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E sobre o que Agostinho escreveu?

No documento Teoria Da Historia I (páginas 57-66)

Sua contribuição doutrinária é fundamental para a consolidação institucional da Igreja Católica, e sua trajetória pessoal, exposta nas

Confissões, é material fundamental para a dinâmica devocional cristã.

Sua grande obra, porém, foi A Cidade de Deus, escrita por volta de

420. Nela, Agostinho constrói os parâmetros para uma filosofia e uma teologia da história que geram o primeiro sistema histórico ordenado e

   T  e   o   r    i  a    d  a    H    i  s    t    ó  r    i  a    1 57 UNIDADE 3 finalista da tradição ocidental.

O pano de fundo para A Cidade de Deus  é o cerco de Roma por

 Alarico, concluído em 410 com a destruição parcial da cidade pela primeira vez desde o advento do Império.

Era inevitável que os últimos defensores da ideologia pagã e os numerosos estratos de cristãos vissem neste desastre uma demonstração da cólera das velhas divindades, sob cuja protecção Roma se tornara grande, e que atribuíssem a responsabilidade à nova religião, fundada no culto de um Deus estranho às suas tradições (DONINI, 1980, p. 252).

 A Cidade de Deus é uma obra extensa, com vinte e dois livros que

podem ser divididos em duas partes bem distintas.

Nos primeiros dez livros, Agostinho tenta traçar uma história racional do nascimento e do desenvolvimento do poder romano, em relação ao qual não esconde a sua própria admiração. [...] A estes dados sobrepõe-se, nos doze livros seguintes, uma concepção de história, que prescinde da existência de Roma e do seu império, para assumir o aspecto de um dualismo cosmogónico e moral abstracto, fruto da interpretação da natureza e da vida, que Agostinho fizera no longo decénio de sua experiência maniqueísta (DONINI, 1980, p. 252-253).

 Agostinho constitui, em A Cidade de Deus, mais que uma apreensão

histórica da fé cristã, um arcabouço teológico-filosófico onde se conjugam de forma brilhante os pressupostos históricos da eleição de Israel, os postulados morais do cristianismo em seu embate com o paganismo romano e o determinismo messiânico-escatológico, que impõe um sentido à história.

Construindo uma paráfrase livre da trajetória humana conforme proposta por Agostinho, poderíamos definir a história da humanidade em grandes etapas: a queda do homem e o início da historicidade; a era da aliança e da promessa; o cumprimento da promessa e o anúncio da redenção; o tempo da espera na graça rumo à redenção; e o cumprimento escatológico e final da redenção.

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Éden, que gera a separação de Deus e o início da trajetória da humanidade rumo à redenção. É quando o ser humano é expulso da presença de Deus e tem como castigo a dor e o sofrimento na produção e reprodução de sua vida. É o momento da ruptura, da quebra da ordem original, paradisíaca, perfeita, e o conseqüente ingresso na ordem humana, marcada pela separação, pela dor, pelo conflito e, principalmente, por uma dimensão temporal e, portanto, histórica. Sua raiz encontra-se na tradição judaica da queda do homem do Paraíso, conforme narrada no livro de Gênesis 3:1-24.

 A essa separação sucede o momento da escolha e da aliança de Israel com Deus (Iaweh). Esta promessa e a aliança são anunciadas a  Abraão em Gênesis 17:1-27 e aos Patriarcas, e formalizadas na fuga do Egito em Êxodo 19:1 a 20:17; e com Moisés no Monte Sinai, conforme exposto nos capítulos 21 a 31 do livro de Êxodo.

 A aliança se afirma não apenas na escolha de Israel como eleito de Deus, mas também na promessa da vinda de um Messias, que destruiria as barreiras que separam os homens de Deus. Esse anúncio é recorrente na tradição profética de Israel e, segundo a tradição cristã, se realizou com a vinda de Jesus Cristo.

Cristo chega como aquele que cumpre o prometido pela aliança e pelos profetas. Sua vinda é o cumprimento da promessa embutida no “tempo da lei” que, a partir de sua chegada, perde o sentido, pois que inaugura o “tempo da graça”, superior à Lei pelo sacrifício perfeito de Cristo. A vinda de Jesus realiza a reconciliação espiritual entre a humanidade e Deus, dando, finalmente, sentido pleno à palavra religião

(religar, restabelecer laços). Ao mesmo tempo em que a humanidade, através de Cristo se reconcilia espiritualmente com Deus, se anuncia uma nova promessa, a da redenção histórica do ser humano, que se consubstanciaria na segunda vinda de Cristo.

O tempo da espera na graça, e não mais na Lei, é fundado na nova promessa escatológico-messiânica da segunda vinda de Cristo. Esse tempo, da espera do cumprimento da Nova Aliança da graça, se define historicamente pela trajetória dos homens, remidos em Cristo, do mal posto pela cidade dos homens, a Roma pagã, para a cidade de Deus, formada

pelo rebanho daqueles que se reconhecem como escolhidos por Deus, sob o abrigo da Igreja, que conduzirá os eleitos no rumo à redenção.

