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Economia Solidária [ES]: a racionalidade substantiva e as práticas de autogestão

2.1.1 Racionalidade substantiva nos estudos organizacionais

As formas como as organizações são administradas seguem determinadas racionalidades, comuns às atividades empreendidas pela humanidade ao longo de seu desenvolvimento. Nesse sentido, o debate sobre a forma como as organizações são geridas resgata o debate sobre a importância da racionalidade no campo dos estudos organizacionais. Considera-se que um dos principais objetivos da Administração é estimular comportamentos que reforcem sua racionalidade específica e a padronização dessa racionalidade. A questão da racionalidade na ação social é apontada primeiramente por Max Weber (1994, 2004), que se empenhou por explicar as transformações da sociedade moderna mediante o critério da racionalidade. Para Weber (1964) o conceito de racionalidade precisa ser compreendido dentro do contexto amplo das muitas formas de ação social, que ele entende como conduta humana em que os sujeitos da ação atribuem a ela um sentido subjetivo que se refere à conduta de outros, orientando-se por essa para o seu desenvolvimento. Sendo o sentido da ação social de natureza subjetiva, a motivação da ação social depende do sujeito, a partir dessa reflexão, Weber classifica os seguintes tipos a partir da racionalidade que a motiva:

(a) Racional (ou instrumental), visto que é motivada pelos fins e determinada por comportamentos esperados tanto dos objetos do mundo exterior quanto dos outros homens. Esses comportamentos esperados são “as condições” ou “os meios” com que se pode contar para atingir fins próprios racionalmente ponderados e perseguidos; nesse caso se fala em ação social motivada pela racionalidade instrumental;

(b) Racional motivada pelos valores (mais tarde abordada por Guerreiro Ramos como sendo uma racionalidade substantiva): determinada pela crença consciente em valores, sejam éticos, estéticos, religiosos, ou sob qualquer outra forma que se manifestem, próprios e absolutos de uma conduta, sem relação alguma com o resultado; nesse caso, se pode falar em ação social valorativa, motivada pela racionalidade valorativa;

(c) Afetiva: de natureza emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais do momento, nesse caso se fala em ação social afetiva, motivada pela racionalidade afetiva;

(d) Tradicional: determinada por um costume arraigado, nesse caso se fala em ação social tradicional, motivada pela racionalidade tradicional.

Cada um desses tipos de ação social apresenta características próprias e corresponde um tipo de racionalidade. A ação social puramente tradicional é uma resposta esperada e padronizada a estímulos habituais e comuns, quanto maior o grau de institucionalização do contexto em que for gerada, mais acentuado será o caráter tradicional da ação social. Na ação social tradicional não há espaço para a reflexão: a ação social ocorre porque deve ocorrer, porque é daquela forma que se faz desde os tempos mais remotos, e pode ser de caráter religioso, ou não (Weber, 1994). Conquanto na ação afetiva e na ação motivada por valores a ação social não vise um resultado, o conteúdo da ação em cada caso é diferente, pois enquanto na ação social afetiva é motivada por emoção momentânea, sem qualquer reflexão, na ação social motivada por valores, os propósitos e o planejamento da ação social são resultado de elaboração consciente, jamais se olvidando os valores aos quais servem. Na ação social regida pela razão instrumental, o agente se orienta pelos fins, meios e consequências de sua ação social, dessa forma, pondera racionalmente os meios e os fins, e os fins e as consequências da ação social, nos mais variados cenários possíveis. Nesse tipo de ação social, o agente toma decisões sobre a ação baseado no cálculo, na relação custo/benefício entre fins, meios e consequências da ação social que decida empreender (Weber, 1994). Na ação social em que a racionalidade é motivada pelos fins visados pela ação, os sujeitos não agem nem exclusivamente movidos pelos afetos nem movidos exclusivamente pela tradição. Na ação social motivada por valores, por sua vez, a decisão entre os diferentes fins e consequências concorrentes e em conflito pode ser racionalmente motivada aos fins, como na razão instrumental, contudo, ponderam-se os meios para alcançá-los (Weber, 1994).

