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Mas será que isso não leva a escrita da História a um distanciamento da Igreja?

No documento Teoria Da Historia I (páginas 75-78)

Começa a tornar-se hegemônica na Europa uma escrita da história de dimensão essencialmente burguesa, de conteúdo não mais teológico, mas social e principalmente político. Um dos marcos da transição do teológico para o político é a Nuova Cronica, de Giovanni Villani (1280?-1348),

mercador de Florença.

Esta nova vertente historiográfica articula um discurso

dessacralizado, realista e, de certa maneira, nacional, sobre o passado próximo, que anuncia o Humanismo e a Renascença. Análoga pelas suas curiosidades mas diferentes pelos seus fins, é a historiografia oficial dos jovens Estados (CARBONELL, 1987, P. 65).

É no espaço do Estado que o historiador vai passar a ter seu campo de ação e de ofício privilegiado. “Filha da desgraça, a história é também a serva do poder, e isso mais que nunca nos dois últimos séculos da Idade Média” (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 28). A nobreza mercantil italiana e a realeza européia sustentam historiadores encarregados de narrar seus

   T  e   o   r    i  a    d  a    H    i  s    t    ó  r    i  a    1 75 UNIDADE 4 “grandes” feitos.

Mas a função destes novos historiadores públicos abrange um campo de trabalho mais amplo do que o mero elogio do rei. Passam a ser arquivistas, compiladores de documentos, estruturadores e harmonizadores de corpus  documentais diversos e elaboradores de

sínteses de memórias. A credibilidade dessa história se originava numa concepção primeva de rigor e embasamento documental.

Porém, isto não dava ao historiador do fim do medievo a autonomia para a construção de sua escrita. O servilismo, a bajulação e a apologia política são constantes nessa produção.

Da dependência da história em relação ao poder derivam várias servidões para o memorialista; a estreiteza de seu campo de visão (que se limita aos factos militares, à vida da corte e às grandes cerimônias religiosas ou civis, numa soberba ignorância do povo), o uso do estilo nobre (ou a escrita empolada da Borgonha, ou a imitação de autores antigos em Thomas Basin) e finalmente a obrigação de tomar a defesa do príncipe comanditário da obra, ou mecenas pelo menos (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 33).

No final do medievo, o historiador passa a assumir funções diferenciadas. A preocupação com o esplendor da corte e suas celebrações cede lugar à necessidade de se pensar as coisas do Estado com prioridade.

Enquanto que a crônica tradicional da Borgonha centra-se no lúdico e no cerimonial, narrados detalhadamente, com Thomas Basin, bispo- conde de Lisieux, e Philippe de Commynes, a narrativa prende-se mais aos aspectos militares, diplomáticos e políticos da corte.

Do lado da Borgonha [...] são apenas torneios, festas banquetes e entradas principescas no simbolismo hermético, tudo relatado com muitos detalhes. Olivier de La Marche consagra deste modo metade de seu relato do reinado do Temerário, que se estende por duzentas e cinqüenta páginas, ao casamento do Duque com Margarida de York. Precisou de sessenta páginas para relatar o famoso banquete de faisão que se realizou em Lille em 1454! Em Commynes, em contrapartida, não resta grande coisa deste cerimonial aristocrático. [...] As paradas principescas são máscaras que escondem

   U  n    i  v  e   r   s    i    d  a    d  e    A    b  e   r    t  a    d  o    B  r   a   s    i    l 76 UNIDADE 4

sórdidas maquinações; os belos casamentos não passam de negociatas interesseiras. Para mais, estas festividades são ruinosas para o Estado e debilitantes para os príncipes, cujo caráter e inteligência degradam (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 37).

É o início de uma preocupação do historiador com a figura do príncipe, sua proteção e sua necessidade de conselhos para a boa gestão do Estado. O historiador passa a ser um analista no complexo jogo da política entre os Estados, apto a dar lições aos governantes. Conforme Michel de Certeau (apud BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 38), o historiador

passa a desempenhar “o seu papel de técnico-substituto do príncipe”. Esse processo se desenrola de forma concomitante à centralização do Estado e ao surgimento das nacionalidades, durante os séculos XIV e XV. A função da escrita da história começa, então a se direcionar para a exaltação patriótica, quando não chauvinista:

Assim, o Brevis Tratactus de Étienne de Conty ( 1413),

estudado por Philippe Contamine, que dá um quadro da Cristandade latina cerca de 1400. No coração desta Cristandade, a França, partilhada em três idiomas (o amengo, o bretão e o francês), rica de cento e uma cidades e mais de mil vilas muradas. Cidades como Barcelona e Cracóvia têm direito a curtas notícias,  baseadas nos «dizeres de vários nobres e também de mercadores» que lá foram. Os recursos dos diferentes  países são sumariamente enumerados, como a cera e as  peles polacas. Elogios e censuras são distribuídos aos diferentes povos. E surge já o chauvinismo francês: «É  preciso saber que entre todos os reis cristãos, o rei de França é considerado como o maior, o mais poderoso, o mais nobre o mais santo e o mais sensato» (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 38).

E, no nal da Idade Média, para onde vai a História?

O século XV se constitui num marco de transição e de mudanças profundas nas práticas historiográficas. O eixo da escrita da história deslocou-se de forma nítida das manifestações eclesiais para centrar-se nas atividades políticas, diplomáticas e militares. A dimensão do relato histórico tende cada vez mais a se constituir literária e retoricamente.

 A dimensão factual-cronológica e causal começa a se constituir em fundamento da prática do historiador. Isto fica claramente expresso na fala

   T  e   o   r    i  a    d  a    H    i  s    t    ó  r    i  a    1 77 UNIDADE 4 de Robert Gauguin, em 1478: “Aquele que escrever estes acontecimentos

não satisfará a história se não conhecer os factos, as datas os projetos e os “resultados”·(apud BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 39).

Esse processo irá se acelerando de forma cada vez mais intensa e as coisas do Príncipe e do Estado passam a ser centrais na historiografia européia já no século XV. Mas isso é assunto para a próxima Seção, que vai tratar da Historiografia na Renascimento

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