   T  e   o   r    i  a    d  a    H    i  s    t    ó  r    i  a    1 59 UNIDADE 3 O cumprimento da nova aliança da redenção na graça dar-se-á nos

últimos dias, quando Cristo retornar à terra para conduzir os eleitos ao seio de Deus. É o momento do cumprimento do sentido escatológico da história e, ao mesmo tempo, o fim da história, posto que histórica é a separação do homem de Deus e sua redenção se reveste dos atributos divinos, dentre os quais a eternidade, que é “ahistórica” por definição.

Como

A Cidade de Deus

 fundamenta a visão agostiniana de História?

 A visão das duas cidades,  que se constitui como herança da

experiência maniqueísta de Agostinho, tem como palco de sua disputa o mundo inteiro, e denota uma característica determinista, porém histórica, ao seu embate. As duas cidades  têm uma dimensão universal em sua

inserção nos desígnios da providência divina.

Não existem aí países e regimes diferentes, nações e impérios que se opõem, reduzidos à unidade sob Roma. No desdobrar da vida associada, coexistem duas cidades, a cidade do bem e a cidade do mal, de Deus e de Satanás, da graça e da perdição (DONINI, 1980, p. 253).

 A explicação do devir da humanidade como efeito das disposições insondáveis da providência divina é conjugada, na visão agostiniana, aos postulados eternos de uma teoria de predestinação determinista e excludente, onde a livre escolha não depende da vontade de cada ser humano, mas sim das disposições da providência divina, manobrada por leis às quais ninguém pode escapar.

 A visão das duas cidades  elabora uma “atmosfera de inatacável

determinismo teológico: a doutrina da graça e da predestinação é a resposta irracional do momento ao problema da origem e do destino do homem” (DONINI, 1980, p. 253).

Esse determinismo irracional se prende a uma dimensão historicamente definida da relação “intervencionista” de Deus em suas relações com a humanidade, definidas pelos insondáveis desígnios da providência divina.

 Ao pôr nas mãos da providência a predestinação na escolha dos habitantes da cidade de Deus, e ao identificar esta cidade com a Igreja,

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 Agostinho abriu as portas às estruturas fechadas, rigidamente classistas , que dominarão ao longo de toda a Idade Média e que, nas páginas da Cidade de Deus, encontraram sempre a sua legitimação ideológica.[...] Mal e Bem sobrevivem até no além. Incapaz de atingir, com as suas próprias forças, um destino melhor, o homem de Agostinho projecta na eternidade todas suas exigências de felicidade e justiça. A cidade celeste continuará a confundir-se, na terra, com um grupo dirigente, com um sistema de poder sobre as massas, diluindo no mito todas as veleidades de resgate e todas as esperanças de libertação (DONINI, 1980, p. 253-254).

Este dualismo determinista e institucionalista é adotado por praticamente toda a historiografia pós-agostiniana e marcará de forma indelével a feição da tradição cristã ocidental de aí para a frente, com permanências até a contemporaneidade. Como exemplo, basta vermos a divisão do calendário ocidental atual, que traduz a essência da dinâmica temporal da trajetória humana na concepção providencialista agostiniana.

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Nesta terceira unidade de seu estudo: a Historiograa na Antiguidade Clássica, você analisou as diferentes concepções históricas e dimensões historiográcas presentes na antiga Grécia e Roma e o pensamento histórico cristão na Antiguidade. Em relação à Grécia Antiga, você pôde acompanhar o surgimento do pensamento historiográco grego, desde suas origens até o período helenístico. Pôde ver que, em suas origens, a historiograa grega motivava fazer a distinção entre os gregos e os bárbaros e ser a expressão política de legitimar as classes política e religiosamente dominantes. Viu também a relação, nos primórdios, entre história e os cultos de mistério gregos, principalmente o orsmo, com sua exaltação do progresso e da cidadania. Conheceu, o pensamento histórico da escola historiográca cujo principal representante foi Heródoto de Halicarnasso, que contava suas viagens e descrevia os povos não gregos como forma de sustento nas cidades gregas. Tomou contato com os quatro fundamentos de sua escrita da História: ver e ouvir, dizer e escrever. E também viu as críticas de vários lósofos e historiadores de sua época sobre o caráter quase ccional de suas narrativas.  A seguir, viu que Tucídides colocou o surgimento de uma historiograa na Grécia Antiga, que  já trazia os fundamentos que sustentam a historiograa documental moderna. Sua principal

obra,  A Guerra do Peloponeso, considerava ser o principal atributo e objetivo da História

a busca da verdade, o que gerou uma produção que poderia ser chamada de “cientíca”. Na sequência, você trabalhou com a historiograa helenística, e pôde perceber o arrefecimento na originalidade da produção historiográca grega, além do uso abusivo de repetições de fórmulas e formas derivadas dos historiadores da Grécia clássica. Viu que as bases de uma historiograa metódica, postas por Tucídides, foram sendo substituídas por preocupações retóricas, pela adaptação política da “verdade” histórica e pela “moralização” do discurso histórico, que reduziu a história helenística, em seu nal, a uma coletânea de ditos morais e discursos exemplares. Depois de passar por tudo isso, você percebeu que, com os gregos, a escrita da História passa a ter uma função social bem clara, de legitimação cultural, dos gregos sobre os outros

povos, e política, das classes proprietárias e sacerdotais sobre o restante da população.