A partir da caracterização dos quatro tipos de ação social, Weber (1994) pondera que raramente ela será orientada por um único tipo de motivação. As motivações, que correspondem a um tipo respectivo de racionalidade, são tipos conceitualmente puros, didáticos, contudo, na prática da ação social, comumente identificam-se as ações sociais motivadas por tipos híbridos de racionalidade. Weber (1994, 2004) pondera que é frequente a mescla entre as racionalidades na ação social, entretanto, ao analisar as sociedades capitalistas, Weber identifica a preponderância significativa da racionalidade instrumental, ainda que se esperasse o estabelecimento de um equilíbrio pelo mercado. De fato, o pensador se detém sob a análise da racionalidade instrumental em sua obra, não de forma dogmática,

como alerta Guerreiro Ramos (1989), mas pela importância do fenômeno que identificou, permitindo-se, inclusive, realizar a crítica, considerada por alguns autores como “compreensiva” de que o capitalismo seria uma “gaiola de aço” que impede a emancipação dos sujeitos no âmbito da ação social (Weber, 1994). Habermas (1987a, 1987b) observa, considerando o pensamento de Weber, que o funcionamento do capitalismo depende de condições previsíveis, uma vez que a empresa capitalista moderna funciona baseada em cálculos, é indispensável que haja ordenamento jurídico (justiça) e que o Estado seja administrado, no mínimo, de modo previsível e calculável mediante normas gerais fixas. Para Habermas (1987a, 1987b), esse sistema, para funcionar bem, deve ser tão previsível quanto o rendimento de uma máquina. Tal funcionamento instrumental do sistema capitalista estimulou a racionalização instrumental de toda a sociedade, institucionalizando a racionalidade instrumental, ou funcional, como opção única e instransponível.

No que tange aos estudos organizacionais, uma vez que toma por objeto, predominantemente, as organizações econômicas, a discussão sobre a racionalidade segue o modelo predominante de motivação da ação social, orientada de modo instrumental seguindo interesses práticos imediatos (Ramos, 1989). Weber (1964, 2004) tratou da racionalidade nas organizações, analisando especialmente a organização burocrática, predominantemente alinhada à racionalidade instrumental. De fato, no contexto histórico dos primórdios da Administração como ciência, teóricos e práticos como Taylor e Fayol, representantes da Escola Científica e Clássica, respectivamente, trataram de racionalizar a organização do trabalho de forma a maximizar ganhos e minimizar custos, e, buscando esses fins, cada um à sua maneira, procuravam motivar os trabalhadores por meio de incentivos econômicos, atrelados a uma lógica instrumental de racionalidade da ação social dos sujeitos (Motta, 1991). Com o surgimento da Escola de Relações Humanas, baseada nos estudos de Mayo, passou-se a considerar fatores além da racionalidade econômica no processo de motivação dos sujeitos, utilizando-se da afetividade e das necessidades dos indivíduos para moldar o comportamento no trabalho, contudo, manteve-se a racionalidade instrumental na estruturação dos processos e a busca por maximização de ganhos e minimização de custos (Motta, 1991).

Dessa forma, ainda que se tenha ampliado a compreensão sobre a motivação dos trabalhadores, estes ainda não são considerados sujeitos ativos nos processos decisórios das organizações. Segundo Serva (1997b), o processo decisório é um dos elementos desarticuladores das organizações burocráticas, e influencia a motivação dos sujeitos, visto que altera o contexto da ação social. Chester Barnard (1979) foi o primeiro a oferecer análise sistematizada do processo de tomar decisões e os processos de cooperação. O pensador

vinculou o processo de tomar decisões e o exercício da autoridade, e o descreveu como “processo oportunista”, no sentido de ser um processo cujo êxito depende de se aproveitarem as oportunidades que surgem. Entretanto, foi Herbert Simon que tratou a questão da racionalidade e do processo de tomada de decisão de forma sofisticada. Simon questionou um dos pressupostos da teoria microeconômica que indica que os seres humanos sempre fazem escolhas racionais nas ações de caráter econômico, visto que, por definição, os seres humanos são capazes de compreender todas as dimensões de seus atos. Por sua parte, Simon (1997, p. 101) aponta que a capacidade humana de equacionar e solucionar problemas complexos é limitada, pois ele é incapaz de considerar todos os fatores relevantes para a escolha. Portanto, não existindo humanos perfeitamente racionais, soma-se a o fato de que a informação com a qual os humanos têm de contar para tomar decisões e agir é sempre imperfeita, e, dessa forma, também é limitada (Simon, 1957, 1997). Essa abordagem do processo de tomada de decisão também é uma perspectiva instrumental, calculada, pois ainda que Simon tenha elaborado a crítica aos pressupostos microeconômicos, ele não incorpora elementos substantivos à mesma. As abordagens substantivas nos estudos organizacionais surgem apenas após a década de 1960, quando se iniciam os movimentos de contestação e crítica à racionalidade instrumental e, a partir daí, disseminaram-se formulações alternativas aos tipos organizacionais gerados pela crítica à racionalidade instrumental, corporificando abordagens e formas organizacionais baseadas em uma racionalidade substantiva, em especial estudos que analisam ambientes de trabalho associativo e cooperativo (Satow, 1975; Rothschild; Whitt, 1979).

