas permanece praticamente inalterável até a Terceira República13. O recrutamento pela tradição familiar no

campo dos negócios se mantém, inclusive, após esse período, não obstante uma meritocracia restrita estivesse sendo paulatinamente incorporada à seleção para a alta administração e, principalmente, ao recrutamento universitário. No fim do século, os filhos de famílias mais abastadas continuaram a ocupar as funções no campo dos negócios, enquanto a administração pública e a universidade se abriram um pouco mais aos filhos de famílias burguesas menos abastadas. Comparando-se o modo de reprodução das três elites  de negócios, da alta administração e universitária , passa-se progressivamente, segundo Charle, de uma lógica mais hereditária e socializada a uma lógica mais conquistada e intelectualizada. Entre 1880 e 1900 os “grandes notáveis” entram em decadência e esse é o período em que frações médias da burguesia começam a assumir postos no poder. À medida que a antiga aristocracia e a burguesia fundiária cederam espaço à burguesia industrial e intelectual, o conceito de meritocracia passou a ser a ideologia dos “novos notáveis”. A função social do ensino secundário e superior tornou-se, portanto, uma questão sensível nesse período, pois a escola passou a controlar a ascensão aos postos de poder, através de concursos e títulos, bem como a atribuir prestígio a grupos menos providos de capital econômico ou social herdado. Com as reformas do ensino, a partir dos anos 80, entrou em declínio a estratificação educacional tradicional, em que a alta burguesia cursava as grandes escolas e as frações mais baixas o secundário prático (e não o clássico). Para aqueles cuja profissão é ensinar, o controle sobre essa função tornou-se ainda mais premente, dado que seu futuro ou sua dinastia imediata estava em jogo.

Não obstante o recém instituído fundamento democrático e meritocrático, as primeiras décadas da Terceira República consumaram uma meritocracia restrita: as elites políticas e econômicas se distanciaram cada vez mais das elites intelectuais e estas passaram a ocupar uma posição dominada no campo do poder. Esse isolamento foi o resultado, no caso da universidade, da elaboração de regras próprias de carreira nas últimas décadas do século. Ao mesmo tempo em que seu poder político diminuía, aumentava, por outro lado, seu poder propriamente intelectual, o que se observa pelo fato de que era cada vez mais raro a carreira

dupla. Por outro lado, a autonomia recém-conquistada variou dependendo da instituição, uma vez que o ensino superior não deixou de expressar e reproduzir a distância relativa das faculdades e grandes escolas em relação ao campo do poder: enquanto os filhos de famílias mais abastadas ingressavam nas grandes escolas ou nas tradicionais Faculdade de Direito de Paris e, no fim do século, na Faculdade de Medicina de Paris, os das famílias menos abastadas entravam na Faculdade de Letras e de Ciências de Paris (Sorbonne) à espera de uma bolsa. O corte sociológico dentro do próprio campo do ensino superior é correlato ao grau de autonomização e de especialização em cada área do conhecimento, uma seletividade relacionada à função de cada instituição ou área do conhecimento na reprodução das elites em geral. Os cursos e disciplinas mais profissionalizantes, como os de Direito e, progressivamente, de Medicina, foram os mais lentamente transformados e mantiveram por mais tempo a marca da base material e social das famílias, enquanto nas faculdades de recrutamento social mais aberto, como a de Ciências e, em menor medida, de Letras, a inovação científica foi maior. Ainda que antigas e novas elites pudessem se encontrar nas mesmas instituições de ensino superior, a função da escola em sua trajetória era distinta: enquanto as elites tradicionais estavam atrás do novo prestígio, para além do capital econômico e social herdado, as novas elites buscavam adquirir capital cultural e de relações sociais. A École Libre des Sciences Politiques, por exemplo, foi um ponto de encontro entre essas duas elites em disputa por postos na administração pública. Se, como afirma Charle, menos o recrutamento social de uma categoria da elite é seletivo mais, em geral, esse grupo se encontra numa posição globalmente dominada no seio das elites, os cursos de Direito e Medicina tinham uma posição socialmente dominante em relação ao de Letras e este, por sua vez, uma posição intermediária entre esses cursos e o de Ciências. Outra forma de demonstrar a autonomia diferencial nas quatro áreas do conhecimento é comparar o grau de formação e de profissionalização das carreiras universitárias, a cultura de pesquisa e a criação de novas carreiras e cursos. Por outro lado, cada uma das áreas do conhecimento tem seu pólo heterônomo, ou seja, reticente em relação ao estabelecimento de critérios verdadeiramente meritocráticos e de excelência intelectual: no caso das ciências isso se deu pela função substituta da religião, no caso das letras pelo papel de guardiãs da cultura francesa e, no do direito, pela preservação da ordem jurídica14.

O fim do século XIX representa, portanto, um momento em que a universidade deixava para trás a herança napoleônica que a tinha transformado num grande “corpo do

Estado”  marcado pelo ethos da alta administração pública e pela função oficial de expressão da cultura francesa e de formação profissional  para assumir papéis mais autônomos de centro de pesquisa. A tensão entre a antiga e a nova função variou dependendo da área do conhecimento e da faculdade, mas pode-se recortá-la a partir dos eixos “ensino e pesquisa” ou “cultura e ciência”, categorias típicas que, usadas pelos intelectuais, deram significado às lutas no campo15.