Na Seção 2 – A Historiograa em Roma, você pôde ver, inicialmente, que a inuência determinante da concepção grega de mundo, centrada na cidade e na superioridade cultural

dos outros povos, foi determinante num primeiro momento da escrita da História em Roma.

 A seguir, você teve contato com o rumo literário que a historiograa grega constituiu como um dos fundamentos centrais de sua escrita da História. Conheceu a obra histórica de Julio César, Salústio, Cornélio Nepos e Tácito. Viu que os gêneros de escrita da História predominantes no período foram a crônica, a biograa e os anais, forma que gerou o monumental Ab urbe condita libri , de Tito Lívio, com 142 volumes.  A seguir, você conheceu a correlação entre a ênfase de gênero, literária, com a ênfase de conteúdo,

 Analise os quatro processos presentes nas escrita da História em Heródoto. 1.

Qual é o principal atributo e fundamento da escrita da História para Tucídides? Por quê?

2.

 A partir da escrita das

3. vitae (biograas) romanas, reita e sistematize uma postura sobre a utilidade do uso de biograas para a compreensão do processo histórico.

 A historiograa romana primava por uma dimensão moral em seus conteúdos. Como você vê esta

4.

questão em relação ao ensino da História hoje?

Desenvolva uma construção textual sobre o papel das “duas cidades” no pensamento agostiniano.

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moralizante. Tomou contato com a exigência romana de uma história de agradável leitura, com episódios comoventes e pitorescos e uma forte inuência da arte oratória. Pôde ver que o conteúdo das construções históricas romanas, no período clássico da historiograa latina era fortemente marcado por um caráter moral e moralizante. A História era vista como espaço de denúncia e de construção de padrões morais de conduta. No dizer de Tácito, a tarefa do historiador seria a de não calar as virtudes e patentear a infâmia. Isso se construía em Roma pela denúncia da decadência dos

costumes morais e sociais no período imperial, numa espécie de visão de progresso às avessas,

onde a sociedade moralmente correta seria a sociedade dos primitivos romanos.

E pôde concluir que os romanos herdaram dos gregos, com permanência em todos os momentos de sua historiograa, a visão etnocêntrica de História com a história de Roma. Quando falavam de outras culturas e sociedades, os historiadores romanos o faziam apenas em função de sua ligação com

Roma.

Esta exaltação da cultura e da moral latina, porém, teria, logo a seguir, uma inuência poderosa, que

transformaria a escrita da História, não apenas em Roma, mas também em toda a tradição ocidental:

o advento e o processo de hegemonia do cristianismo na Europa. Na Seção 3 – A Historiograa Cristã antiga, você estudou o papel fundamental representado pela história no pensamento cristão antigo. Pôde estudar a forma pela qual os cristãos construíram sua

identidade histórica a partir de uma ressignicação universalizante e excludente do conceito de eleição oriundo do Antigo Israel. Viu, também, como isso inuenciou sua escrita da História e os fatores que levaram os cristãos a priorizar uma dimensão histórica para sua fé.  A seguir você conheceu as motivações apologéticas da escrita da História entre os cristãos primitivos, postas nas questões de cronologia e compatibilização de calendário com os povos não cristãos e

no papel testemunhal do martírio, inicialmente sob os judeus e mais tarde pelas mãos do Império Romano e pelos bárbaros.

Seu estudo encerrou-se com a análise do pensamento de Agostinho de Hipona, o levou a um painel biográco de Agostinho, seguido de uma apreciação bibliográca, com ênfase na obra A Cidade de Deus, e suas repercussões para uma visão sistêmica de mundo e de História pelos Cristãos, posta

exemplarmente na questão dasduas cidades, e suas inuências nas concepções temporais do

Ocidente até a contemporaneidade.

Na próxima unidade, você estudará o momento de armação, hegemonia e crise da visão de mundo e de História providencialista agostiniana, um longo período, cerca de mil anos, conhecido por Idade

Média, e a crise do Providencialismo, que toma formas concretas no Rensacimento Humanista do século XIV.

Será um momento de transição para o estudo da produção histórica ocidental em seu processo de dessacralização, e o início de sua orientação para a lógica do Estado em substituição à da Igreja.

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