No Brasil, Guerreiro Ramos (1015-1982) foi o primeiro a empreender críticas contundentes à predominância da racionalidade instrumental no pensamento administrativo, não por acaso, o pensamento de Guerreiro Ramos inaugura tais críticas muito antes das discussões pós-colonialistas nos estudos organizacionais, refletindo sobre a herança do colonialismo e da dependência nas sociedades periféricas, a partir de uma tomada de consciência da realidade nacional (Rosa e Alcadipani, 2013). Em sua obra “A nova ciência das organizações”, o pensador reflete sobre as limitações das teorias administrativas e sua pouca evolução de Taylor a Simon, especialmente no que diz respeito à questão da racionalidade, conduzida sob a primazia da perspectiva instrumental orientada a fins econômicos, desconsiderando as outras dimensões da vida humana (Ramos, 1989). A partir dessas reflexões, das tipificações elaboradas por Max Weber sobre a racionalidade, e influenciado pelo pensamento substantivo de Karl Polanyi (2011) sobre a relação entre economia, sociedade e cultura, Guerreiro Ramos propôs uma a “teoria substantiva da vida associada”. Essa perspectiva apresenta três distinções gerais em relação à teoria formal da

vida humana associada: (a) Uma teoria da vida humana associada é substantiva quando a razão, no sentido substantivo, é sua principal categoria de análise. A razão substantiva é entendida como uma categoria "ordenativa", implicando uma teoria substantiva normativa de tipo específico, baseada em conceitos produzidos a partir de conhecimentos derivados do processo de realidade e no processo de realidade; (b) Uma teoria substantiva de vida humana associada é algo que existe há muito tempo e seus elementos sistemáticos podem ser encontrados nos trabalhos dos pensadores de todos os tempos, harmonizados ao significado que o senso comum atribui à razão; (c) Uma teoria substantiva envolve uma superordenação ética da teoria política, sobre qualquer eventual disciplina que focalize questões da vida humana associada (Ramos, 1989, p.26-27).

Para Ramos (1989), a razão substantiva é a base para a construção de organizações substantivas, que se constroem em um eixo não subordinado à esfera mercantil, o que não quer dizer que não se relacionem com o mercado formal, ou que n ao se utilizando em alguma medida da razão instrumental. O autor concebe um modelo dual de organizações: por um lado, organizações formais (que ele iguala às burocracias, no sentido weberiano) regidas pela racionalidade instrumental; por outro lado, organizações substantivas regidas pela racionalidade substantiva, permeada de valores e preocupada com os processos mais que com os fins. Guerreiro Ramos constrói uma crítica à busca exclusiva da Administração por interesses utilitários e sua aproximação demasiada das ciências naturais sem realizar a análise crítica da racionalidade formal. Nesse sentido, Ramos (1989) considera que o próprio conceito de racionalidade foi deturpado para atender aos almejos do mercado, retirando a razão de seu caráter ordenador da vida humana, e direcionando-a para a ordenação da economia de mercado. Ao realizar a análise da racionalidade em Max Weber, Guerreiro Ramos não o caracteriza como um fundamentalista defensor do mercado, mas sim como um observador resignado sobre o poder de tal sistema, que lamentava, mas não confrontava, contudo, conforme o autor, sua aparente neutralidade no estudo da vida social não torna Weber um representante da racionalidade burguesa (Ramos, 1989). Diferentemente, Guerreiro Ramos aponta Adam Smith como um dogmático defensor da causa mercadológica visto que este exalta a lógica de que o mercado é o verdadeiro ethos da existência humana em geral (Ramos, 1989, p. 4-5). Ao analisar a racionalidade em Karl Mannheim, Guerreiro Ramos identifica, na visão daquele autor, a limitação resultante da preponderância da racionalidade funcional, que retira a capacidade de crítica dos indivíduos e os propósitos éticos de suas ações, especialmente na sociedade moderna, quando o mercado abrange a totalidade da vida humana (Ramos, 1989, p. 7). Esse processo de deificação da racionalidade funcional resulta

