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F ILOSOFIA VERSUS S OCIOLOGIA : ANTIGAS E NOVAS DISCIPLINAS

Essa mesma tensão entre o clássico e o moderno existiu na reforma do programa do curso de filosofia para o secundário, na medida em que se debatia a proporção em que ele incluía, de um lado, os temas da filosofia espiritualista tradicional e, de outro lado, os da Psicologia Experimental ou da Sociologia40. Elaborado por Gustave Belot, pedagogo, professor do Liceu Louis le Grand e inspetor geral do ensino41, o programa de 1902 incorporou apenas perifericamente as disciplinas modernas. O conteúdo do curso de filosofia, presente no último ano e considerado uma espécie de síntese do processo de formação, incorporou um único tema da Psicologia Experimental de Pierre Janet e Georges Dumas  o “automatismo psicológico”  e, significativamente, da Psicologia Social de Gabriel Tarde  a “simpatia e a imitação”  mas excluiu totalmente a sociologia durkheimiana. Essa seletividade exprime uma aceitação maior da psicologia  experimental ou social  do que da sociologia por parte dos filósofos, uma proximidade que tem origem no acordo em relação a alguns valores filosóficos, tais como a “liberdade individual”, mas também por causa das redes de sociabilidade intelectual. No mesmo ano, ou seja, em 1902, Tarde passou a freqüentar as sessões da Sociedade Francesa de Filosofia, provavelmente levado por Émile Boutroux, da Academia de Ciências Morais e Políticas, e se aproximou de Gustave Belot, de quem era admirador e por quem foi convidado a ser o comentarista de sua apresentação na Sociedade42. Além disso, Belot e Tarde eram ligados às redes de Dick May, ministraram cursos em suas escolas e publicaram em sua coleção. Durkheim só passou a freqüentar a Sociedade Francesa de Filosofia a partir de 1906, ou seja, após a morte de Tarde.

Outro indicador interessante sobre o grau de abertura da filosofia em relação às disciplinas modernas pode ser obtido a partir de uma enquete realizada por René Worms, na

40 FABIANI, Jean Louis, Les philosophes de la République, Paris, Minuit, 1988.

41 PINTO, Louis, “Le détail et la nuance: la sociologie vue par les philosophes dans la Revue de

Métaphysique et de Morale – 1893-1899”, Revue de Métaphysique et de Morale, no 98, 1993, p. 156.

42 Numa carta de Tarde a Xavier Léon, Tarde se exprime da seguinte maneira sobre Belot: “O senhor Belot

deve ter avisado que, na próxima sessão da Sociedade de Filosofia, do dia 24 corrente, eu comentarei sua tese. Ele me pediu, e eu prontamente aceitei, seja por lhe testemunhar minha simpatia, já antiga, seja para aproveitar a ocasião e entrar em contato com a Sociedade de Filosofia que, a julgar pelo Boletim e pela Revue de Métaphysique et de Morale, é muito interessante”, Paris, 19 de agosto de 1902. Fundo Xavier Léon, Acervo Victor Cousin, Sorbonne, Ms. 388.

Revue Internationale de Sociologie, em 1899, sobre o ensino de sociologia no secundário43. Os argumentos dos entrevistados  professores universitários, professores do secundário e publicistas  podem ser distribuídos a partir de sua posição no campo. Os publicistas, como Jean Bourdeau, afirmam que a sociologia simplesmente não é ainda uma ciência, e muito menos uma ciência especial, e deve ser compreendida como um conjunto de ciências sociais ainda em fase de constituição; os professores ligados ao ensino secundário, como Marcel Bernés, acreditam que a sociologia deva ser abordada de maneira diluída nos módulos de psicologia e de moral e que, portanto, não haveria necessidade de módulos especiais; além disso, a dimensão política do ensino de sociologia  a chamada “questão social”  é vista com receio em razão da possível recepção “dogmática” e “abstrata” por parte dos alunos. Alfred Fouillée, escritor de manuais escolares, ligado a setores políticos e membro das redes da filosofia pedagógica, também afirma, como Bernés, que a sociologia tem uma função política, motivo pelo qual ela deve ser ensinada com o fim de criticar a “idolatria ao coletivismo alemão”. A ênfase na dimensão pedagógica da sociologia, típica dos setores ligados ao ensino secundário ou publicista, geralmente é acompanhada por uma opção epistemológica a favor da psicologia como fundamento das ciências sociais. A opinião de Fouillée é reveladora nesse sentido, pois nos tópicos de sociologia sugeridos por ele para inclusão nas seções de moral e de psicologia há um completo silêncio em relação a temas típicos da sociologia durkheimiana. Por outro lado, o programa contém outros temas que revelam claramente sua posição na disputa disciplinar a favor da psicologia, tais como, por exemplo: “a subordinação das leis biológicas às leis psicológicas em sociologia”, “a importância da simpatia, da imitação e da invenção, da vontade e da cooperação voluntária” e “as nações e a psicologia dos povos”. As opiniões de Durkheim, também publicadas na sondagem, se opõem às de Fouillée. Para ele, ainda que um professor de filosofia portador de uma “cultura sociológica” pudesse dar conta dos tópicos sociológicos, a sociologia é superior em valor científico e tem sua própria especificidade em relação à filosofia e à psicologia: “(...) na realidade, a sociologia deve estar em todos os lugares no ensino filosófico, pois as funções psicológicas superiores são inexplicáveis se não se as relaciona com suas condições sociais”. Além disso, Durkheim acredita que “(...) a [disciplina] história das religiões poderia substituir as lições de história da filosofia que são de pouca utilidade”. Finalmente, Durkheim sugere a inclusão de outro tópico importante: “relações entre a psicologia e a sociologia”44. A disputa

43 WORMS, René, “La sociologie dans l’enseignement secondaire”, Revue Internationale de Sociologie, oct.-

déc., 1899; jan.-mars, 1900.

por espaço institucional deve ser entendida, portanto, a partir das posições dos atores no campo, o que mostra que a psicologia social era muito mais adequada à estrutura disciplinar tradicional do que a sociologia durkheimiana.