em uma desistência da autonomia e consequente submissão dos indivíduos, afastand0-os de níveis mínimos de emancipação humana. Um exemplo claro dessa deturpação é o discurso do “empoderamento” feminino pela lógica mercadológica que restringe a emancipação da mulher apenas à esfera do consumo, instrumentalizando de forma mercadológica a questão da mulher. Tal lógica exalta o empoderamento como algo a ser perseguido pelas mulheres, não no sentido da emancipação de suas condições de subalternidade, mas pela apropriação do poder através do consumo. Para Ramos (1989), Mannheim confrontou a racionalidade instrumental como única via, contudo, não desenvolveu um conceito de ciência social que abrangesse a racionalidade substantiva como alternativa.

Em seus esforços por desenvolver conceitos relacionados à racionalidade substantiva, Ramos (1989) também analisou a teoria crítica dos autores advindos da Escola de Frankfurt. O autor observa que tais pensadores (como Horkeimer, Habermas e Adorno) consideravam que a racionalidade na sociedade moderna havia se transformado em um instrumento disfarçado de perpetuação da repressão social, ao invés de ser sinônimo da razão como categoria ética. A teoria crítica empreendida pelos autores recusa o pressuposto de Karl Marx de que a racionalidade é inerente à história, visto que as forças produtivas conquistaram seu próprio impulso institucional independente, e apontam que a crítica dialética, ou debate racional, como trabalhado por Voegelin, seriam o caminho para uma sociedade sadia, onde a meta a ser perseguida seria a emancipação humana. Os autores da escola de Frankfurt criticam a redução do pensamento ao cálculo e, Habermas, em especial, desenvolve a discussão sobre a instrumentalização da comunicação na sociedade moderna, onde o indivíduo perde a capacidade de utilizar a linguagem para transmitir significações, suspendendo os padrões éticos da razão. A reflexão dos autores sobre a transformação da sociedade contemporânea em uma “sociedade de organizações” resulta na constatação da diminuição da consciência crítica dos sujeitos quanto aos pressupostos inerentes às formas e objetivos das organizações. Ramos (1989) atenta que, ainda que os pensadores da Escola de Frankfurt tenham realizado a crítica à racionalidade instrumental e tenham buscado o desenvolvimento da auto-reflexão, os mesmos não apresentaram alternativas viáveis para a solução dos problemas relacionados ao excesso de formalismo nas organizações e as implicações éticas e morais deste para a vida humana individual e associada. Além disso, para o autor, as ciências sociais e as teorias das organizações também deixam de distinguir suficientemente entre a racionalidade funcional e a substantiva, contudo, diferentemente do contexto histórico de Max Weber, não é possível olvidar a racionalidade substantiva na ordenação dos negócios políticos e sociais, em vista das questões com as quais a sociedade vem se deparando e exigindo maior reflexão e ação nos

processos da realidade, como por exemplo, as questões relacionadas ao gênero e ao trabalho da mulher.

Para Ramos (1989), a razão substantiva é o lugar adequado à razão e para a implementação de uma “vida humana associada”. Os estudos de Guerreiro Ramos sobre a teoria substantiva da vida humana associada baseia-se nos ensinamentos de pensadores clássicos que relacionam o debate racional à essência da forma política da vida. Também toma parte nos estudos do autor as reflexões de Karl Polanyi sobre a teoria econômica substantiva, onde o pensador entende a sociedade capitalista como um caso excepcional e não como padrão para avaliar a história social e econômica. Ao realizar a crítica à ciências sociais, Guerreiro Ramos reflete tanto sobre os pontos de vista estabelecidos (prol mercado) quanto os marxistas ou neomarxistas e conclui que ambas as correntes não realizam a crítica do social como categoria limitante da emancipação humana, visto que exclui a razão como atividade da psique humana em função de uma razão social sui gereris. Exemplo dessas ilusões ideológicas são as práticas maciças de “motivação para o sucesso” apregoadas pelo liberalismo, e, a “emancipação das massas esclarecidas” apregoadas pelas vertentes de origem marxista/ socialista. Assim, cada corrente ao seu modo prega uma razão social geral que na realidade não se implementa completamente no ordenamento político da sociedade.

No âmbito dos estudos organizacionais, Ramos (1989) elenca duas tarefas ao pensar uma abordagem substantiva das organizações: perceber a organização como um sistema epistemológico e identificar os pontos cegos da teoria organizacional corrente. A primeira tarefa busca desenvolver um tipo de análise capaz de detectar os ingredientes epistemológicos dos vários cenários organizacionais, nesse sentido, a própria linguagem serve como instrumento de interpretação epistemológica, por exemplo, quando as organizações controlam as ações de seus membros através do vocabulário que esconde algumas partes da realidade e evidenciam outras partes, moldando não só a organização como a própria sociedade. Assim, as organizações não são regidas por parâmetros puramente técnicos, a dimensão epistemológica existe independentemente mesmo que as organizações tentem resolver seus problemas sob o ponto de vista tecnológico. Mesmo que se busque a abstração nos estudos organizacionais, as questões epistemológicas, ainda que ocultas, vez ou outra, expressam fraturas nos sistemas organizacionais em termos de auto-interpretação, definição de metas, natureza e alcance de suas operações e suas transações com o mundo exterior. A segunda tarefa busca desenvolver um tipo de análise organizacional livre de padrões distorcidos de linguagem e conceitos. Esta análise primeiramente busca identificar as seguintes lacunas na teoria das organizações: o conceito de racionalidade convencionalmente adotado e a

incompreensão sobre o impacto do conjunto de relacionamentos interpessoais de uma visão predominantemente instrumental da atividade humana. Diz Ramos (1989, p. 125):

(...) As finalidades da vida humana são diversas e só umas poucas dentre elas, pertencem, essencialmente, à esfera das organizações formais. Na tentativa de criar e maximizar os recursos necessários a seu bem-estar material, o indivíduo pode-se permitir atividades mecanomórficas, que são aquelas específicas da organização econômica formal. No entanto, regras operacionais, mecânicas, não se ajustam a todo o espectro da conduta humana.

A proposta por Guerreiro Ramos tem como finalidade especialmente realizar uma crítica ao que se estabeleceu como marco para a racionalidade, principalmente em virtude das implicações na atividade humana como um todo. Uma das implicações práticas da adoção da racionalidade formal como marco reside na incapacidade de distinção entre trabalho e ocupação (importante para o debate sobre o trabalho da mulher que foi abordado em seção posterior). Para Ramos (1989, p.130) o trabalho é “a prática de um esforço subordinada às necessidades objetivas inerentes ao processo de produção em si”, já a ocupação é “a prática de esforços livremente produzidos pelo indivíduo em busca de sua atualização pessoal”. Tais conceitos foram não acidentalmente igualados no processo de institucionalização da sociedade de mercado, de fato, foi importante para tal regime, a equiparação do labor à condição humana, como explicado por Arendt (2007), retirando da ocupação o valor da racionalidade pensada para a emancipação humana e inserindo no trabalho toda a significação da condição humana11. Assim, o trabalho passa a ser função primordial na vida, antes considerada atividade desprezada, o trabalho passa a ser a atividade fim da vida humana, tal processo exigiu, inclusive, uma conotação religiosa e moralista para sua implementação, e não apenas técnicas e procedimentos, formando-se, assim, “uma ideologia particular que legitima a sociedade de mercado”, trata-se de moldar o trabalho como “instrumento de mediação do valor e da dignidade humana” como se apenas através do trabalho-labor formalmente identificado na sociedade de mercado fosse possível alcançar a salvação (Ramos, 1989, p. 132-134). Logo, habilidades pessoais, vocações e necessidade de atualização dos indivíduos são instrumentalizadas não para a emancipação do mesmo, mas exclusivamente para os objetivos do plano mecânico de produção.

O trabalho legitimado na sociedade de mercado ocorre no espaço das organizações formais. Assim sendo, o comportamento dos indivíduos deve ser um “comportamento

11 Hanna Arendt diverge de Karl Marx na conceituação de trabalho e no poder de emancipação do trabalho em